Uma preocupação de boa parte da comunidade jurídica voltada à repressão
ao crime tornou-se frustração: será enviado ao Presidente da República para
sanção ou veto, nos próximos dias, o Projeto do Senado nº 115, de 2002 (nº
7.134/2002, na Câmara dos Deputados), que, dentre outras, prescreve medidas
para prevenção do uso indevido de drogas, bem como define crimes e penas
relacionadas ao tráfico.
Se por um lado louva-se o esforço do legislador em superar distorções e
propor medidas de maior eficácia no tratamento e recuperação de viciados, por
outro pecou seriamente em diversos pontos.
Alguns destes, ínsitos ao cotidiano dos órgãos de repressão às drogas e
que menor dano social potencializam, referem-se, por exemplo, à imprecisão de
inserção de dados estatísticos (art. 17 do PL 115); à imprevisão de permissão
de destruição, in loco, de produtos
químicos apreendidos em áreas de difícil acesso ou risco; à omissão em
estipulação da conversão cautelar de valores apreendidos em títulos da dívida
pública; e ao engessamento e conseqüente inviabilidade prática de procedimentos
de investigação como infiltração policial (art. 53, I, do PL 115/02) e ação
controlada (art. 53, II), haja vista o retrocesso em se impedir o controle
judicial a posteriori de tais diligências.
Outros pontos, no entanto, merecem conhecimento e discussão públicos
urgentes, uma vez que o desprezo legislativo do aspecto pragmático, tão
relevante em leis regentes da segurança pública, conduzirá ao aumento da
criminalidade e ao sentimento e realidade de injustiça.
O primeiro que se pode citar é a questão da punição ao usuário de
drogas.
A par da discussão se o uso de droga ilícita agride bem jurídico penal
de modo relevante a ponto de justificar a intervenção do direito penal
(princípios da intervenção mínima e da lesividade do direito penal), e se o
usuário, por uma questão de lógica, proporcionalidade e de política criminal, é
um fomentador do tráfico e das outras formas de violência que lhe são
indissociáveis, e, portanto, deva sofrer sanção de natureza penal, o fato é que
o art. 28 do PL 115/02, tratador do porte para uso, insere-se no “Capítulo III
– Dos crimes e das Penas”, levando à conclusão de que o consumo (ou formas
análogas: porte, depósito, transporte para uso próprio) é crime sim, e não mera
infração civil ou administrativa.
Porquanto crime, deve acarretar sanção penal de caráter aflitivo,
consistente na restrição ou privação de um bem jurídico em retribuição
punitiva, visando não só à sua readaptação social, mas também à prevenção
intimidatória a toda a sociedade e ao próprio agente.
Com efeito, enquanto crime – independentemente da teoria analítica
bipartite (crime é fato típico e antijurídico), tripartite (crime é fato
típico, antijurídico e culpável), ou outra que se adote – há de ser um fato
punível, ou seja, há que se cominar uma punibilidade em abstrato.
E o legislador fez isso? Fez mal.
Sabe-se que o ordenamento jurídico nacional (art. 32 do Código Penal)
prevê três espécies de pena, subdivididas em: a) privativas de liberdade (reclusão,
detenção e prisão simples – art. 33 do CP), b) restritivas de direito
(prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos,
limitação de fim de semana, perda de bens e valores e prestação pecuniária –
art. 43 do CP) e c) pecuniária (multa – art. 49). Em todas as espécies acima se
percebem as finalidades da pena, quais sejam: retribuição de um mal injusto,
prevenção especial (readaptação e segregação para impedir nova delinqüência) e
prevenção geral a toda a sociedade; bem como a principal característica da
pena: proporcionalidade ao crime.
Nesse contexto, apenar alguém que comete um crime com uma “advertência
sobre os efeitos da droga” é pífio e pragmaticamente indevido. “Advertir” não é
apenar; não se reveste das características da pena; não é proporcionar justa
sanção a quem comete o maior social mau: o crime. E tampouco não satisfaz a
qualquer finalidade da pena, pois uma pessoa que consome e planta droga para
seu consumo e toda a sociedade não se intimidariam com a possibilidade de virem
a ser simplesmente “advertidas” em juízo. Ademais, é de ter por certo que toda
pessoa capaz penalmente, independentemente do país, do nível cultural ou
social, tem plena ciência de que drogas ilícitas são nocivas à saúde humana.
A se somar a tais, está ainda uma forte razão pragmática. Não é
razoável, diante das tantas limitações das instituições policiais, de suas
grandes e urgentes preocupações, atribuições e trabalhos contra a violência,
bem como do abarrotamento de processos no Poder Judiciário, venha um usuário de
droga a ser conduzido a uma delegacia, lavrar-se um auto circunstanciado (art.
48, §2º do PL 115/02), marcar-se data e audiência num juizado especial, para,
após toda essa dispendiosa movimentação da máquina estatal, vir a ser simplesmente
“advertido” pelo juiz acerca dos males da droga.
Se a preocupação do legislador era impedir que o usuário vá para a
cadeia (art. art. 48, §2º), desnecessárias as mudanças iminentes. Não há um só
usuário preso pelo crime de porte para uso. Todos se valem de benefícios legais
como proposta de aplicação imediata da pena (Lei 9.099/95), suspensão
condicional do processo (Lei 9.099/95), sursis
(art. 77 do Código Penal), substituição
de pena privativa de liberdade por restritiva de direito e/ou multa etc.
Um segundo aspecto refere-se ao crime de associação para financiamento
ou custeio do tráfico, definido no parágrafo único do art. 35 do PL 115/02 da
seguinte forma: Nas mesmas penas do
‘caput’ deste artigo incorre quem se associa para prática reiterada do crime
definido no art. 36 desta Lei. A falta de inclusão das conjunções
alternativa-negativa “ou não” contraria a essência desta modalidade criminosa,
espécie do gênero quadrilha ou bando. Ademais, a relação de tipicidade
(adequação do fato à letra da lei) é elemento da tipicidade formal do conceito
de crime. De fato, se já é missão difícil à polícia judiciária lograr êxito no
levantamento de provas dos grandes financiadores do tráfico, dadas as
limitações de prerrogativas legais, mais difícil ainda será demonstrar a
habitualidade desta prática.
O terceiro aspecto a ser tratado respeita à estranha distinção criada
entre o colaborador do crime e o associado ao crime, promovida no preceito
primário do art. 36 do PL 115/02 (Art. 36
Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à
prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, ‘caput’ e §1º, e 34
desta Lei). O Código Penal adotara, em regra, no que tange ao concurso de
pessoas (Titulo IV, Parte Geral), a teoria restritiva – segundo a qual autor do
crime é só aquele que realiza a conduta principal contida no núcleo do tipo, ao
passo que partícipe é o que concorre para a sua realização sem realizar a
conduta típica – e, pertinente à natureza jurídica do concurso de agentes, a teoria
unitária ou monista – pregadora da idéia de que todos os contribuintes para a
prática do delito cometem o mesmo crime, não havendo distinção quanto ao
enquadramento típico entre autor e partícipe. Assim, tratar juridicamente de
modo diverso a associação prevista no art. 34 e a colaboração inserta no art.
36 é violar o princípio monista ou unitário regente, em regra, do concurso de
pessoas. Isso conduzirá, na prática forense, a uma indesejada alegação, por
parte de algumas defesas técnicas, de que os mesmos apenas colaboraram ao grupo
ou organização criminosa, nunca tendo a ele/ela se associados.
Mais adiante, no art. 59
(PL 115/02), estipula-se que o réu não
poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e de bons
antecendentes, assim reconhecido na sentença condenatória. Isso, na
prática, significará que não menos de oitenta por cento dos condenados em
primeira instância recorrerão em liberdade e aguardarão livres durante anos o
trânsito em julgado de seus processos.
Trata-se de imenso
incentivo, um verdadeiro “salvo-conduto” para a primeira prática de tráfico,
pois os delinqüentes estarão cientes que recorrerão em liberdade, podendo
retardar processos em anos, sobretudo no lamentável estágio iminente de
vedação, pelo Supremo Tribunal, da execução provisória da pena antes de
transitados os recursos constitucionais.
Além disso, é verdadeiro contra-senso que uma pessoa, presa em flagrante
por tráfico de drogas, responda a todo o processo detida (mesmo
constitucionalmente presumida inocente) e, condenada, venha a ser solta para
recorrer em liberdade, já existindo um título executivo que lhe reconheça o
crime e a culpabilidade.
Finalmente, a maior de todas as aberrações está no parágrafo 4º do art.
33 do PL 115/02 (Nos delitos definidos no
‘caput’ e no §1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a
dois terços, vedada a conversão em restritivas de direitos, desde que o agente
seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas
nem integre organização criminosa).
É que a grande maioria dos traficantes presa não é reincidente e goza de
bons antecedentes. Assim, inexoravelmente a fixação da pena base (art. 59 do
Código Penal) muito pouco
afastar-se-á do mínimo (cinco anos) do preceito secundário, que sofrerá, ainda,
a redução da causa especial de diminuição, que redundará em penas de um ano e
sete meses. O que isso significa na prática? Significa que, doravante, oitenta
por cento dos traficantes presos diariamente pelas polícias brasileiras não
irão para a cadeia, pois farão jus à suspensão da pena (sursis), na forma do art. 77 do Código Penal.
E nem se diga que a concessão do sursis
é incompatível com a execução de pena por crime equiparado a hediondo ou
que sua vedação expressa no projeto de lei a impedirá (art. 44 do projeto). Com
efeito, aquela jurisprudência era sustentada pela imposição (Lei 8.072/90) do
cumprimento de pena integralmente no regime fechado, o que restou superado ante
o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal (HC 82.959), da possibilidade da progressão de regime de pena no
caso. Já no que tange à vedação do sursis
imposta no projeto, a alegação de
violação aos princípios da individualização da pena e dignidade da pessoa
humana inexoravelmente a vencerão.
Portanto, o cidadão brasileiro precisa saber que, ao invés de os
traficantes cumprirem penas em presídios por um crime tão nocivo, tão grave,
equiparado a hediondo, simplesmente
poderão ser proibidos de freqüentar determinados lugares, de se ausentar da
comarca sem autorização do juiz e de comparecer mensalmente à justiça para
informar de suas atividades.
A sociedade deve estar preparada para, sancionada nos atuais termos o
projeto de lei em debate, assistir a um vertiginoso aumento da indústria do
tráfico.
Informações Sobre o Autor
Hebert Reis Mesquita
Delegado de Polícia Federal, professor da Academia Nacional de Polícia – ANP e da Universidade UNIEURO.