Sumário: 1. A emenda constitucional e seu controle de validade. 1.1. As inconstitucionalidades 1.2. A convalidação do calote 2. O gravame
1. No dia 10 de dezembro o Diário Oficial da União publicou o texto da Emenda Constitucional numerada 62, que altera o art. 100 da Constituição Federal e acrescenta o art. 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo o regime especial de pagamento de precatório judicial – que é título representativo de dívida certa – pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
Observamos, para o leitor, que no art. 59, na referência ao processo legislativo, a Constituição inclui, no inciso I, as Emendas, enunciando a seguir os demais atos normativos: lei complementar, lei ordinária, lei delegada, medidas provisórias, decretos legislativos e até resoluções. Neste quadro, portanto, a emenda não passa de ato normativo que difere dos demais por um procedimento especial, agravado, como ocorre com a lei complementar em comparação com a lei ordinária.[1]
1.1.Essa Emenda do constituinte derivado, aprovada no Senado,[2] tem pelo menos cinco inconstitucionalidades que violam normas feitas pelo constituinte originário. Afronta: o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana[3] pelo tratamento humilhante que dá aos credores; o princípio da igualdade, pois esta perante a lei não exclui, em resumo, a desigualdade de tratamento indispensável em face da particularidade de situações, tais como as dos contribuintes credores; o direito à propriedade, com um acintoso “devo, mas não pago”; a coisa julgada, pelo desrespeito às decisões judiciais de que já não caibam recursos; e o princípio da razoável duração do processo, eis que se os precatórios não são cumpridos, a prestação do Estado através da jurisdição não é entregue.
1.2.O Congresso Nacional, editando a Emenda, com a justificativa de que “está oferecendo a solução possível ao grave problema dos estoques de precatórios pendentes de pagamento, equalizando, na medida do possível, os interesses das Fazendas devedoras e dos credores (…),” [4] está convalidando o calote oficial, público e reiteradamente levado a cabo, procrastinando o pagamento de precatórios judiciais, apesar de a Constituição garantir o direito de propriedade, há décadas, no país. Essa decisão,- tomada pelos atores do teatro congressual, cujos membros não ficaram sequer corados pela cumplicidade com as Fazendas remissas, na ardilosa afronta ao princípio da moralidade pública,- resultou em abominável ofensa aos cânones do Estado de Direito.
1.3.Bem vale, pois, a judiciosa assertiva de Ives Gandra da Silva Martins, que se deve acolher como a mais pura das verdades, quando diz que a nova Emenda dos precatórios mereceria contra seu progenitor e aqueles que a aprovaram no Senado ações popular ou civil pública, por representar violação ao mais rígido princípio constitucional que rege a administração pública, que é o princípio da moralidade, olimpicamente ignorado por seus autores no Congresso. [5]
2. Outrossim, outro maior gravame está em que a Emenda faz letra morta do artigo 78. do ADCT, que foi introduzido pela Emenda 30/2000, justamente para coibir o calote já institucionalizado. Ou seja, é subtraído o direito então assegurado de utilização, sem qualquer restrição, de parcelas vencidas de precatórios para pagamento de tributos junto ao ente devedor. Somente no caso de não pagamento do valor da “arrematação” em leilão, é que o titular do precatório poderá utilizar o seu crédito para a compensação com débitos próprios perante o ente devedor.
De volta ao discurso (apenas jurídico), sabemos que hoje é bastante complexo o sistema de controle de constitucionalidade no Brasil. Afora o mecanismo tradicional, que é o incidental (difuso), prevê a Constituição o concentrado, em mãos do STF, de caráter abstrato e principal, seja por meio de ação direta de inconstitucionalidade, seja por meio de ação direta de constitucionalidade, além da direta de inconstitucionalidade por omissão[6]. Assim, admitido o controle sobre Emendas, é perfeitamente possível que esse possa se dar pela via incidental, em um caso concreto, não se olvidando que, neste caso, a declaração da inconstitucionalidade se dá in casu e inter partes[7]. Amiudando, qualquer juiz singular poderá declarar a inconstitucionalidade, formal ou material, de regra editada pela Emenda ora questionada, podendo a questão subir, por recurso, ao Supremo Tribunal Federal, que decidirá por último[8] [9].
Em suma, o administrador público brasileiro, em geral, cuida mal das contas e é um agente fantasticamente caloteiro, que não cumpre as obrigações pecuniárias do Estado para com o cidadão, estando permanentemente em conchavo político com o Congresso para vulnerar o direito de propriedade e instituir o seqüestro do patrimônio do particular. Por isso, está na imprensa e com grande repercussão nacional, a notícia do ingresso no Supremo Tribunal Federal de ação de inconstitucionalidade da Emenda n. 62, por parte do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o que se espera seja frutífero, a bem da ordem jurídica do Estado de Direito em que vivemos.
Informações Sobre o Autor
Sergio Miranda Amaral
Advogado (OAB 34438/SP) Procurador do Município (aposentado)