Resumo: Encerrar um litígio tributário é assunto recorrente quando da análise dos problemas inerentes à prestação jurisdicional em nosso país. Isso porque o grande volume de demandas nessa área constitui um dos principais componentes do congestionamento do Poder Judiciário. Com isso em mente, o artigo visa abrir caminho rumo à efetivação da extinção do processo de execução fiscal através da transação de interesses entre Fisco e cidadão contribuinte. Estuda ele a viabilidade de emprego da prática transacional, com benefícios para o Estado e para a sociedade.
Palavras-chave: Execução Fiscal; Extinção do crédito tributário; Transação
Abstract: End a tax dispute is a recurring issue when analyzing the problems of adjudication in our country. This is because the large volume of demands in this area is one of the main components of the Judiciary congestion. With that in mind, the article aims to pave the way towards the realization of the termination of the tax foreclosure process through the interest between tax authorities and citizen taxpayer transaction. He studies the employment viability of transactional practice, with benefits for the state and society.
Keywords: Tax Enforcement; Extinction of the tax credit; Transaction
Sumário: 1) A transação no Direito Tributário; 2) Indisponibilidade do crédito tributário e liberdade negocial da transação; 3) A transação em matéria tributária e o princípio da legalidade;; 4) As razões da presença da transação no código tributário nacional;; 5) Regulamentação da prática transacional em Direito Tributário: lei complementar geral e lei ordinária específica; 6) Considerações Finais; 7) Referências.
Summary: 1) The transaction in Tax Law; 2) Availability of tax credits and negotiating freedom of the transaction; 3) The transaction in tax matters and the principle of legality;; 4) the reasons for the transaction presence in the national tax code;; 5) Regulation of transactional practice in Tax Law: General complementary law and specific statutory law; 6) Final Thoughts; 7) References.
1) A transação no Direito Tributário
Temos que iniciar por algum lugar, então, que seja pelo conceito. Transação nada mais é do que uma forma autocompositiva e bilateral de obrigações, tendo por escopo o fim das controvérsias sobre determinado assunto ou bem. É o Código Civil quem a disciplina, em seus artigos 840 a 850, figurando como lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.
É ela tão antiga quanto a própria história jurídica, pois nasceu das discórdias instauradas entre duas ou mais pessoas, sendo inerente a qualquer convívio humano em coletividade. A vida civil implica no compartilhamento dos mais diversos deveres e obrigações. No clássico jargão, homem, sociedade e direito são indissociáveis. Portanto, ao Estado, em acepção econômica, figurou como imprescindível o desenvolvimento de formas inovadoras e capazes de dirimir contendas, sobretudo as que se mostrassem mais céleres, efetivas e menos onerosas. Foi este um pedido do ambiente legal. E o que surgiu da realidade galgou ao patamar de norma, pois a renúncia a parcelas de dado direito, ao consentir com a solução equânime de qualquer demanda, concilia, pacifica e é preferível à manutenção de situações belicosas por longo tempo. Por tais circunstâncias, a transação acabou por se firmar na contemporaneidade.
Assim, enquanto solução contratual da lide, este modelo evita o prosseguimento de dado processo. Tal prática “não significa que alguma das partes abriu mão de seus direitos na totalidade, mas sempre será necessário que parcela de suas pretensões sejam afastadas. A ideia de concessões mútuas deve prevalecer” [1]. Visto isso, listamos como requisitos de qualquer transação: a) acordo de vontades, b) concessões mútuas e c) extinção de obrigações litigiosas ou duvidosas.
De posse dessa conceituação, vê-se que a temática envolvendo a transação de interesses, a partir do instante em que é transportada para a área tributária, é realmente difícil de ser enfrentada. Essa arquitetura procedimental diz respeito à tentativa de compatibilização de um instituto de natureza eminentemente privado, ao âmbito de prevalência de direito público estrito, como o é o tributário, com ampla guarida em princípios como os da legalidade e da indisponibilidade. Afinal, quem não pode renunciar, não pode transigir. Eis o grande obstáculo.
Porém, em defesa do maior diálogo entre Fisco e contribuintes, com o potencial apaziguamento das discórdias e dos conflitos de interesses tocantes ao adimplemento dos deveres fiscais, há que se reconhecer que a prática transacional pode sim vir a efetivar uma saída muito mais oportuna e ajustada, face à aplicação mais homogênea da legislação concernente.
E, nessa moderna configuração, em que se valora a necessária mudança na maneira de se tratar o contencioso tributário, não há como duvidar da relevância da transação, principalmente por significar a preferência por uma forma alternativa à comum judicialização dos problemas, com clara economia de tempo e de recursos, além da maior previsibilidade das decisões dela oriundas. Afirmar-se-á, portanto, que sua correta e plena inserção em temas tributários diminui a litigiosidade, já que as partes não mais se digladiam indefinidamente, para, então, passarem a compor as posições divergentes, alcançando a estabilidade em nível razoável e aceitável para todos. Diga-se, de passagem, que a expressão “todos” abrange o Estado, o contribuinte e a sociedade.
2) Indisponibilidade do crédito tributário e liberdade negocial da transação
Mas até que ponto facultar-se-ia ao Estado transacionar direito ao tributo lançado, nos exatos termos dos artigos 156, inciso III, 171, caput, do Código Tributário Nacional, compatibilizando-se com o princípio volitivo, empossado em alto grau de relevância pela Lei Civil.
Estabelece o Código Tributário Nacional:
“Art. 156. Extinguem o crédito tributário: […] III – a transação; […] Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário. Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso” [2].
Diremos que o artigo 156, do Código Tributário Nacional, é o núcleo de onde provém a gênese da discussão. Tal se deve por ele frisar que a transação “extingue” o crédito tributário. E, como se não bastasse, além da transação, chega o dispositivo em voga a instituir dez outras modalidades extintivas.
Mas porque isso é importante? Simples. Basta observar que, dentre todas estas formas terminativas de dada obrigação, as oito primeiras advém do direito civil, em idêntico sentido de criação e estruturação. O pagamento, a compensação, a transação, a remissão e a consignação em pagamento são exemplos diretos de como a norma tributária aproveita-se desses modos de se equacionar controvérsias, próprias, mas não exclusivas, do âmbito privado, para tentar sanar pendências relativas à quitação de tributos e também de deveres a estes correlatos.
Realcemos, em tempo, e por tudo que diremos a seguir, que o pagamento é a forma de se quitar dado crédito tributário, retirando o devedor de sua situação de inadimplência. Ou seja, a prática transacional, hipótese levantada pela legislação, encerra a obrigação, pondo fim ao litígio, abrindo a oportunidade para que o débito seja solucionado através do pagamento. Sem a efetivação deste último, de nada valerá a concessão pactuada entre Estado e contribuinte.
Entretanto, tamanha liberdade preconizada e valorada pelo texto civilista opõe-se diretamente ao prescrito na lei tributária. É esse um território hostil, vez que a colisão conceitual com o caráter público da tributação é previsível, insurrecionando o prescrito no artigo 841, do Código Civil, haja vista a determinação expressa de que “só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação”. Maria Helena Diniz, ratifica a lei cível, já que, segundo informa essa mesma autora, “por importar renúncia de direitos, a lei proíbe a transação aos procuradores fiscais e judiciais das pessoas de direito público interno”[3].
Nega-se livre-arbítrio à Administração para com a cobrança do crédito tributário. A Fazenda Pública arrecada tributos não em defesa de seus “interesses subjetivos”, mas porque é legalmente obrigada a fazê-lo. Quando da tomada de suas decisões, nunca pode visar a particularidades do contribuinte. Prevalece um “interesse objetivo” maior, onipresente em todo o seu plexo de ações e atribuições, levando ao exercício da função que lhe é constitucionalmente atribuída, sem margem a fugas ou desvios, de modo que a mínima conveniência é refutada. “O público é privilegiado em relação ao particular porque dessa forma de agir espera-se que resulte o bem à comunidade sujeita às normas de império de determinado Estado organizado, e, via de consequência, a cada um. Pelo global atinge-se o particular” [4]. É essa uma diretriz que o agente público tem o dever de perseguir, sob pena de sofrer a devida responsabilização posterior.
Mais uma vez, é o fator vontade, enquanto ausente, juntamente com o factoide da preponderância máxima da lei, que mina toda e qualquer conformidade entre transação e crédito tributário.
Contudo, antevendo-se a dicção dos supracitados artigos do Código Tributário Nacional, a transação, ao contrário do que certos autores defendem, não é figura totalmente alienígena nas matérias de interesse das pessoas de direito público. Asseveramos que está ela devidamente delineada e passível sim de ser aplicada em sede fiscal, desde que apropriada à Administração Fazendária, e adaptada às suas características e necessidades. “A autoridade só pode celebrá-la, com relativo discricionarismo administrativo, na apresentação das condições, conveniências e oportunidades, se a lei lho faculta e dentro dos limites e requisitos por ela fixados” [5].
E, mesmo surgindo no artigo 3º, do diploma tributário, a exigência da vinculação à lei, pois “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”, o artigo 171, do mesmo texto, permite a transação.
Não é este o caso de um conflito de normas, em que um artigo prepondera ou invalida o outro, mas de coexistência harmônica destes, por estarem dentro do mesmo código de índole complementar, de forma que, na verdade, há uma exceção aberta pelo legislador àquela regra geral que tolhe a discricionariedade na ação do Fisco, permitindo-a apenas na presença de lei que discipline o tema. Inexiste “antinomia que, por serem as normas em aparente conflito situadas na mesma posição hierárquica, se resolve pelo critério da especialidade, pelo qual ‘tem-se que as prescrições gerais convivem com as especiais, e estas prevalecem sobre aquelas’. […] Uma exceção, portanto, à prescrição genérica” [6].
A doutrina discorre sobre o tema. Sacha Calmon Navarro Coêlho aclara que “transigir é abrir mão de direitos para resolver litígio, preventiva ou litigiosamente (antes do litígio, para evitá-lo, ou durante este para obviá-lo)” [7]. José Eduardo Soares de Melo diz tratar-se “de autêntico acordo entre a Fazenda Pública e os devedores, em que estas partes renunciam ao questionamento de seus eventuais direitos relativos ao tributo” [8].
Persistindo, “a transação seria uma composição amigável, consoante a qual as partes preferem resolver a questão sem recorrer ao Judiciário, por ser ele fonte de incidentes desagradáveis e onerosos” [9]. “A transação envolve, a um só tempo, a renúncia de um direito e alguma espécie de retribuição. Noutras palavras, a ideia de transação sempre pressupôs ônus para as partes que transacionam; concessões mútuas” [10]. “Na verdade, em nosso ver, a transação, instituto de direito privado adotado pelo direito tributário, somente ocorre em casos excepcionais, de extrema dificuldade econômico-financeira do sujeito passivo, situação que merecerá o devido exame para justificar a transação” [11].
“Mas no Direito Tributário a transação a) depende sempre de previsão legal; e b) não pode ter o objetivo de evitar litígio, só sendo possível depois da instauração deste” [12]. “A finalidade da transação é facilitar a extinção do crédito tributário, o que vulgarmente podemos chamar de acordo” [13]. “Conquanto alçada à categoria de modalidade de extinção da relação jurídico-tributária, a transação não põe fim efetivo àquela obrigação, papel que é cumprido pelo pagamento. Seria a transação, nesse sentido, como instrumento preparatório” [14]. Afinal, “não há renúncia à aplicação da lei, mas à contenda sobre a que essa aplicação leva no caso concreto” [15].
“Então, infere-se que a transação em matéria tributária consiste em proposta de um acordo estabelecido pela Administração Pública, com base em uma norma legal, em que se objetiva por fim a um litígio, seja judicial ou administrativo, que verse sobre o pagamento de crédito fiscal envolto em controvérsia. Poderiam, nessas situações, ser feitas concessões por parte da Administração Pública, sempre tendo em vista o interesse maior, ou seja, o interesse público, consubstanciado numa efetiva e justa satisfação do crédito tributário” [16].
Como se percebe, a transação tem contorno jurídico notadamente privado, disso não prevalece dúvida, haja vista que aos particulares é permitido tudo o que a lei não vede, podendo estes, além de abrirem mão de seus bens, encontrarem forma compositiva da discórdia diversa daquela ofertada pela jurisdição estatal estabelecida, tutelando seus direitos em face de acordos ou concessões, na preponderância de seu livre arbítrio, estabelecendo negociações e pactuando obrigações ao bel prazer. “‘Como dizia a Constituição argentina: em relação aos atos que a lei não proíbe, o cidadão só deve contas a Deus’ (RE n.63.216/SP)” [17]. Apesar disso, o direito tributário, buscando aproveitar-se dessa valiosa ferramenta, a adapta a seus fins precípuos, uma vez que, na óptica da Administração Fazendária, só se pode negociar mediante os liames estabelecidos por lei específica, em observância dos princípios constitucionais que velam pelo respeito ao erário público.
Verificada tal práxis normativa, o artigo 109, do Código Tributário Nacional, traz que: “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos efeitos tributários”. Já o artigo 110, daquele mesmo diploma, expressa:
“A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
O supracitado artigo 109 adentra na complicada e polêmica fronteira existente entre o direito privado e o público, resguardando a autonomia de cada um destes. Exemplificando, os princípios civilistas serão utilizados para definir, digamos, um contrato de compra e venda, mas não para resolver conflito acerca do efeito tributário da compra e venda. Consoante o ensinado pelo mestre Aliomar Baleeiro, “o texto acotovela o pleonasmo para dizer que as ‘definições’ de Direito Privado serão as deste, nem mais nem menos” [18].
Sabe-se que o direito tributário é eminentemente obrigacional. Neste sentido, não muito se distancia do regramento contido no direito civil. Na esteira desse raciocínio, constata-se que as denominações relativas a domicílio, solidariedade, pessoa, dentre outros tantos referidos no Código Tributário Nacional são as mesmas das presentes no direito civil, que é um direito comum, apto a suprir as lacunas das normas dos outros ramos jurídicos, preenchendo seus vazios legislativos. As relações entre esses dois liames, tributário e civil, são estreitas, quase que imperceptíveis, em sinergia e não antagonicamente, como se supõe[19].
O artigo 110 pede respeito às Leis Máximas dos entes federados quando da adaptação e do uso de conceitos ou institutos cíveis, de maneira a não prejudicá-los. A menção constitucional fixa rígidos limites, os quais haverão de ser obedecidos.
“Relevante é notar que o art. 109 do Código Tributário Nacional refere-se aos princípios gerais do Direito privado e não às leis de Direito privado. Assim, os conceitos, os institutos, as formas, prevalecentes no Direito Civil, ou no Direito Comercial, em virtude de elaboração legislativa, prevalecem igualmente no Direito Tributário. Só os princípios do Direito privado é que não se aplicam para a determinação dos efeitos tributários dos institutos, conceitos e formas do Direito Civil, ou Comercial. Se determinado conceito legal de Direito Privado não for adequado aos fins do Direito Tributário, o legislador pode adaptá-lo. Dirá que, para os efeitos tributários, ou para os efeitos deste ou daquele tributo, tal conceito deve ser entendido desta ou daquela forma, com esta ou aquela modificação. Esta interpretação é obra do legislador e não do intérprete, pois este não pode, a qualquer pretexto, modificar a lei. Se o conceito não é legal, mas apenas doutrinário, pode o intérprete adaptá-lo aos fins do Direto Tributário” [20].
Portanto, entende-se que o legislador, ao incorporar a possibilidade da transação em sede tributária, acabou por reconhecer o império das construções do direito civil. Os destoantes regramentos cível e tributário estão ligados à verticalização da existência social. Aquele institui a disciplina do âmbito privado, já este é basilar ao funcionamento do Estado. Logo, não há como um não respeitar, ou mesmo vir a se aproveitar, dos institutos do outro.
A professora Misabel Abreu Machado Derzi nos esclarece a respeito de que:
“O artigo 109 autoriza o legislador tributário a atribuir a um instituto de Direito Privado – dentro dos limites constitucionais existentes – efeitos tributários particulares. E, se o legislador tributário não o fizer expressamente, não poderá o intérprete adaptar princípio ou instituto de Direito Privado para aplicar-lhe efeitos tributários especiais. Já o art. 110 proíbe ao próprio legislador ultrapassar aqueles limites postos na Constituição Federal, por via indireta, ou seja, por meio da informação e revisão do alcance daqueles mesmos institutos, conceitos e formas de Direito Privado. O princípio da legalidade é assim cogente. A segurança jurídica, a certeza e a confiança norteiam a interpretação. […] A interpretação deve atribuir a qualquer instituto, conceito, princípio ou forma de direito privado os efeitos que lhe são inerentes, ressalvada a alteração oposta pelo legislador tributário” […][21].
“O artigo 109 está desdobrado no artigo 110” [22]. E isso não é por acaso. Ao colecionar, em sequencia a sua explicação, o didático julgado de Sacha Calmon Navarro Coêlho, Misabel Abreu Machado Derzi tornou a falar, dessa vez, para elucidar a problemática:
“De notar que o art. 109 dá ao legislador o poder de atribuir efeitos tributários próprios, pela via do raciocínio tipológico, analógico e presuntivo, aos princípios, conceitos e formas de direito privado, inclusive os contratos. É lex legum ou lei sobre como fazer leis, no dizer de Pontes de Miranda, e não autorização dada ao administrador ou juiz para livremente interpretarem situações jurídicas e contratos, visando sempre o interesse do Fisco. É, como dissemos, o Direito Tributário admite a atribuição de efeitos fiscais aos institutos de Direito Privado, porém, por lei, nunca por interpretação livre da Administração […]” [23].
Tudo tem uma razão de ser. Os artigos 109 e 110 permissionam os artigos 156, inciso III, e 171, inaugurando uma “janela” regulamentatória, apta a atribuir funcionalidade a certos institutos previstos no Código Tributário Nacional, mas que nunca foram plenamente utilizados, por ausência de lei específica com esse fim. A transação é um destes.
Assim, um instrumento privado galga ao patamar de interesse público, dada a relevância que teria para o impulso na arrecadação do Estado. Eis uma constatação. Todavia, a estrada é espinhosa – sabíamos disso desde o início -, e outro percalço emana, dessa vez no que tange ao interesse público. Pois, questiona-se se o mesmo poderia ser mitigado em favor da transação fiscal entre a Fazenda e os contribuintes.
Alice Gonzalez Borges, embora teça crítica feroz “a uma nova espécie de ataque, até então inimaginável”, ao conceito do que venha a ser ou representar o termo “interesse público”, com a desconstrução do seu significado, ergue, em proveito de nosso estudo, um belo fundamento, do qual nos aproveitaremos. A jurista coteja que “o interesse público, pois, é um somatório de interesses individuais coincidentes em torno de um bem da vida que lhes significa um valor, proveito ou utilidade de ordem moral ou material, que cada pessoa deseja adquirir, conservar ou manter em sua própria esfera de valores”. Consoante essa autora, um interesse assume caractere público quando dele participam e compartilham um relevante número de pessoas, em simbiose, de maneira que este se identifica com o interesse maior de dado grupo, “ou, pelo menos, como um querer valorativo predominante da comunidade”. Em azado comentário, destaca ela que pode suceder de uma parcela da comunidade não se coadunar com aquele interesse, ou, ainda, de que o interesse de uma minoria se ache até mesmo em conflito com aquilo que é aceito como geral e público, e, portanto, válido para todos. Mas o interesse maior da sociedade não se impõe, e sim prevalece, face aos interesses individuais divergentes, com prioridade, sobrelevando sobre os demais. “O interesse público e o interesse individual colidente ou não coincidente são qualitativamente iguais; somente se distinguem quantitativamente, por ser o interesse público nada mais que um interesse individual que coincide com o interesse da maioria dos membros da coletividade” [24].
Humberto Ávila vai além, e, em excelente texto, diz que “o interesse privado e o interesse público estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins”. Para esse autor os elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado. E, se o público e o particular são conceitualmente inseparáveis, a prevalência de um sobre o outro restaria irremediavelmente prejudicada, e o que dirá a contradição entre ambos, até porque o que é admissível não pode jamais ser contradizente. Não existiria conflito entre os elementos de direito público e privado, no mais, o interesse privado seria um ponto de vista a integrar o conteúdo do interesse público, em uma evidente e necessária “conexão estrutural” [25].
No cenário do direito, diante da vasta gama de possibilidades, o “privado” seria o horizonte do “público”. E o interesse público fundante da relação tributária é o que almeja arrecadar mais, com economia de recursos, de forma que a transação, mesmo privada, quando usada em benefício da sociedade, pode sim assumir o caráter público e atender ao que pede a lei, sob a forma do respeito ao cidadão e da conservação do erário.
Estabelecida, portanto, a possibilidade da transação tributária, com definição, conteúdo e alcance inteiramente importados, nos idênticos moldes da legislação cível, tal modalidade extintiva do liame obrigacional, para preservar o fim maior do tributo e, consequentemente, proteger a atuação estatal, deve se adequar à ordem pública vigente. Ou seja, em outras palavras, na missão de pavimentar o caminho para efetivação de uma forma alternativa de resolver conflitos, deve-se, agora, velar pelos reclames e pelas idiossincrasias do direito público.
Destarte, a definição do que venha a ser o ato de transigir não é, em sua essência, alterada, mas oportunamente adaptada à ordem pública, de forma a permissionar que se cumpra a exigência da observância do princípio da legalidade, em toda a sua complexa extensão, de acordo com o asseverado tanto pelo artigo 150, § 6º, da Constituição Federal, como pelo artigo 97, inciso VI, do Código Tributário Nacional[26].
A lógica não é outra, é a mesma, apenas resta modificada. A racionalidade impera e tende a reescrever os preceitos empregados desde sempre. E a tributação não poderia ficar alheia ao pós-modernismo legal. A transação é possível no direito tributário, e a ordem pública pode utilizá-la, em atendimento dos seus mais nobres interesses e finalidades.
O escritor italiano Luigi Pirandello, eternizou que:
“Quando um personagem nasce, adquire imediatamente tal independência inclusive do seu próprio autor, que pode ser imaginado por todos em tantas outras situações em que o autor não pensou inseri-lo, e, às vezes, pode adquirir também um significado que o autor jamais sonhou em dar-lhe!” [27].
Marco Aurélio Greco nos adverte que o debate tributário, por tudo que significa, e por tudo que se tornou, deixou, a muito, de ser um debate meramente formal. A dúvida não reside em saber se há ou não prevalência da substância sobre a forma, uma vez que a coexistência entre ambos os caracteres se faz imperiosa. “Não se trata de sobre+por, mas de com+por valores. A grande questão que agora se põe é de saber quais os parâmetros e critérios a serem adotados nesse novo contexto em que a substância é tão importante quanto a forma” [28]. A propósito, também citamos a lição repassada por Melissa Folmann, consoante a qual “o interesse público não se encontra mais ideologicamente em patamar de supremacia em relação ao privado, pois existe uma complementaridade, haja vista que princípios não podem pressupor hierarquia, no máximo entram em ponderação no caso concreto” [29].
Fábio Brun Goldschmidt[30] encadeia pensamento em torno do qual defende que o Direito Tributário, em nenhum momento, implanta novos contornos ao instituto da transação. O admite e, portanto, a ele se refere, mas não mutaciona a prática. É o que afirma o autor. Na verdade, o código Tributário Nacional, quando o menciona o faz de forma bastante breve, limitando-se a reverberar que é sim maneira de se extinguir o crédito tributário, frisando o dito pela Lei Civil, ou seja, que põe termo ao litígio e se efetiva mediante concessões mútuas. A diferença – e eis a chave para toda a celeuma – é que o artigo 171 declara ser imprescindível lei autorizativa. Por conseguinte, reconhece o autor a possibilidade da prática transacional e mais, até mesmo na esfera administrativa, uma vez que, consoante seus argumentos, a ordem seria a de evitar a continuidade dos litígios, quaisquer litígios.
Sobre isso, ou seja, acerca da possibilidade da fase transcorrida perante o Executivo igualmente poder aproveitar-se da prática transacional, o mestre Paulo de Barros Carvalho diz:
“[…] Agora, divergem os autores a propósito das proporções semânticas do vocábulo litígio. querem alguns que se trate de conflito de interesses deduzido judicialmente, ao passo que outros estendem a acepção a ponto de abranger as controvérsias meramente administrativas. Em tese, concordamos com a segunda alternativa. O legislador do Código não primou pela rigorosa observância da expressões técnicas, e não vemos por que o entendimento mais largo viria em detrimento do instituto ou da racionalidade do sistema. O diploma legal permissivo da transação trará, certamente, o esclarecimento desejado, indicando as autoridades credenciadas a celebrá-la”[31].
Vitttorio Cassone, por seu turno, tece o comentário definitivo: “De regra, a receita pública não pode ser objeto de transação, levando-se em conta o estabelecido pelo § 6º do art. 150 da Constituição […]. Essa disposição, em interpretação contrário sensu e sob certos aspectos, poderia levar ao entendimento de que a transação em matéria tributária não seria permitida”. Mas não se encontra “dispositivo expresso proibitivo na Constituição Federal, motivo pelo qual entendo que a transação tributária pode ser instituída através de lei, observando princípios constitucionais a ela aplicáveis […]” [32].
Quer dizer, sintetizando, a simples procura por um dispositivo que vete o emprego da transação em temas tributários não encontra resultado. Temos que prestar atenção, pois o direito público não o proíbe. Ao contrário, o que ocorre é justamente que o Código Tributário Nacional arrola essa prática dentre os procedimentos admissíveis para extinção de um direito, qual seja o crédito tributário. E, conforme o raciocínio daquele autor, já existe uma permissão legislativa nesse sentido.
Surge no artigo 131, da Constituição Federal:
“Art. 131. A Advocacia-Geral é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial ou extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. […]
§ 3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.”
Por sua vez, a Lei Complementar nº 73/1993 disciplina:
“Art. 4º São atribuições do Advogado-Geral da União: […] VI – desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente”. A Lei nº 9.469/1997 é outra que, ao tratar justamente do inciso acima referido, permite a prática: “Art. 1º. O Advogado-Geral da União e os dirigentes máximos das autarquias, das fundações e das empresas públicas federais poderão autorizar a realização de acordos ou transações, em juízo, para terminar o litígio, nas causas de valor até R$ 50.0000,00 (cinquenta mil reais) […]” [33]. O texto do artigo 7º, do Decreto federal nº 2.344/1997, é uma reprise desse artigo 1º da LC nº 9.469/1997, mas, em seu § 2º, ressalva que “não se aplica o disposto neste artigo às causas relativas ao patrimônio imobiliário da União e às de natureza fiscal” [34].
No tocante à Previdência Social, a Lei nº 8.213/1991, ao reger acerca dos planos de benefícios, estabelece: “Art. 132. A formalização de desistência ou transigência judiciais, por parte do procurador da Previdência Social, será sempre precedida da anuência, por escrito, do Procurador-Geral do Instituo Nacional do Seguro Social – INSS […]”. Ainda remete-se à Portaria AGU nº 109/2007, que, lastreada no art. 4º daquela mesma Lei Complementar nº 73/1993, e no art. 2º, do Decreto nº 4.250/2002, nas causas de competência dos Juizados Especiais Federais, Lei nº 10.259/2001, autoriza os representantes judiciais da União e das Autarquias e fundações a transigir, deixar de recorrer, desistir do recursos interpostos ou concordar com a desistência do pedido, de acordo com as condições legais[35].
Destarte, como se compreende da leitura dos parágrafos antecedentes, o ato do agente estatal compor, pela via transacional, um litígio envolvendo direito público não é algo estranho à legislação brasileira. Pode-se, então, vislumbrar que a transação, em nível do Código Tributário Nacional, diverge da liberdade e da informalidade conferida em sede do Código Civil. Grife-se: “diverge”, mas não se exclui o emprego, o qual se viabiliza em face de uma nova moldagem, vez que o artigo 109, como abordado, é “lei sobre como fazer lei”. Porém o artigo 171, do Código Tributário Nacional, nesse intuito, pede uma legislação específica. E isso carece de análise detida. Eis o que se inicia.
3) A transação em matéria tributária e o princípio da legalidade
Montesquieu, em “O Espírito das Leis”, brilhantemente lapidou que “a liberdade é o direito de fazer aquilo que as leis permitem” [36]. Com esse primado em mãos, e após a averiguação da compatibilidade entre a transação do direito privado e a indisponibilidade do direito público, estabelecemos o objetivo desse item, qual seja a investigação sobre como o princípio da legalidade afeta e restringe a adoção da prática transacional nos ditames tributários.
O princípio da legalidade é fundamental à manutenção do Estado de Direito, tendo surgido a partir das atividades relacionadas à tributação. No passado, constituiu defesa dos súditos contra a voracidade arrecadatória dos impérios. Dessa forma, a exigência de se cobrar impostos apenas com supedâneo em lei atravessou os tempos, e, nos dias atuais, insurge como regra a limitar as ações governamentais e a proteger os aspectos mais intrínsecos à cidadania. “A par do princípio da igualdade, o da legalidade assume papel de absoluto destaque em sociedades organizadas, influindo em todos os ramos do direito positivo” [37].
O inciso I, do artigo 150, da Constituição Federal, estabelece a “legalidade estrita”, onde se determina que “é vedado à União, aos Estado, ao Distrito Federal e aos Municípios, exigir ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça”. É este verdadeiro “princípio de reserva absoluta da lei”, impondo-se que a norma oriunda de qualquer uma das pessoas políticas dotadas do poder de tributar deve trazer os elementos para a identificação do fato imponível, “o que veda o emprego da analogia, pelo Poder Judiciário e da discricionariedade, pela Administração Pública, na solução de conflitos” [38]. Com isso, se exige que os atos e procedimentos tributários, adotados e seguidos pelo Fisco e pelo Judiciário, devem ser previstos, regulados e consentidos pela lei. “Em razão desse princípio da indisponibilidade o Supremo Tribunal Federal já assentou que o poder de transigir ou de renunciar não se configura se a lei não o prevê (RDA, 128:178) […]” [39].
A Fazenda Pública deve velar pela arrecadação do Estado. Aplica, diante de um caso concreto, o que resta legalmente prescrito. Ruy Barbosa Nogueira nos ensina que “assim como vige o princípio nullum tributum sine lege scripta para proteção do crédito tributário, na extinção continua vigendo o correspondente princípio de que não há extinção sem previsão legal” [40]. Nesse paradigma, para ganhar o mundo real, a transação tributária deverá ter base legal específica, com plena delimitação da materialidade e do procedimento a ser empregado, afora a discriminação da abrangência de suas implicações, apresentando uma ritualização compatível com os processos tributários vigentes, quer administrativo ou judicial, apenas se admitindo sua aplicação nos casos em que esteja realmente uma discórdia instalada, afastando-se a versão preventiva.
No Recurso Especial 85.984-5-RJ, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda no longínquo ano de 1977, o Relator do processo, Ministro Cordeiro Guerra, assim entendeu:
“Acresce a isso, que o perdão da dívida é de setembro de 1974, f.114, e a ação fiscal de 1972, e, assim, para que pudesse por termo ao litígio seria necessário celebrar transação de litígio e, consequentemente, em extinção do crédito tributário, como dispõe o art. 171 do CTN. Não tendo havido transação, a remissão da dívida, simplesmente administrativa, ainda que válida, não importou em transação capaz de pôr fim ao litígio. Nada impede, porém, que face ao acórdão, a autoridade administrativa competente autorize a transação que ponha fim à execução – art. 171 do CTN, e art. 1025 do Código Civil” [41].
De fato, não se modifica o instituto da transação na natureza, na sua definição, mas sim nas exigências extraordinárias feitas para que sua aplicação, na arena tributária, logre êxito. Afinal, essa é uma solicitação do próprio texto do artigo 171, que, literalmente, para permiti-la, ordena: “a lei pode facultar” (caput) e “a lei indicará a autoridade competente” (parágrafo único).
Os artigos 141 e 142 do Código Tributário Nacional sublinham a exigência de observância aos ditames da lei:
“Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias. Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível. Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional” [42].
Em suma, como o tributo acha-se preso à legalidade estrita, diante da indisponibilidade dos bens públicos, não se vislumbrando margem discricionária que permissione ao Fisco a discussão de valores, inadmissível será, portanto, falar-se em transação, uma vez que ao Estado não é facultado escolher forma de tutela diferente da determinada em lei.
É o que parte da doutrina alega, desaprovando a prática transacional, deixando-a a deriva no grande mar tributário, e “condenando o instituto a um triste exílio” [43]. “Com efeito, o instituto há de corresponder a alguma finalidade pública, em direção à realização de algum valor consagrado pelas normas do sistema, sob pena de ser considerado inócuo, sequer havendo de se cogitar do mais acerca dele” [44].
Não obstante, o princípio da legalidade, limitador da transação no âmbito tributário, falece em outra vertente, e por uma simples constatação: a edição de uma lei, que venha a permitir essa prática nas matérias tributárias, resolveria tudo, pois a indisponibilidade dos bens da Fazenda Pública não necessariamente importa em total exclusão da viabilidade jurídica de negociar sobre eles, desde que haja autorização legal para a Administração assim proceder.
Na conceituação de Aurélio Pitanga Seixas Filho, “a vinculação legal da função fiscal não impede, entretanto, que o legislador deixe à autoridade fiscal, em algumas fases do procedimento administrativo fiscal, a liberdade de escolher, entre algumas alternativas legítimas, qual a ação que deve ser adotada no momento oportuno e conveniente” [45]. Até porque, “o princípio da legalidade no Direito Processual Civil adquire tamanha relevância que tem motivado a alteração de pensamentos sobre a natureza jurídica do direito processual, que não vem sendo entendido como instrumento técnico, porém, fundamentalmente, ético […]” [46].
“Ora, a transação não é instituto que não tenha sido enxertado no Código décadas depois de sua elaboração; é sim disposição originária do CTN, que veio à luz juntamente com todos os outros dispositivos que nele se inserem, e com um propósito específico. Se o legislador originário o admitiu é porque pretendeu excepcionar o princípio da indisponibilidade. Parece ser um pouco forte pretender simplesmente ignorá-lo, como um filho espúrio, com base em dispositivos que se positivaram juntamente com ele, e que ostentam a mesma hierarquia” [47].
Sobrepujado mais esse obstáculo, cogente se faz perquirir sobre os motivos determinantes da inserção da transação no projeto inicial do Código Tributário Nacional, além do modo como devem ser interpretados os dispositivos tributários abrangidos, de maneira que a configuração ideal seja alcançada.
4) As razões da presença da transação no código tributário nacional
Na aplicação da lei à realidade, o operador do direito pode, diante da dificuldade interpretativa, buscar os fins sociais e os valores que lastrearam a edificação da norma em questão. O ato de interpretar jamais deve abrir mão do estudo do momento histórico que ocasionou a mudança legislativa. É de Miguel de Cervantes a belíssima frase a pontuar que “a história é a mãe da verdade, êmula do tempo, depositária das ações, testemunha do passado, exemplo e anúncio do presente, advertência para o futuro” [48]. Vejamos o que há para se falar.
Ives Gandra da Silva Martins, em parecer de sua autoria, relatou o seguinte:
“Quando os pais do direito tributário – juristas de escol, todos eles – elaboraram, a partir do anteprojeto de Rubens Gomes de Sousa e das discussões no Instituto Brasileiro de Direito Financeiro – hoje ABDF – a minuta do projeto levado ao Congresso Nacional, relatado por Aliomar Baleeiro, entenderam que, para dar agilidade à cobrança dos créditos tributários nas hipóteses de inadimplemento do devedor por falta de liquidez ou outro motivo relevante, a transação seria caminho. Tal instituto facilitaria, de um lado, o rápido recebimento dos pretendidos créditos e, de outro lado, a não inviabilização da atividade do pagador de tributos, que não teria suas atividades ou profissão atingidas por uma imediata despatrimonialização ou interferência no seu dia-a-dia funcional” [49].
Houve a preocupação governamental, em idos de 1960, em rever os métodos e os meios de cobrança do passivo fiscal federal, de maneira que as “reformas de base”, impulsionadas pelos militares, tiveram origem na alteração da estrutura arrecadatória do Estado. Prevalecia o entendimento de que o Fisco Federal não funcionava conforme as necessidades do país. “O próprio Ministro da Fazenda na época estimava que seria possível, apenas com a melhoria da administração fazendária, sem qualquer mudança nos tributos, arrecadar adicionalmente, no mínimo, valor equivalente a 2/3 da receita estimada para 1963” [50]. Precisava-se inflar as receitas disponíveis para a União, e a maneira encontrada foi a edição de um Código Tributário que modernizasse a estrutura de todo o sistema, tornando-o expressão maior dessa vontade.
Tendo ensejado a edição do Código Tributário Nacional, a supramencionada reforma encontrou no jurista Rubens Gomes de Souza seu maior expoente. A fundamentação que ele utilizou para implantar a transação no direito tributário brasileiro adveio na justificativa de que a prática já era autorizada, há mais de uma década, em sede de execução fiscal federal, consoante o artigo 23, da Lei nº 1.341/1951. “Sobre esta lei, disse o professor [Rubens Gomes de Souza]: ‘é uma medida necessária quando se verifique que a Fazenda poderá perder parcialmente o processo, a fim de evitar a demora, pagamento de custas etc.’” [51].
“Art. 23. Salvo quando autorizados pelo Procurador Geral, os órgãos do Ministério Público da União não podem transigir, comprometer-se, confessar, desistir ou fazer composições. Parágrafo único. Sempre que julgarem conveniente, deverão representar confidencialmente ao Procurador Geral para que êste [sic], opinando a respeito, obtenha do poder competente a necessária autorização para transigir, confessar, desistir ou fazer composições” [52].
Porém, não se tem como negar que houve, inicialmente, certa resistência à adoção da transação em matize tributário. As mudanças, facilitadas pelo período de exceção democrática, eram grandes, contudo não admitiam tamanha liberalidade com o direito público. As coisas tinham um limite. Posição que o próprio autor do Anteprojeto do Código Tributário Nacional manteve enfaticamente, até que, em 1967, quando veio a integrar a comissão responsável pela relatoria do “Modelo de Código Tributário para América Latina”, proposto pela OEA, Organização dos Estados Americanos, e pelo BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento, mudou o entendimento e assinalou esse instituto como uma das formas ideais de extinção do crédito tributário.
Anna Carla Duarte Chrispim pontua: “Neste sentido, vale reconhecer que o argumento de que a noção de transação em si é antitética ao conceito de tributo foi derrubado pelo Rubens Gomes” [53]. Negociar para arrecadar mais e melhor pareceu, naquele momento histórico, ser uma proposta interessante. Daí que a inserção da possibilidade da prática transacional não se deu por acaso, mas visou, sim, o desenvolvimento posterior de um meio alternativo ao judicial, predisposto ao Estado, na execução dos créditos fiscais.
Portanto, a presença do inciso III, do artigo 156, e do caput artigo 171, na Lei n. 5.072/1966, a instituir o Código Tributário pátrio, atendeu a esses imperativos de fomento à arrecadação da Fazenda Nacional, na medida em que se fez crer que:
“[…] o instituto da transação traz inequívocos benefícios à administração pública, sobre não inviabilizar o pagador de tributos, sendo o principal deles a imediatez na recuperação de recursos, o que, de outra forma, seria de difícil obtenção, em razão do exercício do direito de defesa pelo contribuinte, na esfera administrativa e judicial” [54].
Com a moldura estabelecida, sob os auspícios de expressões como “a lei pode facultar”, o legislador, propositalmente, inseriu a transação no rol dos métodos extintivos do crédito tributário. O artigo 171 fez a ponte entre a vontade da lei e a realidade, ao deixar para que uma lei específica, a versar sobre o tema, e exauriente quanto a tudo que lhe dissesse respeito, viesse a permitir a plena aplicação das “concessões mútuas” ao cotidiano da Administração Fazendária. Segundo esse raciocínio, o que vetaria a transação na área fiscal seria, exclusivamente, a ausência de legislação autorizativa competente a discipliná-la. E, sem que tenhamos percebido, avançamos mais ainda.
5) Regulamentação da prática transacional em Direito Tributário: lei complementar geral e lei ordinária específica
Permitindo-se abrir mais uma janela argumentativa, paira uma dúvida sempre que se menciona qualquer proposta de transação tributária, dado o reconhecimento da precisão de uma norma a autorizar o procedimento extintivo do crédito fiscal, indagando-se: a competência seria de lei complementar ou ordinária?
Cassone[55] é quem nos socorre, interpretando o problema a partir do que sucedeu com o Código Tributário Nacional, que editado na década de 1960, como lei ordinária, fora recepcionado pela Constituição de 1988, como se lei complementar o fosse, ocorrência que, no entendimento desse autor, permitiria a convivência de leis ordinárias, de cada uma das pessoas de direito público interno, com um regramento maior e genérico, a abranger todo o território nacional. Essas legislações infraconstitucionais, e independentes entre si, não poderiam ultrapassar os ditames de uma lei complementar geral a operar em nível federal. Com isso, a transação, prevista no Código Tributário Nacional, há 47 anos, estaria devidamente regulamentada e apta a ser aplicada e gerar efeitos. E essa lei complementar não destinaria competências materiais, verificado que essa é uma atribuição exclusivamente constitucional, motivo pelo qual não seria o Código Tributário Nacional o maior empecilho à transação tributária, mas sim a Carta Magna.
O artigo 146, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal, é expresso ao determinar que “cabe à lei complementar […] estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária sobre […] obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência […]”. O que leva ao raciocínio de que seria preciso um dispositivo que trouxesse as diretrizes gerais, os princípios basilares, aptos a conferir máxima eficácia, algo que venha a adequar e normatizar a transação ao sistema tributário constitucional vigente, permissionando aos entes federados legislar e manejar o instrumento jurídico inovador predisposto, dentro de suas respectivas atribuições, com objetivos previamente traçados, a atenuar a discricionariedade, em face de situações peculiares de cada caso em concreto, o que evitaria questionamentos judiciais futuros sobre a transação realizada. “Assim, entre as interpretações possíveis, parece-me ser essa a que melhor se coaduna com a natureza jurídico-tributária que a Carta da República outorgou à norma geral tributária” [56].
Para correta compreensão do que tratamos acima, Heleno Taveira Tôrres, em brilhante artigo, recorda que a função de um código tributário é a “sistematização de todo o esquema dos procedimentos de tributação, a coordenação dos distintos tributos e a regulação dos direitos dos contribuintes”. As “normas gerais”, nesse campo, ao abranger determinados assuntos e conceitos, para além do que um código desse tipo contempla, visa atender à judicialização de certos temas e às escolhas políticas realizadas em dado momento evolutivo. O legislador, então, ao julgar como válida a construção de um novo estatuto, fica preso a esse arranjo legal, onde o “produtor” de regras inovadoras deve obediência não somente à Constituição Federal, mas também às normas gerais dessa área. Fala ele sobre a expansão concêntrica da legislação, a propiciar segurança para os partícipes da relação jurídica tributária, garantindo à Fazenda Pública “certeza, celeridade e eficiência na percepção dos créditos tributários, e aos particulares, os meios necessários para que estes possam fazer valer os seus direitos”. Abreviando, uma “norma geral” exerce a atribuição de “baliza da natureza do código”, agindo rumo à compreensão da sua ação em relação às demais leis e atos tributários[57].
E não é tarefa impossível se alcançar os raciocínios de Cassone e de Tôrres. Para tanto, temos que visualizar que, se pode a Administração conceder o “mais”, em casos envolvendo remissão, que é o “perdão do valor devido pelo contribuinte, de forma total ou parcial, sendo uma das formas de extinção do crédito tributário, já constituído por meio de lançamento” [58], porque seria vedado ao legislador, com a edição de uma lei, conceder o “menos”, o qual seria a autorização ao Fisco para negociar e abrir mão de relativa parcela do direito estatal ao crédito de que é titular, com a vantagem de receber, de imediato, o montante que restasse. O problema, nesse caso, não seria outro senão de sopesar se vale ou não a pena efetivar isso.
Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho[59], em respeitável posicionamento, externa atitude contrária à ideia. Adverte ele que se trata de hipótese absolutamente excepcional em direito público, pois não existe autonomia de vontade da parte de nenhum ente da federação para extinguir obrigação tributária sem supedâneo em lei que autorize especificamente a prática da transação. A discussão em torno da precisão ou não de lei complementar geral, para esse autor, é coisa menor, haja vista que é inadmissível que qualquer autoridade administrativa possa se utilizar de critérios gerais, abertos e, portanto, essencialmente discricionários, para acertar o término de um litígio executório fiscal, extinguindo, dispensando ou diminuindo crédito, conforme alto grau de liberdade que um texto legal por demais genérico, e, por que não dizer, irresponsável, pode vir a conferir, mesmo que em favor do Estado.
Ainda consoante ele, caso fosse possível que a Fazenda Pública tivesse poderes maciçamente gerais para transacionar, princípios administrativos importantes ao contencioso tributário, restariam irremediavelmente abalados e diminuídos. Subsistiriam notórios prejuízos à legalidade e à indisponibilidade dos bens públicos, sem falar na contrariedade a outros, como a impessoalidade, isonomia de tratamento, moralidade etc.. Por conta disso, a opinião de Cassone sobre uma lei complementar federal, e a delegação legislativa para que estados, distrito federal e municípios, disciplinassem as condutas de suas procuradorias com essa finalidade, seria arriscado, uma vez que poderia conduzir o Fisco a uma atuação com excesso de discricionarismo e consequentes perdas econômicas.
Respeitamos cada uma das opiniões acima colacionadas, quais sejam as de Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, adverso ao conceito de uma lei geral, e de Vittorio Cassone, favorável, mas é a posição assumida por Hugo de Brito Machado[60] que “reluz na noite escura”. É esta, a nosso ver, a ideia mais acertada, à medida que chama o feito à ordem, pois, com a inteligência que lhe é peculiar, esse autor consegue encerrar a discórdia. Nas suas palavras, o caráter plenamente vinculado do agir da Administração tributária somente seria contrariado se a eventual lei ordinária atribuísse ao agente público, ou às autoridades que representam a Fazenda em juízo, competência para fazer transações. “Mas, neste caso, o defeito será da lei ordinária, e não do art. 171 do Código Tributário Nacional” [61].
Compreende Machado[62] que à uma lei complementar federal genérica não pode ser atribuída a responsabilidade pela transação tributária mal efetivada pelos demais entes federados. É em obediência a essa reflexão, que as leis ordinárias de estados, distrito federal e municípios não podem fugir aos preceitos da norma transacional geral, devendo estabelecer, em minúcia de detalhes, tudo o que possa regular a prática, no campo de seus poderes e competências, afastando o fantasma da livre autonomia funcional do Fisco e das Advocacias públicas, respeitando a legalidade no agir dos servidores estatais e a indisponibilidade do crédito tributário, de maneira que, se alguma discricionariedade restar, seja mais fácil o controle do ato que haverá de ser praticado, sempre no interesse da sociedade, diminuindo a litigiosidade, aumentando a arrecadação, pacificando as situações conflituosas, com economia de tempo e de recursos.
6) Considerações finais
É preciso compreender que a transação, para vingar em matéria tributária, há de ter um regime geral em nível federal, criador das diretrizes básicas acerca do que pode ou não ser realizado, efetivando o instituto, em primeiro lugar, para a União. Posteriormente é que, por via transversa, estados, municípios e distrito federal poderiam edificar suas próprias legislações ordinárias, presas às restrições e garantias da lei complementar maior e prevalecente sobre todas as demais, disciplinando apenas o que lhes dissesse respeito, constitucionalmente falando. Só depois disso tudo é que as respectivas autoridades fazendárias poderiam atuar. Nesse estratagema legal, a discricionariedade restaria, conforme se decrescesse nos patamares legislativos, devidamente tolhida, por leis cada vez mais específicas, reduzindo a possibilidade de desvios na finalidade maior da prática transacional, edificando o procedimento na segurança jurídica e no direito adquirido, e propiciando sensível ganho arrecadatório.
Informações Sobre o Autor
Thiago Nóbrega Tavares
Advogado Especialista em Direito Tributário e Mestre em Ciências Jurídicas