Aqui, não é a nossa pretensão
esgotar o direito constitucional, contudo, não podemos deixar de esclarecer
alguns conceitos que, ao meu ver, são imprescindíveis para o presente trabalho.
Preliminarmente, cabe esclarecer,
sobre a teoria da constituição, o que leciona o Professor Nelson Saldanha :
“sob mira histórica e em função de seu desenvolvimento, é evidente que a teoria
constitucional se relaciona com formas de pensamentos afins, formações teóricas
que correspondem a experiências afins àquela que a lastreia. Poderemos
falar em pensamento político, social jurídico ou mesmo institucional; a teorização
se manifesta através de concepções que evoluem e atuam em conexão coma própria
história política, social , jurídica, institucional. A experiência
histórica do homem é vista, em cada uma desatas expressões, como se estivesse
representada por planos ou dimensões do próprio fenômeno da ”organização” e da
“ordem” (Grifos meus).[1]
O Professor Paulista Alexandre de
Moraes[2],
afirma que sua origem está intimamente ligada às Constituições escritas dos
Estados Unidos da América de 1787, promulgada logo após a Independência das 13
colônias, bem como a Constituição da França de 1791, emanada após a Revolução
Francesa,. Esta última foi quem pela primeira vez traçou a organização do
Estado e a limitação do poder estatal, para tanto deixou expresso os direitos e
garantias fundamentais de todo cidadão.[3]
Registre-se, que “o Direito Constitucional norte-americano não começa apenas
nesse ano. Sem esquecer os textos da época colonial (antes de mais, as Fundamental
orders of Connecticut de 1639), integram-no, desde logo, no nível de
princípios e valores ou de símbolos a Declaração de Independência , a
Declaração de Virgínia e outras…”[4].
O Professor José Afonso da Silva ,
conceitua constituição como sendo : “um sistema de normas jurídicas, escritas
ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de
aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites
de sua ação. Em síntese, é o conjunto de normas que organiza os elementos
constitutivos do Estado”[5].
Já o mestre lusitano, Jorge Miranda,
leciona que constituição é : “o conjunto de normas (disposições e princípios)
que recordam o contexto jurídico correspondente à comunidade política como um
todo e aí situam os indivíduos e os grupos uns em face dos outros e frente ao
Estado-poder e que, ao mesmo tempo, definem a titularidade do poder, os modos
de formação e manifestação da vontade política.”[6]
O Constitucionalista e Professor da
Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Luis
Roberto Barroso, afirma ser a constituição:“um sistema de normas. Ela institui
o Estado, organiza o exercício do poder político, define os direitos
fundamentais das pessoas e traça os fins públicos a serem alcançados.”
Seu objeto, na lição de Celso
Ribeiro Bastos é :“o estudo da Constituição. É ele um ramo do direito público,
compreendendo este, dentre outras disciplinas, o direito administrativo, o
tributário, o financeiro, o processual etc…”[7]
A atividade do desporto na
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de
1988, mereceu , na visão do constituinte originário uma regulação
constitucional. Para tanto, trouxe para o seu bojo, de forma inédita[8],
esta atividade predominantemente física que, a princípio, teria o significado
de recreação, divertimento, mas que, como correr do tempo, passou a abranger
práticas esportivas tanto amadoras como profissionais.
O constitucionalista, Pinto
Ferreira, conceitua desporto da seguinte forma: “Dá-se o nome de desporto ao
conjunto de exercícios físicos praticados com método, individualmente ou em
equipe, com observância de determinadas regras específicas, tendo por
finalidade acima de tudo desenvolver a força muscular, a coragem, a
resistência, a agilidade e a destreza, com vistas ainda ao desenvolvimento
físico do indivíduo” [9]
Assim, com a promulgação da
constituição de 1988, o desporto foi materializado como norma constitucional,
estando, hoje, consagrado no artigo 217, abaixo transcrito:
“SEÇÃO
III – DO DESPORTO
Art.217 – É dever do Estado fomentar práticas desportivas
formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e
associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II – a destinação de recursos públicos para a promoção
prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto
de alto rendimento;
III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional
e o não-profissional;
IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de
criação nacional.
§ 1º – O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à
disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da
justiça desportiva, reguladas em lei.
§ 2º – A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta
dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
§ 3º – O Poder Público incentivará o lazer, como forma de
promoção social.”
No direito comparado, algumas
constituições regulam o desporto, cabendo entre outras, as seguintes:
Constituição da Espanha de 31 de
outubro de 1978
“Artigo
47, 3. Os Poderes Públicos fomentarão a educação sanitária, a educação física e
o desporto. Facilitarão também a utilização adequada do lazer,”
Constituição de Portugal de 25 de
abril de 1976
“Art.70-
(1) Os Jovens, sobretudo os jovens
trabalhadores, gozam de proteção especial para efetivação dos seus direitos
econômicos, sociais e culturais, nomeadamente:
a) acesso ao ensino, à
cultura e ao trabalho;
b) formação e promoção
profissional
c) educação física e
desporto;
d) aproveitamento dos
tempos livres.
Art.79-
(1) Todos têm direito à cultura e ao desporto.”
A Constituição da República do
Uruguai, aprovada em 24 de agosto de 1966, com a emenda de 1976:
“Art.71-
Declara-se de utilidade oficial a gratuidade do ensino oficial primário, médio,
superior, industrial e artístico da educação física; a criação de instrumento
de aperfeiçoamento e especialização cultural , científica e obreira, e o
estabelecimento de biblioteca particulares.”
A Constituição política do Peru:
“Art.38-
O Estado promove a educação física e o desporto, especialmente o que não tem
fins de lucro. Atribui-lhes recursos para definir sua prática.”
Como visto, o desporto é tratado
pelas constituições de vários outros Estados. Restava apenas ao Brasil
incorporá-lo. É oportuno registrar, que a materialização do desporto em sede
constitucional se deve, dentre outros, a luta do Professor Álvaro Melo Filho,
quem elaborou as “sugestões básicas” à elaboração do texto constitucional, as
quais foram apreciadas, in totum, pela Assembléia Nacional Constituinte.
Saliente-se, que conforme esclarece o próprio professor Álvaro Mello Filho, em
seu livro ”Desporto na Nova Constituição“ a luta foi : “…silente e permanente,
iniciada com a ajuda incondicional do Prof. Manoel Tubino – Presidente do CND –
bem antes do nosso pronunciamento na audiência pública da Subcomissão de
Educação, Ciência, Cultura e Desporto, não teríamos concretizado nosso
objetivo, não fosse a sensibilidade desportiva , a obstinação legislativa e a
dedicação ímpar do constituinte AÉCIO DE BORBA VASCONCELOS a quem devemos – os
antênticos desportistas – imorredoura gratidão”[10]
Assim, uma vez promulgada a
constituição, houve, à época, a grandiosa necessidade de esclarecer o sentido e
o alcance dos dispositivos transcritos acima que, na acepção de Álvaro Melo
Filho, “constituem a estrutura de concreto armado do desporto brasileiro, que
se espera apta a enfrentar desafios do Terceiro Milênio, livre de modismo e
fincada numa necessidade real de democratização e respeito aos direitos da
cidadania, especialmente do direito do desporto.”
Competência para Legislar sobre o Desporto
A competência para legislar sobre o
desporto na atual constituição é, diferentemente da anterior, não mais
exclusiva da União[11].
Hoje, diante do disposto no inciso IX do artigo 24, da vigente constituição, a
competência para legislar sobre o desporto pertence à União, Estados e ao
Distrito Federal, vale dizer, ela é concorrente, a saber:
“Art.24 – Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal
legislar concorrentemente sobre:
IX – educação, cultura, ensino e desporto;”
Assim, cabe à União tão somente
legislar normas gerais[12]
sobre desporto, ficando aos Estados e ao Distrito Federal a competência para
suplementá-la[13], no caso de
não haver a legislação básica e, no caso de haver norma geral, compete-lhe,
apenas, complementá-la, para adequá-las as peculiariedades de cada Estado[14].
Questão interessante é saber se os
Municípios possuem legitimidade para legislar supletivamente ou
complementarmente?
Interpretando literalmente o inciso
IX do artigo 24, chegaremos à conclusão de que aos Municípios falece
competência legislativa, quer supletiva ou complementar. Mas, não podemos
admitir que o Município, principalmente após a promulgação da carta de 1988, a
qual consagrou-o como ente indispensável ao sistema federativo e, integrou-o na
organização política-administrativa, garantindo-lhe, assim, plena autonomia
conforme dispõe o artigo 1º da CRFB/88, a saber:
“Art.1º – A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos”.
Portanto, podemos afirmar que a
autonomia dos municípios, da mesma forma que as dos Estados, configura-se pela
tríplice capacidade: auto-organização e normatização própria, auto-governo e
auto- administração.
Ademais, o artigo 30 da CRFB/88, dispõe que:
“Art.30 – Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que
couber;
VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e
do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental;” (Grifos
meus).
Ora,
se pode o município legislar sobre
assuntos de interesse local e, ainda suplementar a legislação federal e a
estadual no que couber, não entendemos como não possa execer, ao lado dos
Estados e do Distrito Federal, a competência para suprir ou complementar a
legislação federal.
Chegamos a conclusão acima, após
compatibilizarmos as normas constitucionais antes transcritas, no intuito de
que todas tenham aplicabilidade.
A doutrina, aponta diversas regras
de interpretação hermenêutica constitucional ao intérprete, conforme esclarece
o Mestre Vicente Raó,“a hermeneutica tem por objeto investigar e coordenar por
modo sistemático os princípios científicos e leis decorrentes, que disciplinam
a apuração do conteúdo, , do sentido e dos fins das normas jurídicas e a
restauração do conceito orgânico do direito, para efeito de sua aplicação e
interpretação; por meio de regras e processos especiais procura realizar,
praticamente , estes princípios e estas leis científicas; a aplicação das
normas jurídicas consiste na técnica de adaptação dos preceitos nelas contidos
assim, interpretados. Às situações de fato que se subordinam.” [15]
O mestre lusitano J.J. Gomes Canotilho enumera diversos
princípios e regras interpretativas, dentre as quais destaco as seguintes: da
unidade da constituição; da máxima efetividade ou da eficiência e da força
normativa da constituição. Pela primeira, a interpretação constitucional deverá
ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas. Já a segunda,
à norma constitucional deve ser atribuíso o sentido que maior eficácia lhe
conceda. E, por último, entre as interpretações possíveis, deve ser adotada
aquela que garanta maior eficácia, apicabilidade e permanência das normas
constitucionais.
Portanto, a finalidade dessas regras é a de possibilitar a manutenção
das leis no ordenamento jurídico, compatibilizando-as com o texto
constitucional.
Vale registrar, que o Supremo Tribunal Federal, por meio do
Ministro Moreira Alves, em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade
entendeu que a técnica da interpretação conforme a constituição:“só é
utilizável quando a norma impuganada admite, dentre as várias interpretações
possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da
norma é unívoco”[16]
Portanto, diante do disposto acima e, diante do contido nos
incisos I e II do artigo 30 antes transcrito, entendo, que apesar de o artigo
24 da CRFB/88 não ter incluído o Município como competente para legislar
concorrentemente sobre o desporto, este, poderá, não só suplementar a legislação
federal e a estadual, como também, complementá-la, no que couber.
Ultrapasada esta etapa, passemos agora à análise dos
dispositivos do artigo 217, inclusive.
Notas:
[1] In Formação
da Teoria Constitucional, 2ª Edição, Editora Renovar, pag 1.
[2] Direito
Constitucional, Editora Atlas, 7ª Edição.
[3] “Momentos
formativos desta noção – O conceito de constituição, como não poderia deixar de
acontecer, serviu aos entusiasmos revolucionários e à ideologia racional
ilustrada; encontrou refração e remodelação, depois, por parte dos
conservadores.
Como momentos de formação do conceito contemporâneo de
constituição, cabe specialmente lembrar as expressões passionalmente vinculadas
na Revolução Francesa, quer ao reivindicar-se uma Assembléia Constituinte, quer
ao exigir-se uma constituição nacional ( uma constituição que superasse as
diferenças regionais, que eram franquias provinciais, em favor de uma mais
larga imagem legislativa e administrativa da França).” Nelson Saldanha, in ob. cit. pag. 117
[4] in Manual de Direito Constitucional, Jorge Miranda,
pag. 138
[5] Curso de
direito Constitucional Positivo, 8ª Edição, Editora Malheiros, pag. 39/40.
[6] Ob.cit,pag. 13/14.
[7] In Curso de
Direito Constitucional, 13ª Edição, Editora Saraiva, pag 39.
[8]
Anteriormente à promulgação da constituição de 1988 vigoraram as seguintes
constituições : 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969. Compulsando, todas,
constatar-se-á que o desporto não foi tratado em nenhum de seus dispositivos[8].
Contudo, por se tratar de uma atividade que, direta ou indiretamente, envolve
um universo de pessoas, outra solução não restou ao constituinte originário de
1988, a não ser, tratar do desporto em sede constitucional.
[9] Pinto
Ferreira, Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 1995 Vol. 07 p.177.
[10] Desporto na
Nova Constituição, Editor Sergio ª Fabris, 1990 pag. 9.
[11] Inciso XVII do artigo 8º da constituição de 1967/69.
[12]
Art.24, § 1º – No âmbito
da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer
normas gerais, da CFRB/88.
[13] Artigo 24, §
2º – A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui
a competência suplementar dos Estados, da CRFB/88.
[14] Art.24, §
3º – Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a
competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades, da CRFB/88.
[15] Alexandre
de Moraes, ob cit pág. 41.
[16] Ação Direta
de Inconstitucionalidade n.º 1.344-1/ES
– STF – Rel. Min. Moreira Alves.
Informações Sobre o Autor
Rogério José Pereira Derbly
Advogado; Ex-Assessor Jurídico das Secretarias Municipais de Urbanismo e Meio Ambiente do Município do Rio de Janeiro 1995-2001