O desporto e a Justiça Desportiva

Resumo: O presente artigo tem como escopo propor uma reflexão sobre o desporto e o apoio constitucional proporcionado pelo Estado; faz-se, também, uma análise sobre a Justiça Desportiva e suas instâncias. Sendo tratado, o tema, segundo método de abordagem dialética e de construções doutrinárias associadas com a legislação vigente no país, a partir do dever que o Estado tem de fomentar a prática desportiva, além de esclarecer a valorização da Justiça Desportiva a partir da Constituição Federal de 1988, sem, no entanto, jurisdicionalizá-la. Por conseguinte, será elucidado como está dividida a Justiça Desportiva, como é o seu funcionamento, sua importância no ramo do esporte, além de polemizar sobre a possibilidade da criação de um processo seletivo para a escolha dos membros participantes da Justiça Desportiva como um todo, assim como acontece nos cargos do Poder Judiciário. Destarte, um posicionamento da Justiça Desportiva entre os órgãos do Poder judiciário poderia acabar com a imagem distorcida que a sociedade tem acerca da Justiça Desportiva. Ressalta-se, também, a importância de que fosse possível selecionar indivíduos cujas capacidades para assumir um cargo da Justiça Desportiva fossem demonstradas através de processo seletivo, e não mais por indicação de certas entidades.

Palavras chaves: Justiça Desportiva, desporto, Poder Judiciário.

Este artigo propõe-se a fazer uma reflexão acerca do direito constitucional que o cidadão brasileiro tem de praticar o desporto, sendo fomentado pelo Estado. Além de procurar explanar sobre a constituição da Justiça Desportiva em suas várias instâncias.

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Associando construções doutrinárias com a legislação vigente atualmente no país, será tratado sobre o dever do Estado em fomentar a prática desportiva, além de explicar que a Constituição valorizou demais a Justiça Desportiva, sem, no entanto, jurisdicionalizá-la, ou seja, transformá-la em um ramo do Poder judiciário. Por conseguinte, será elucidado como está dividida a Justiça Desportiva, como é o seu funcionamento, sua importância no ramo do esporte, além de polemizar sobre a possibilidade da criação de um processo seletivo para a escolha dos membros participantes da Justiça Desportiva como um todo.

A Constitucionalização do desporto através do art. 217 da Carta Magna de 1988 teve a virtude de ressaltar que as exaltadas potencialidades do desporto brasileiro ganham mais consistência e força expressiva quando é a própria Constituição que aponta diretrizes para que as atividades desportivas desenvolvam-se em clima de harmonia, de liberdade e de justiça, com sentido de responsabilidade social.

A CF de 1988 considera ser dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não-profissional; proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

A Constituição valorizou a Justiça Desportiva, quando estabeleceu que o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias daquela. Mas impôs a ela um prazo máximo para proferir a decisão final, que é de sessenta dias, após o qual, evidentemente, o Poder Judiciário poderá conhecer da controvérsia.

Na mesma Constituição, a palavra justiça pode conter dois entendimentos: primeiro sentido seria o que se relaciona com o ideal, à justiça como “valores supremos de uma sociedade fraterna” (preâmbulo), um objetivo fundamental da república (art. 3º) e um balizador da atividade econômica (art. 170). O segundo entendimento é com relação aos Órgãos do Poder Judiciário, tem caráter institucional (art. 92 e ss.), às funções essenciais do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Advocacia e da Defensoria Pública (art. 127 e ss.), à justiça de paz (art. 98, II) e à Justiça Desportiva (art. 217, §1º e §2º).

Analisando o aspecto institucional, a Justiça Desportiva é composta por tribunais desportivos, cuja competência também se encontra nos parágrafos do art. 217 da Constituição Federal de 1988. Esses tribunais que compõem a Justiça Desportiva, ou “Tribunais de Justiça Desportiva”, não estão colocados como órgãos do Poder Judiciário (art. 92 e ss.), são considerados tribunais meramente administrativos. Podem, também, serem considerados como meio alternativo para a solução de litígios criados no âmbito desportivo.

As entidades de administração do desporto, segundo definição da Lei 9.615 de 1998, também conhecida como Lei Pelé, são pessoas jurídicas de direito privado, com organização e funcionamento autônomo (art. 16), enquanto os tribunais de Justiça Desportiva constituem unidades autônomas vinculadas a essas entidades de administração (art. 52). A Justiça Desportiva vinculada às entidades de administração do desporto, portanto, deve seguir a estrutura imposta pelos artigos 52 e seguintes da Lei 9.615/98.

A Lei 9.615 de 1998 aborda esta delimitação de funções, relacionando a competência da Justiça Desportiva às infrações disciplinares e às competições desportivas, previstas nos Códigos Desportivos.

Já o art. 50 estabelece que a organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva devem ser definidos em Códigos de Justiça Desportiva e são limitados ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas.

Por infrações disciplinares, entende-se a conduta (por ação ou omissão) que, de alguma forma, viole os códigos de Justiça Desportiva, seja por ferir o decoro e/ou a dignidade do esporte, também, por prejudicar o correto desenvolvimento das relações atinentes ao desporto.

De acordo com o emérito Sebastião Roque Júnior apud Luiz César Cunha Lima, “a Justiça Desportiva é um sistema de julgamento que caminha de forma paralela à jurisdição normal: objetiva dirimir as lides surgidas no campo esportivo”. “As lides tipicamente desportivas são controvérsias que, por sua natureza e pelas circunstâncias em que soem acontecer, não extrapolam os limites e o terreno da competição desportiva tout court, sendo, por isso, desejável que venham a ser dirimidas interna corporis”.

As lides desportivas, em sentido estrito, são as relacionadas às regras da competição, entre elas: suspensão após expulsão do campo de jogo, multa por infração a regra disciplinar (como retirada do uniforme, por exemplo), etc.

É importante destacar que as lides desportivas stricto sensu vigoram em todas as confederações desportivas e, conseqüentemente, para todas as entidades de prática desportiva do mundo. Não estão exclusivamente à mercê do legislador de cada país, pois derivam de um conjunto legal comum a todas as nações. Valem urbi et orbi (em ou por toda parte), motivo pelo que não devem ser julgadas pelo magistrado comum, conhecedor e/ou aplicador apenas de sua legislação pátria.

Entretanto, o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal afirma peremptoriamente que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Em razão disso, também são admitidas perante a Justiça Comum as ações relativas à disciplina e às competições desportivas, porém, existe uma indicação para que seja usada a Justiça Desportiva e não a Comum.

Não figuram no rol de lides tipicamente desportivas as relações trabalhistas entre atletas e entidades de prática de desportiva; contratos de licença de uso de imagem de atletas profissionais; controvérsias oriundas da relação de consumo entre torcedor e organizador de evento esportivo, etc.

Igualmente, são estranhos à Justiça Desportiva atos praticados em atividades desportivas não-oficiais ou não-oficializadas (jogos de campeonatos amistosos) e jogos não promovidos pela respectiva federação (caso de um atleta que participa de uma “pelada” com amigos, por exemplo).

Ademais, a velocidade com que se desenvolvem as competições demanda um pronto atendimento por parte da Justiça Desportiva, de modo a evitar a inocuidade dos processos. Não haveria sentido em julgar na Justiça Comum um caso de suspensão pelo recebimento de um cartão vermelho (expulsão) em um campo de futebol, pois os trâmites processuais seriam demasiadamente longos, o que inviabilizaria a punição do atleta para as próximas partidas, por exemplo.

O art. 52 da Lei 9.615 de 1998 prevê uma estrutura orgânica de caráter hierárquico para os denominados órgãos integrantes da Justiça Desportiva, reconhecendo-os como entes “autônomos e independentes das entidades de administração do desporto de cada sistema” como foi citado anteriormente.

A autonomia consiste na relação equilibrada, seja de maior ou menor dependência, com os demais poderes da entidade de administração do desporto (assembléia e diretoria), de forma similar ao que ocorre no sistema de freios e contrapesos entre os poderes estatais. Assim, impõe-se o respeito às prerrogativas de cada órgão interno e o trato respeitoso recíproco. Esta autonomia dos órgãos integrantes da Justiça Desportiva se reflete, por exemplo, na aparente dependência físico-financeira destes em relação às entidades de administração do desporto (art. 3º do Código Brasileiro de Justiça Desportiva – custeio do funcionamento promovido na forma da lei). A dependência é aparente, visto que a diretoria da entidade de administração do desporto está obrigada a suprir as necessidades materiais dos órgãos da Justiça Desportiva, por força do § 4º do art. 50 da Lei 9.615 de 1998.

A composição dos órgãos da Justiça Desportiva está prevista no art. 55 da Lei Pelé que diz que o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e os Tribunais de Justiça Desportiva (TJD) serão compostos por nove membros, sendo dois indicados pela entidade da administração do desporto; dois indicados pelas entidades de prática desportiva que participem de competições oficiais da divisão principal; dois advogados com notório saber jurídico desportivo, indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil; um representante dos árbitros, por estes indicado; dois representantes dos atletas, por estes indicados.

Conforme o § 2º do mesmo artigo, o mandato dos Tribunais de Justiça Desportiva terá duração máxima de quatro anos, permitida apenas uma recondução.

Nada impede que os membros dos Tribunais de Justiça Desportiva não sejam formados em Direito, pois o § 4º do artigo supramencionado diz que poderão ser bacharéis em Direito, “ou pessoas de notório saber jurídico, e de conduta ilibada”, ou seja, faz-se necessário o saber jurídico, entretanto não se faz necessária a formação acadêmica em Direito.

Há uma década discutia-se se ao Magistrado seria possível cumular atuação nos Tribunais Desportivos. Defendiam, os que advogavam pela licitude, que à cumulação, por não ser remunerada, não se encontrava impedimento. De outra parte, os que entendiam pela impossibilidade de cumulação enxergavam apoio na única permissão constante no art. 95, parágrafo único, I, da Constituição Federal que diz ser vedado aos juizes “exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério”.

Depois de tantos anos de debate e, em especial após os efeitos da Emenda Constitucional 45 de 2004, esse assunto fora levado a análise do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, em julgamento finalizado em 19.12.05, determinou que aos Magistrados é inconstitucional a cumulação de cargos com a Justiça Desportiva, sepultando, de vez, as dúvidas que então persistiam.

Todos os que cumulassem funções (estima-se mais de uma centena) deveriam desfazer-se de um deles até 31 de dezembro de 2005. Todo este processo de debate teve muita publicidade devido aos escândalos ocorridos no Campeonato Brasileiro de Futebol de 2005, quando o então presidente do STJD Luiz Zveiter, que cumulava a função com a de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, anunciou a anulação de 11 jogos apitados pelo árbitro Edílson Pereira de Carvalho no Campeonato Brasileiro. Com isso tudo, Luiz Zveiter renunciou ao cargo de presidente do STJD para continuar como magistrado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Deste modo, seria interessante para tornar adequada a Justiça Desportiva aos ditames legais, a realização de um concurso de provas e títulos (seguida de uma pesquisa de credenciamento sobre a idoneidade e vida pregressa do candidato), analogamente ao que ocorre para o preenchimento de vagas no Judiciário e Ministério Público, pois garantiria a essencial independência funcional para auditores e procuradores desportivos.

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Seguindo a linha de pensamento de Luiz César Cunha Lima, membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), as provas poderiam ser realizadas por uma instituição idônea e de reconhecida competência na elaboração de processos de seleção. Os candidatos concorreriam pelas vagas destinadas às associações citadas no art. 55 da Lei 9.615/98.

Com relação à seleção, ele entende que a escolha da empresa responsável pela seleção e a análise da vida pregressa dos candidatos poderia ser realizada pelos TJDs/STJD ou pelas federações/confederação, para que não seja sequer aventada a argumentação de que a existência de concurso poderia ferir a autonomia e independência das federações/confederação e/ou dos TJDs/STJD, inclusive porque assim é feito também pelos órgãos do Poder Judiciário e nem por isso eles perdem a sua independência e sua autonomia.

Já o mandato dos procuradores desportivos e dos auditores poderia continuar com a duração atual. A recondução somente seria permitida aos que concorressem pela entidade cujo número de vagas não tivesse sido preenchido (OAB ou federação/confederação, por exemplo). Nas demais, assumiriam os aprovados no concurso (lembrando-se, logicamente, que os procuradores não são indicados de acordo com a entidade de classe).

Complementa que o estabelecimento de critérios meritocráticos para o provimento de cargos nos TJDs e STJD libertaria auditores e procuradores das pressões e dos constrangimentos aos quais estão expostos todos os que ocupam determinado cargo em razão de indicação política e, via de conseqüência, propiciaria melhores condições para que pudessem atuar de forma independente, isenta, idônea e escorreita.

Portanto, o que seria do mecanismo de tripartição de poderes, e do próprio Estado Democrático de Direito, se todos os magistrados e membros do Ministério Público fossem indicados pelo presidente da República? Como seria se o presidente pudesse escolher, assim como ocorre na Justiça Desportiva, para um cargo de juiz, pessoa como Marcos Valério? Ou para promotor um Duda Mendonça? Todavia, este seria um assunto a ser debatido em outro momento devido à riqueza de problemáticas a serem abordadas. O importante, neste momento, foi demonstrar a importância da Justiça Desportiva, e que ela não pode ser tratada de forma diferente das justiças especializadas, pois o esporte profissional está cada vez mais evoluído, e a necessidade de um órgão que pertença ao Poder Judiciário se torna cada vez mais necessário.

 

Bibliografia
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SCHMITT, Paulo Marcos. Magistrados na Justiça Desportiva. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7664. Acesso em 06 de julho de 2006.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26.ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Márcio Clasen Vieira

 

Acadêmico de Direito da FURG e da Escola Superior de Educação Física da UFPel

 


 

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