Resumo: Cuida-se de trabalho em que se pretende investigar os conceitos de homem, pessoa e ser humano, essencialmente sob os enfoques antropológico-filosófico e jurídico, cuja compreensão é indispensável tanto para resoluções dos dilemas no campo da Bioética, quanto para a disciplina referente à proteção jurídica ao indivíduo.
Palavras-chave: ser humano; pessoa; bioética; direito
Abstract: This is a matter on which work will investigate the concepts of man, person and human being, mainly focuses on the anthropological and legal-philosophical, whose understanding is essential both for solving the dilemmas in the field of bioethics, and to discipline concerning the legal protection to the individual.
Keywords: human being, person, bioethics, law
Sumário: 1. Introdução; 2. O conceito de pessoa e ser humano sob a ótica da antropologia filosófica; 3. A importância do conceito de pessoa para o direito; 4. Considerações finais.
1. Introdução
Cuida-se de trabalho em que se pretende investigar as teses controvertidas sobre os conceitos de homem, pessoa e ser humano, essencialmente sob os enfoques antropológico-filosófico e jurídico, cuja compreensão é indispensável tanto para resoluções dos dilemas no campo da Bioética, quanto para a disciplina referente à proteção jurídica ao indivíduo.
O termo homem recebeu ao longo da história diversos e controversos conceitos. A tarefa de responder a pergunta o que é o homem geralmente é destinada à antropologia filosófica[1].
O que temos claro, todavia, é que nem sempre as concepções de ordem antropológico filosóficas estão em consonância os próprios princípios bioéticos, bem como com as normas vigentes na ordem jurídica.
O avanço tecnológico que promoveu nas últimas décadas uma revolução nas técnicas de manipulação de material biológico humano tem levado a questionamentos fundamentais de ordem ética. Tanto é assim, que documentos como Relatório Belmont[2], que disciplina os princípios éticos e diretrizes para pesquisa envolvendo seres humanos, foi um marco na discussão quanto aos limites e os objetivos que devem nortear a prática e a pesquisa, fornecendo elementos para resolução de conflitos no campo das investigações envolvendo seres humanos. Estes princípios – respeito pelas pessoas, beneficência e justiça – têm sido aceitos desde então como os três princípios fundamentais para nortear o desenvolvimento de pesquisas éticas envolvendo participantes humanos.
De outra sorte, o conceito de pessoa, sobretudo no que diz respeito ao início e ao fim da vida, sempre teve importantes conseqüências no campo do direito. Se é verdade que o direito é feito por pessoas para pessoas, saber quando começa a vida e quando ela termina pode implicar numa série de direitos de natureza civil (direitos de personalidade) e conseqüências de ordem penal.
Sendo assim, propomos a discussão do tema a partir da diversidade de conceitos de pessoa ou do homem.
Sem embargo da multiplicidade de concepções, Abbagnano (2003) propõe três como sendo fundamentais para reunir as várias definições de homem: a) o homem em relação a Deus; b) o homem segundo uma característica ou capacidade que lhe é própria; c) o homem segundo a capacidade de autoprojetar-se.
A relação de identidade do homem para com Deus extraída do contexto bíblico pode ser vista, por exemplo, no livro de Genesis segundo o qual diz o Criador: “façamos o Homem à nossa imagem e semelhança” (Gen. I, 26). Nesse sentido, Xavier (2009, p. 220) ressalta que
“A noção de pessoa, no contexto religioso, liga-se ao conceito de pessoa divina pois, segundo a revelação bíblica, ‘Deus criou o homem à sua imagem e semelhança.’ Portanto, do ponto de vista religioso, a definição de pessoa depende de sabermos o que é essa pessoa divina, o que é uma noção de difícil aplicação prática nos contexto das ciências.”
Esta concepção da pessoa não será aqui abordada por se afastar do interesse do presente estudo.
A segunda categoria, que veremos com mais detalhe em seguida (item 2), trata das definições baseadas em alguma característica ou capacidade inerente ao homem, em oposição aos demais seres vivos.
A terceira categoria, que consiste na compreensão do homem com capacidade de autoprojeção, deve ser compreendida a partir da concepção do homo juridicus, o qual trataremos no item 3 deste trabalho.
2. O conceito de pessoa e ser humano sob a ótica da antropologia filosófica
A primeira pergunta que deve ser feita é: O que é a pessoa[3]?
Um dos problemas fundamentais da metafísica consiste em saber o que é ser uma pessoa. A resposta a esta pergunta geralmente está associada à identificação de certas características ou propriedades atribuídas tipicamente à pessoa, em contraste com outras formas de vida: racionalidade, domínio de linguagem, consciência de si, controle e capacidade para agir, e valor moral ou direito a ser respeitado (BLACKBURN, 1997)[4].
Embora essas características não sejam adotadas por todos, podemos dizer que os aspectos essências que dão singularidade à pessoa[5], é a de um ser autônomo, logo, racional, livre, responsável, que se constrói ao longo da vida, singular, único, irrepetível, relacional e comunicativo.[6]
Consoante aduz Rachels (2006, p. 132), Kant acreditava que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação. Para ele, os seres humanos possuem um valor intrínseco, isto é, dignidade, o que os torna valiosos acima de tudo. Outros animais, por outro lado, possuem valor apenas enquanto servem os propósitos humanos. Os humanos, todavia, nunca podem ser usados como meio para se alcançar um fim, ainda que vise o bem-estar da maioria. Trata-se, portanto, de formulação importante do imperativo categórico kantiano, princípio moral fundamental do qual todas as nossas obrigações e responsabilidades devem derivar.
Kant destaca o caráter racional do ser humano que o diferencia de todas as outras coisas (incluindo os animais não-humanos), por disporem de desejos e objetivos autoconscientes. Em outras palavras, os seres humanos são agentes racionais, ou seja, agentes livres capazes de tomar suas próprias decisões, estabelecer seus próprios objetivos e guiar suas condutas por meio da razão (RACHELS, 2006).
Assevera Xavier (2009) que o filósofo cristão Santo Tomás de Aquino (1225-1274), ressaltou, sobretudo, a singularidade da pessoa humana, distinguindo-a de todos os demais seres pela sua completude, incomunicabilidade, especialidade e racionalidade.
Noutra linha, a definição de pessoa proposta por John Locke que, até hoje, permeia as discussões no campo da filosofia: “um ser pensante, inteligente, dotado de razão e reflexão, e que pode considerar-se a si mesmo como um eu, ou seja, como o mesmo ser pensante, em diferentes tempos e lugares”, põe em destaque as características da autoconsciência e da capacidade de “reconhecer-se a si mesmo, agora, como o mesmo eu que era antes; e que essa ação passada foi executada pelo mesmo eu que reflete, agora, sobre ela, no presente” (Locke, 1986, p. 318 apud Ferreira, 2005).
Locke distingue os conceitos de homem e de pessoa. Para ele, o homem é um organismo biológico; é um corpo. Então, para ele, nascemos homens e podemos nos tornar pessoas. Da bem sucedida combinação entre o homem e a pessoa, surge o homem moral, o homem que reflete sobre si, que se reconhece como um eu no tempo e no espaço, que é capaz de perceber-se como responsável por suas ações passadas e de refletir sobre suas ações futuras (FERREIRA, 2005).
Como destaca Ferreira (2005), Locke expressa que o “homem nasce com direito à liberdade de sua pessoa”. A pessoa, porém, não nasce com o homem. A qualidade de pessoa deve ser adquirida; é um status a ser alcançado. O homem desenvolve-se para pessoa; do ser humano passa ao ser inteligente, racional e responsável, que se reconhece como um si mesmo em diferentes tempos e lugares. Do homem chega-se à pessoa responsável por seus atos e que, como tal, se reconhece no presente e no passado e da mesma forma é reconhecida por outras pessoas (FERREIRA, 2005).
Cassirer por sua vez, fala de um homem como animal simbólico (symbolicum) e não um como um animal racional (rationale). Ressalta ele que “as coisas físicas podem ser descritas nos termos de suas propriedades objetivas, mas o homem só pode ser descrito e definido nos termos de sua consciência”. E arremata dizendo que “só por meio do pensamento dialógico ou dialético podemos abordar o conhecimento da natureza humana” (2001, p. 16).
Já Peter Singer, de forma singular, pretende dar à expressão ser humano um significado preciso, designando-o como equivalente a membro da espécie Homo sapiens. Consoante escreve o autor:
“A questão de saber se um ser pertence a determinada espécie pode ser cientificamente determinada por meio de um estudo da natureza dos cromossomas das células dos organismos vivos. Neste sentido, não há dúvida que, desde os primeiros momentos da sua existência, um embrião concebido a partir de esperma e óvulo humanos é um ser humano; e o mesmo é verdade do ser humano com a mais profunda e irreparável deficiência mental — até mesmo de um bebé anencefálico (literalmente sem cérebro)” (SINGER, 2000).
Singer prossegue sua justificação propondo outra definição do termo humano, atribuída a Joseph Fletcher. Conforme Singer (2000), Fletcher compilou uma lista daquilo a que chamou indicadores de humanidade, em que incluiu o seguinte:
a)Autoconsciência
b)Autodomínio
c)Sentido do futuro
d)Sentido do passado
e)Capacidade de se relacionar com outros
f)Preocupação pelos outros
g)Comunicação
h)Curiosidade
Dos indicadores apontados, destaca Singer que os elementos mais importantes seriam a racionalidade e a autoconsciência, conforme se extrai do conceito de Locke (Singer, 2000). E é nesta acepção que afirma deva ser compreendido o conceito de pessoa.
Ainda de acordo com Singer (2000):
“É este o sentido do termo que temos em mente quando elogiamos alguém dizendo que ‘é muito humano’ ou que tem ‘qualidades verdadeiramente humanas’. Quando dizemos tal coisa não estamos, é claro, a referir-nos ao facto de a pessoa pertencer à espécie Homo sapiens que, como facto biológico, raramente é posto em dúvida; estamos a querer dizer que os seres humanos possuem tipicamente certas qualidades e que a pessoa em causa as possui em elevado grau.
Estes dois sentidos de ‘ser humano’ sobrepõem-se mas não coincidem. O embrião, o feto subsequente, a criança gravemente deficiente mental e até mesmo o recém-nascido, todos são indiscutivelmente membros da espécie Homo sapiens, mas nenhum deles é autoconsciente nem tem um sentido do futuro ou a capacidade de se relacionar com os outros. Logo, a escolha entre os dois sentidos pode ter implicações importantes para a forma como respondemos a perguntas como ‘Será que o feto é um ser humano?’”
Diante da possível confusão terminológica, Singer entende que o melhor é abandonar o termo ambíguo ser humano e substituí-lo por dois termos diferentes, correspondentes aos sentidos diferentes da palavra. O primeiro sentido, já ressaltado acima, enquadra o ser humano a uma expressão, a seu juízo, mais precisa, como membro da espécie Homo sapiens, enquanto para o segundo sentido usa o termo pessoa, embora reconheça ele que o termo é muitas vezes usado como sinônimo de ser humano e, portanto, provocam equívocos interpretativos. No entanto, assevera Singer que “os termos não são equivalentes; poderia haver uma pessoa que não fosse membro da nossa espécie. Também poderia haver membros da nossa espécie que não fossem pessoas (…)” (SINGER, 2000).
A maior dificuldade de admitir o argumento de Singer de que alguns animais não-humanos como chimpanzés, golfinhos e, quem sabe, até porcos, são pessoas, está compreensão de dignidade e respeito que permeia o conceito de humano. Por esta razão, muitos filósofos criticaram o conceito proposto por Singer, conforme veremos adiante.
Dworkin (2003, p. 30 apud Ferreira 2005), embora sem expressa referência a Singer, admite a possibilidade de que, em sentido filosófico, alguns animais não-humanos, como, por exemplo, os porcos, sejam considerados pessoas. Todavia, ressalta que a exemplo das discussões sobre o feto ser ou não pessoa, “seria inteligente deixar de lado a questão, não por se tratar de uma questão irrespondível, mas por ser demasiado ambígua para ser útil”.
Desse modo, embora se possa filosoficamente acreditar que os porcos são pessoas, o fato é que os seres humanos não têm nenhuma razão para tratá-los do mesmo modo como tratam uns aos outros. No domínio da antropologia filosófica, a categoria de pessoa não pode ser pensada para além do humano e de que a própria compreensão de pessoa (DWORKIN, 2003 apud FERREIRA, 2005)
Na mesma direção é crítica de Nedel (2004, p. 237-240 apud Ferreira, 2005) à posição de Singer:
“(…) a concepção de pessoa adotada por Singer é ‘empírico-psicológica’, deduzindo a definição a partir de atributos pelos quais se expressa a personalidade, tais como a racionalidade, a consciência e a capacidade de sentir dor ou prazer, em oposição à concepção ontológica, que reconhece o status de pessoa a partir da própria estrutura ontológica do homem.
Dentre os seres naturais somente o ser humano tem merecido a qualificação de pessoa; os outros animais, mesmo os superiores entre eles, como os grandes macacos, não têm sido considerados pessoas, por falta de consciência reflexa perfeita.
A proposta de Singer, deste modo, constituiria um ‘nivelamento por baixo’ que ‘retira do ser humano o privilégio de sua singularidade absoluta entre todos os viventes naturais, na contramão da grande tradição ocidental’. Destaca Nedel que ‘a intenção de Singer é boa: visa a promover a defesa dos animais’, salientando que, ‘para isso, entretanto, não é mister atribuir-lhes a condição de pessoas nem direitos. Animal racional não é sujeito de direitos, segundo a velha e boa tradição filosófica e jurídica’.
Complementando o que disseram Dworkin e Nedel, Junges argumenta que “Se a biologia define que alguém pertence como indivíduo à espécie humana, merece respeito devido à pessoa”. Sendo assim, a categoria de pessoa é reservada ao ser humano, ao indivíduo pertencente à espécie humana, dotado de dignidade e merecedor de respeito. O humano e o não-humano são “duas realidades diferentes”, porque o “ser humano é um ser cultural e, portanto, moral. Por isso, a abrangência e o critério ético para respeitar um e outro é diferente“ (2002, p. 08 apud Ferreira, 2005).
A posição de Singer, que tem como preocupação central o respeito aos animais, equipara moralmente de forma indevida estes com os seres humanos, pois considera que os indivíduos que apenas possuem mera vida biológica humana não têm valor intrínseco, na medida em que a vida sem autoconsciência é desprovida de valor. Assim, defende ele que não haveria problema em relação ao aborto ou ao descarte de embriões, ou à sua manipulação, seja em que nível for (Xavier, 2009).
A visão reducionista de Singer atribui como característica formadora do ser apenas uma de suas manifestações, a autoconsciência, isto é, centra-se na dimensão pensante do ser e esquece-se de sua dimensão física do corpo como também constitutiva ser. Desse modo, para ele muitas das modernas práticas biomédicas – no campo dos transplantes, inseminação artificial, cuidados ao recém-nascido e aos doentes terminais – tornaram-se incompatíveis com a crença do igual valor da vida humana, porque, entre outras coisas, esse valor é variável, visto que “a vida sem autoconsciência não tem valor algum” (Xavier, 2009).
A ambiguidade em torno da valoração do humano no campo da filosofia e da bioética tem levado biólogos, médicos, pesquisadores, políticos entre outros, todo dia a enfrentarem dilemas sobre como lidar com a vida (humana), as implicações de uma ou outra posição. No campo jurídico, a questão não é diferente, como veremos.
3. A importância do conceito de pessoa para o direito
As teorias do direito se assentam em teorias filosóficas, inclusive sobre a natureza humana e, por isso, devem adotar uma ou outra posição em disputa sobre problemas da filosofia que não são especificamente problemas jurídicos (DWORKIN, 2002).
O conceito atual de homem para direito está ligada a concepção filosófica de valorização da humanidade enquanto capacidade de autonomia, ambas constitutivas do humanismo moderno. De acordo com Renaut (2004, p. 10):
“(…) o que define intrinsecamente a modernidade é, sem dúvida, a maneira como o ser humano nela é concebido e afirmado como fonte de suas representações e de seus atos, seu fundamento (subjectum, sujeito) ou, ainda, seu autor: o homem do humanismo é aquele que não concebe mais receber normas e leis nem da natureza das coisas, nem de Deus, mas que pretende fundá-las, ele próprio, a partir de sua razão e de sua vontade. Assim, o direito natural moderno será um direito ‘subjetivo’, criado e definido pela razão humana (voluntarismo jurídico), e não mais um direito ‘objetivo’, inscrito em qualquer ordem imanente ou transcendente do mundo.”
O direito deve ser enxergado, portanto, como instrumento feito pelo homem para o homem. E, como tal, deve assegurar a este o status jurídico compatível a sua existência humana. Tal estatuto advém de sua consideração como pessoa: ser digno de proteção e respeito.
Depreende-se da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em seu Artigo VI, que “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.” O homem da Declaração dos direitos humanos é uma pessoa e, como tal deve ser tratamento pela lei.
Consoante adverte Tasca (2009), a princípio pode parecer estranho o teor desse artigo sexto da DUDH, pois no presente a idéia de ser humano está indissociavelmente ligada à idéia de pessoa. Todavia, a história do homem comprova que nem sempre foi assim. A escravidão é um exemplo claro de que o ser humano nem sempre foi pessoa. Referido instituto legitimou durante séculos a coisificação do homem enquanto ser passível ser comercializado, explorado e destruído por outros homens. Daí a necessidade de afirmação permanente dos direitos do homem, além de sua efetiva proteção ou efetivação.
De acordo com Supiot (2007, p. 236), “os direitos do Homem são os herdeiros dessa concepção, que vê em cada pessoa um espírito único, o qual vai desenvolver-se ao longo de toda a sua vida e lhe sobreviverá através de suas obras”. E, ao tratar sobre os fundamentos jurídicos da pessoa, ele chama a atenção o fato de que em toda sociedade adota certa concepção do homem que dá sentido à vida humana, bem como que, “sob o ponto de vista jurídico, nós o consideramos como sujeito, dotado de razão e titular de direitos inalienáveis e sagrados”. (idem, 2007, p. 12)
A idéia de que o homem é um sujeito dotado de razão não passa por uma demonstração científica, mas é fruto de uma afirmação dogmática, própria da história do Direito e não da história das ciências (SUPIOT, 2007).
Os três atributos da humanidade que são: a individualidade, a subjetividade e a personalidade são ambivalentes. É que o homem, enquanto indivíduo, é um ser único, indivisível, mas também semelhante a todos. Quando tido como sujeito, ele é soberano, mas também se sujeita à lei comum. Já como pessoa, o homem é espírito e também é matéria (SUPIOT, 2007)[7].
Por esta razão, o direito deve buscar conciliar toda a ambivalência do homem e todas as suas dimensões, uma vez que é sua função antropológica instituir o ser humano, o que significa.
Nesse sentido, Xavier (2009) ressalta, em termos jurídicos, como sinônimas as palavras pessoa e sujeito de direito:
“Na concepção jurídica, pessoa é um ente físico ou coletivo susceptível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito. Sujeito de direito é aquele que é sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, é o indivíduo que pode exercer as prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe atribui, que tem o poder de fazer valer, através dos meios legais disponíveis, o não-cumprimento do dever jurídico.”
Se formos buscar no direito positivo brasileiro, veremos que a lei associou a pessoa à subjetividade jurídica.
O Código Civil Brasileiro — Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 —, por exemplo, dispõe que, em seu art. 2o que: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” [8] Desse modo, no sentido jurídico moderno, todo ser humano é pessoa, dotado, pois, de uma personalidade jurídica, considerada a aptidão genérica para adquirir direitos e deveres[9].
A atribuição de uma personalidade jurídica a todo ser humano resultada em duas conseqüências elementares. A primeira é a de que todas as pessoas tem direitos inerentes à sua condição humana, os chamados direitos de personalidade, classificados em três grandes categorias: a) direito à integridade física; b) direito à integridade moral; c) direito à integridade intelectual.
A segunda conseqüência está na discussão temporal sobre quando se inicia ou termina a existência da vida humana, com sérias implicações de ordem patrimonial, sobretudo no que diz respeito aos direitos hereditários e às obrigações civis[10].
Uma leitura da lei civil indica que a personalidade civil só existe a partir do nascimento do ser humano (perspectiva natalista). Contudo, o reconhecimento jurídico da necessidade de proteção da vida humana intrauterina, como defendem os adeptos de uma posição conceptivista, resulta no asseguramento dos direitos ou interesses do nascituro que o caracterizam já como pessoa, ainda que uma pessoa virtual, potencial. Sob esse prisma, o Direito acaba por se conformar à realidade da natureza humana e não o contrário[11].
No campo penal também suscitam dilemas a disponibilidade da vida humana. Temas como o aborto, a lesão fatal ou não em legítima defesa (homicídio, tortura, lesão corporal etc.), a autolesão, a prisão, a pena de morte sempre foram motivos de intensos e intermináveis debates na história da humanidade.
Ainda cabe ressaltar que a dignidade da pessoa (humana) como valor, seja como realidade pré-jurídica ou positiva, subsidia, na atualidade, propostas político criminais em diferentes sentidos. Tanto na proteção — minimização da violência — do homem contra o próprio homem ou deste para com o Estado (garantismo), como na exclusão/destruição do homem quando este se torna inimigo da sociedade (direito penal do inimigo).
4. Considerações finais
Concordamos com a visão kantiana de que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação, bem como que estes possuem “um valor intrínseco”, isto é, “dignidade”, o que os torna valiosos “acima de tudo”. E que tratar o ser humano não dotado de autoconsciência como um animal, subtrai-lhe seu valor, bem como promove um nivelamento por baixo em relação às outras espécies vivas, na medida em que lhe retira sua singularidade e importância.
Nada justifica tratar os seres humanos como aos animais, mesmo que se tenha a boa intenção de valorizar estes últimos.
Assim, somos contrários, portanto, às posições que distingue as dimensões do ser humano, como faz Peter Singer, entre vida biológica e ser pensante, dotado de autoconsciência, conferindo-lhes tratamento diferente. O ser humano, a pessoa, é algo integral, composto de corpo e alma e assim deve ser visto, independentemente de suas qualidades, seu estado físico ou psíquico.
Embora o conceito filosófico de pessoa seja sempre mais amplo que o do Direito, este não pode perder vista o valor do homem enquanto distinto e superior a qualquer outra espécie animal. E que, por isso, deve ampliar cada vez mais seu espectro de proteção sobre os direitos da pessoa, salvaguardando não só ser biológico dotado de autoconsciência, mas também a pessoa em potencial (nascituro, embriões); a pessoa em sua integridade física e psíquica; e a pessoa enquanto corpo humano indisponível.
É esse o tratamento adequado que o direito deve dar a ser humano. Tratá-lo o mais breve e integralmente como pessoa, conferindo-lhe a proteção necessária que a dignidade decorrente de sua condição com ser único, irrepetível exige.
Em síntese, o homem deve ser tributário de dignidade jurídica em toda sua ambivalência.
[1] Edvino A. Rabuske (2008), em sua obra Antropologia Filosófica apresenta, na introdução, vinte idéias sobre o homem. Ademais, reforça esse papel da antropologia filosófica em buscar o fundamento do homem.
Informações Sobre o Autor
Emerson Silva Barbosa
Delegado de Polícia Federal