O Código de Defesa do Consumidor e o envio de cartão de crédito não solicitado

O presente trabalho propõe-se a oferecer um estudo acerca do envio de cartão de crédito não solicitado, esta prática tão comum que, inegavelmente, vem causando transtornos e aborrecimentos ao consumidor.


Ab initio, vejamos o que diz a Constituição Federal de 1988, no que tange à Defesa dos Direitos do Cidadão nas relações consumeristas.


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A Carta Magna de 1988, em seu art. 5º, XXXII, dispõe que: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Ainda, no art. 170, V, diz que:


“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:


V – defesa do consumidor.”


Por fim, o art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, segundo o qual: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.


Assim, a Lei Maior reconhece a fragilidade do consumidor em face do outro sujeito da relação de consumo: o fornecedor.


A esse respeito, a ministra do Superior Tribunal de Justiça, Fátima Nancy Andrighi[1]: “A relação jurídica de consumo, como é sabido, caracteriza-se pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro. A essência do CDC é o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado, que pode ser definida pela capacidade econômica, nível de informação/cultura, dependência do produto, natureza adesiva do contrato imposto, pelo monopólio da produção do bem ou sua qualidade insuperável ou até mesmo pela extremada necessidade do bem ou serviço.


Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 4º, I:


“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:


I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.”


O aludido Codex dispõe acerca dos direitos básicos do consumidor, dentre os quais: “A proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços” (art. 6º, IV).


Nesse ponto, primeiramente cumpre-nos esclarecer o que vem a ser prática abusiva. Conforme o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin[2], “prática abusiva (lato senso) é a desconformidade com os padrões mercadológicos de boa conduta em relação ao consumidor”.


Tais condutas ilícitas estão elencadas no art. 39 da Lei nº. 8078/90. Trata-se de rol meramente exemplificativo e não taxativo. E isso porque, de acordo com Benjamin: “Não poderia o legislador, de fato, listar, à exaustão, as práticas abusivas. O mercado de consumo é de extremada velocidade e as mutações ocorrem da noite para o dia. Por isso mesmo é que se buscou deixar bem claro que a lista do art. 39 é meramente exemplificativa, uma simples orientação ao intérprete.


A respeito do tema ora sob comento, trazemos à baila a Súmula 297 do STJ: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.


Dito isto, voltemos agora ao Código de Defesa do Consumidor, especificamente ao seu art. 39, III, que preceitua:


“Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:


III – enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço.”


Nesse diapasão, o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta firmado entre o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça e as Associadas da ABECS – Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços dispõe, em sua Cláusula Terceira, que “a COMPROMISSÁRIA obriga-se a não encaminhar cartões de crédito sem a prévia e expressa solicitação dos consumidores, ou sem prévia consulta da Administradora / Empresa e expressa e comprovada concordância do consumidor”.


Como se depreende da dicção legal, o produto ou serviço só pode ser fornecido desde que haja solicitação prévia. No entanto, nossa realidade fática revela situação bem diversa.


Ademais, como se não bastasse o envio de cartão de crédito não solicitado, as instituições financeiras ainda têm o desplante de cobrar pelo serviço, em desrespeito ao disposto no parágrafo único do supracitado artigo 39, segundo o qual: “Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento”.


Além disso, caso o consumidor não pague pelo serviço não solicitado, corre o risco de ter seu nome inscrito no cadastro do SPC/SERASA. Nesse contexto, cabe citar o parágrafo único do art. 42: “O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”.


Destarte, cabe indenização por danos morais, nos moldes do art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal de 1988:


“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:


V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;


X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”


Por fim, trazemos à lume a jurisprudência acerca do tema:


“CARTÃO DE CRÉDITO. REMESSA PELA ADMINISTRADORA SEM A PRÉVIA SOLICITAÇÃO DO CONSUMIDOR. PRÁTICA ABUSIVA. DANO MORAL CONFIGURADO. NEXO CAUSAL. MONTANTE INDENIZATÓRIO. 1 – Apresenta-se ilegal o procedimento do banco que envia cartão de crédito ao consumidor sem a prévia solicitação. Dano que decorre do próprio fato. Termo de Compromisso originado no Ministério da Justiça. Prática abusiva. CDC, art. 39, III. Procedimento que colore a figura do ilícito, ensejando reparação por danos morais. Nexo causal configurado. 2 – A fixação do montante indenizatório segue critérios subjetivos do juiz, e deve ser consentâneo à realidade dos fatos. Apelação provida.” (Apelação Cível Nº. 70006474399, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Paulo Antônio Kretzmann, Julgado em 06/11/2003).   


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“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ENVIO DE CARTÃO DE CRÉDITO SEM A SOLICITAÇÃO DO CONSUMIDOR. DANO CONFIGURADO. ART. 39, III, DO CDC. QUANTUM. FIXAÇÃO. 1. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. A remessa de produto ou fornecimento de serviço ao consumidor, sem sua prévia e expressa solicitação, é vedada por lei, caracterizando ilícito civil. Hipótese em que restou evidenciado o ilícito do demandado que, independentemente de solicitação, enviou cartão de crédito à autora, ato que, por si só, basta para caracterizar o dever de indenizar. Inteligência do art. 39, III do CDC. Precedentes jurisprudenciais. Conduta que causou transtornos e preocupação à autora e que deve ser coibida, a fim de evitar a prática de novos ilícitos. Sentença de improcedência reformada. … APELAÇÃO PROVIDA.” (Apelação Cível Nº. 70012764783, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em 17/11/2005).


Em decisão recente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito à indenização por danos morais quando uma instituição financeira, na ausência de contratação dos serviços, envia cartão de crédito e faturas de cobrança da respectiva anuidade ao consumidor (REsp 1061500):


“RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ENVIO DE CARTÃO DE CRÉDITO NÃO SOLICITADO E DE FATURAS COBRANDO ANUIDADE. DANO MORAL CONFIGURADO. I – Para se presumir o dano moral pela simples comprovação do ato ilícito, esse ato deve ser objetivamente capaz de acarretar a dor, o sofrimento, a lesão aos sentimentos íntimos juridicamente protegidos. II – O envio de cartão de crédito não solicitado, conduta considerada pelo Código de Defesa do Consumidor como prática abusiva (art. 39, III), adicionado aos incômodos decorrentes das providências notoriamente dificultosas para o cancelamento cartão causam dano moral ao consumidor, mormente em se tratando de pessoa de idade avançada, próxima dos cem anos de idade à época dos fatos, circunstância que agrava o sofrimento moral. Recurso Especial não conhecido.”


Vê-se, pois, que a lei, a doutrina e a jurisprudência são enfáticas em relação a esse tema: o envio de cartão de crédito não solicitado é conduta considerada pelo CDC como prática abusiva, dando ensejo à indenização por danos morais. Cabe ao consumidor exercer seus direitos, uma vez que, conforme alerta o antigo brocardo latino, “dormientibus non succurrit jus”, ou seja, “o Direito não socorre aos que dormem”.


 


Notas:

[1] ANDRIGHI, Fátima Nancy. Arbitragem nas relações de consumo: uma proposta concreta. Revista de Arbitragem e Mediação, Brasília, ano 3, n. 9, p. 13-21, abr./jun. 2006. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/3043>.

[2] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Práticas abusivas. BDJur, Brasília, DF. 31 jan. 2008. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/16338>.


Informações Sobre o Autor

Thomas de Carvalho Silva


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