O direito de “passe livre” aos portadores de necessidades especiais e aos seus acompanhantes como instrumento de concretização do princípio constitucional da Solidariedade

Resumo: Existem milhares de pessoas portadoras de necessidades especiais que são impedidas de usufruírem dos mais básicos direitos assegurados constitucionalmente, dentre os quais o direito de “ir e vir”, pelo fato de que seus acompanhantes não podem arcar com os custos do transporte coletivo interestadual. Embora haja no ordenamento jurídico brasileiro regras destinadas a reduzir as imensas barreiras enfrentadas pelos portadores de deficiência física ou mental, essas regras, além de se mostrarem insuficientes, são rotineiramente desrespeitadas. Dentre os diplomas jurídicos protetivos dos portadores de deficiência, podemos destacar a Lei n.° 8.899/1994, que em seu artigo 1.° dispõe: “é concedido passe livre às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual”. A normas infralegais que regulamentam a Lei n.°8.899/1994 não trazem nenhuma consideração sobre os casos em que as pessoas portadoras de deficiência e comprovadamente carentes necessitem, para o seu deslocamento, do acompanhamento de outras pessoas, seja para a garantia da integridade física ou psíquica, ou mesmo para auxiliar a higiene do portador de necessidades especiais durante a viagem. Na prática, essa ausência de previsão expressa sobre a gratuidade da passagem para os acompanhantes de pessoa portadora de deficiência, equivale a negar, por vias oblíquas, o direito previsto no art. 1.º da Lei n.° 8.899/1994. A aparente lacuna legislativa deve ser integrada pelo ordenamento jurídico, com base nos princípios constitucionais da solidariedade e da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

Sumário: 1) A Lei 8.899/94 e os seus atos regulamentadores; 2) Dos Projetos de Lei que ampliam o direito ao “passe livre” dos portadores de necessidades especiais; 3) Dos princípios constitucionais da solidariedade, da isonomia material e da máxima efetividade dos direitos fundamentais; 4) Análise dos precedentes jurisprudenciais do STF; 5) Da imperiosa necessidade de uma atuação afirmativa do Poder Judiciário para que seja respeitado o direito dos portadores de necessidades especiais ao passe livre; 6) Conclusões.

Existem milhares de pessoas portadoras de necessidades especiais que não conseguem exprimir sua vontade e, ainda, outras milhares que, como aquelas, são impedidas de usufruírem dos mais básicos direitos assegurados constitucionalmente, dentre os quais o direito de “ir e vir”, pelo fato de que seus acompanhantes não podem arcar com os custos do transporte coletivo interestadual.

Embora haja no ordenamento jurídico brasileiro regras destinadas a reduzir as imensas barreiras enfrentadas pelos portadores de deficiência física ou mental, tais como o preconceito, a discriminação e inúmeros outros obstáculos físicos, essas regras, além de se mostrarem insuficientes, são rotineiramente desrespeitadas.

Nesse sentido, vale lembrar o caso do estudante, portador de necessidades especiais em razão de uma distrofia muscular de origem genética, Leonado Feder, de 20 anos, veiculado na imprensa pelo jornal Folha de São Paulo em 23/03/2005, que, apesar de aprovado no vestibular para a faculdade de Jornalismo da Universidade de São Paulo – USP, uma das mais concorridas do país, foi impedido de assistir as aulas, que seriam ministradas no segundo andar do edifício central da ECA (Escola de Comunicações e Artes), porque não havia elevador nem rampas que facilitassem o acesso da cadeira de rodas.

Dentre os diplomas jurídicos protetivos dos portadores de deficiência, podemos destacar a Lei n.° 8.899/1994, que em seu artigo 1.° dispõe: “é concedido passe livre às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual”.

O Decreto n.º 3.691/2000, regulamentando a Lei n.° 8.899/1994, disciplina que “as empresas permissionárias e autorizatárias de transporte interestadual de passageiros reservarão dois assentos de cada veículo, destinado a serviço convencional, para ocupação das pessoas beneficiadas pelo art. 1º da Lei n.º 8.899, de 29 de janeiro de 1994, observado o que dispõem as Leis nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, 8.742, de 7 de dezembro de 1993, 10.048, de 8 de dezembro de 2000, e os Decretos nº 1.744, de 8 de dezembro de 1995, e 3.298, de 20 de dezembro de 1999”.

A Portaria Interministerial n.º 003/2001, dos Ministérios dos Transportes, da Justiça e da Saúde, disciplinando o disposto no Decreto 3.691/2000, não traz nenhuma consideração sobre os casos em que as pessoas portadoras de deficiência e comprovadamente carentes necessitem, para o seu deslocamento, do acompanhamento de outras pessoas, seja para a garantia da integridade física ou psíquica, ou mesmo para auxiliar a higiene do portador de necessidades especiais durante a viagem.

Na prática, essa ausência de previsão expressa sobre a gratuidade da passagem para os acompanhantes de pessoa portadora de deficiência, equivale a negar, por vias oblíquas, o direito previsto no art. 1.º da Lei n.° 8.899/1994.

Em virtude disso e objetivando reduzir alguns dos obstáculos enfrentados diariamente pelos portadores de necessidades especiais, o projeto de Lei n.° 709/2007, de autoria do Deputado Onyx Lorenzoni – com pareceres favoráveis da Comissão de Constituição e Justiça e da Comissão de Seguridade Social e Família –, prevê a concessão do direito ao passe livre, nas mesmas condições já garantidas ao portador de deficiência, nos termos da Lei n.° 8.899 de 29 de junho de 1994, ao acompanhante de pessoa portadora de deficiência física ou mental, desde que sejam ambos de baixo poder aquisitivo.

Merece destaque, ao nosso sentir, o voto do Deputado Indio da Costa, aprovado à unanimidade pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, verbis:

“É notória, em nosso mundo jurídico, a falta de regras de fácil aplicação destinadas a diminuir as imensas barreiras enfrentadas pelos portadores de deficiência física ou mental em nosso cotidiano. Por mais que surjam idéias, ainda que na forma de diplomas legais, destinadas a diminuir estas dificuldades, percebemos, na prática, a ineficiência das leis que parecem não encontrar ambiente propício para viger em nossa sociedade.

As ações até aqui tomadas pelo Poder Público têm-se mostrado tímidas frente aos inúmeros obstáculos enfrentados pela população portadora de deficiência física ou mental e de baixa renda. São agruras que praticamente relegam o cidadão de bem, cumpridor de seus deveres, a um ser de segunda categoria, sem possibilidades mínimas de usufruir os mais básicos direitos constitucionais, como o de ir e vir.

Buscando contribuir para o aperfeiçoamento de nosso arcabouço jurídico, o projeto em tela apresenta-se, de forma objetiva, como mais uma tentativa de promover melhores condições de vida a esses cidadãos já penalizados pelas limitações de deslocamento e de competitividade em nosso contexto social.

Ao permitir que acompanhantes, comprovadamente de baixa renda, possam tutelar, seja no aspecto físico ou no mental, deficientes durante deslocamentos em transporte coletivo interestadual, estamos garantindo a milhares de brasileiros a conquista de direitos civis básicos que, para a grande maioria da população, pouco representa, por parecer-lhes um ato corriqueiro e de extrema simplicidade.

Por tratar-se de uma proposição positiva, alterando, para melhor, uma lei que promove melhores condições de vida a uma parcela sofrida da população brasileira e crendo que iniciativas dessa natureza possam promover uma legislação mais justa para os menos agraciados pela sorte, voto pela aprovação do Projeto de Lei nº 709, de 2007.

Embora haja Projeto de Lei que propõe regular a matéria, fato é que, hodiernamente, como já referido, os diplomas legais e os atos infralegais que regulamentam a matéria não fazem qualquer alusão ao direito do passe livre para os acompanhantes das pessoas portadoras de necessidades especiais, quando o acompanhamento dessas pessoas é imprescindível ao próprio exercício do direito de passe livre aos portadoras de deficiência comprovadamente carentes.

A alternativa mais cômoda – e também a mais simplista – para essa aparente lacuna legislativa seria a argumentação de que o pedido de concessão de passe livre aos acompanhantes de pessoas portadoras de deficiência física ou mental, sendo ambos de baixo poder aquisitivo, é juridicamente impossível por ausência de previsão legal. Entretanto, essa alternativa se mostra, também, a que mais se afasta do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

O princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, mais do que norma positivada no artigo 5.º, § 1.º, da Constituição da República, constitui-se em regra de hermenêutica constitucional que visa privilegiar os direitos humanos, dando-lhes a maior eficácia possível.

Segundo o abalizado magistério de Gomes Canotilho, o princípio da máxima efetividade “é um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).”[1]

Adverte, também, Carlos Maximiliano que: “o Código fundamental tanto prevê no presente como prepara o futuro. Por isso ao invés de se ater a uma técnica interpretativa exigente e estreita, procura-se atingir um sentido que tornem efetivos e eficientes os grandes princípios de governo, e não o que os contrarie ou reduza a inocuidade.”[2]

O direito à gratuidade de passagem interestadual aos portadores de necessidades especiais comprovadamente carentes, visa a assegurar a isonomia, garantindo para essa parcela da população o direito constitucional de “ir e vir”, não se constituindo, pois, em privilégio, mas, sim, em concretização da isonomia material, objetivo do Estado Social e Democrático de Direito brasileiro.

A isonomia material, diferentemente da igualdade formal, não se contenta apenas com a previsão de regras jurídicas sem operatividade, pois, segundo a lição de Paulo Bonavides:

“O Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática. Trata-se de um conceito que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalência de direitos. Obriga o Estado, se for o caso, a prestações positivas; prover meios, se necessário, para concretizar comandos normativos de isonomia. Noutro lugar já escrevemos que a isonomia fática é o grau mais alto e talvez mais justo e refinado a que ode subir o princípio da igualdade numa estrutura normativa de direito positivo.”[3]

Nesse diapasão, o Pretório Excelso já decidiu pela constitucionalidade da Lei n.° 8.899/1994 – questionada sob os argumentos da livre iniciativa, da propriedade privada e do Estado liberal –, oportunidade em que ressaltou a importância da adoção de políticas públicas que propiciem condições para que se amenizem os efeitos das carências especiais dos portadores de deficiências.

Na Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 2.649-6/DF, julgada improcedente por maioria dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, a Ministra relatora Cármen Lúcia traz importantes considerações sobre o tema aqui tratado, a saber:

“Em 30.3.2007, o Brasil assinou, na sede da ONU, em Nova York, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como seu Protocolo Facultativo.

Os Países signatários dessa Convenção e que vieram a ratificar o Tratado antes mencionado teriam, necessariamente, de implementar medidas para dar efetividade ao que foi ajustado.

Segundo informações do sítio da Organização das Nações Unidas, aproximadamente dez por cento da população mundial porta algum tipo de deficiência, o que significa cerca de seiscentos e cinqüenta milhões de portadores de necessidades especiais em todo mundo. Desse total, oito em cada dez deficientes, ou seja, oitenta por cento desse total, mora em países em desenvolvimento. E o que há de ser realçado é que é na população economicamente carente que se concentram os maiores índices de marginalidade e de exclusão desses cidadãos.(…).

Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei n. 8899/94 a elas.(…).

Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se afirme como uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.(…).

O princípio constitucional da solidariedade tem, pois, no sistema brasileiro, expressão inegável e efeitos definidos, a obrigar não apenas o Estado, mas toda a sociedade. Já não se pensa ou age segundo o ditame de ‘a cada um o que é seu’, mas ‘a cada um segundo a sua necessidade’. E a responsabilidade pela produção destes efeitos sociais não é exclusiva do Estado, senão que de toda a sociedade.”

Em seu voto na referida ADI, o Ministro Carlos Brito elogia a técnica legislativa empregada na Lei n.º 8.899/1994, afirmando que:

“Essa lei é um ponto de confluência muito interessante entre ação distributivista e ação afirmativa. Vale dizer, a lei promove ao mesmo tempo inclusão social, quando fala do carente econômico, e integração social ou comunitária, quando fala do portador de deficiência, sabido que são, hoje, objetivos constitucionais diferentes. A inclusão social é uma coisa, a integração comunitária é outra coisa. Aliás, a Constituição fala de integração social comunitária três vezes, exatamente a propósito do idoso e dos portadores de deficiência. Portanto, Senhor Presidente, com essa breve intervenção, acompanho o voto da eminente Relatora. Voto brilhante, consistente, que marcará época, nesse campo da inclusão social e da integração social, na nossa Corte.”

Importante frisar que, em face do princípio constitucional da solidariedade, o ônus de construir  uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, inciso I, da CF) não será apenas de uma parcela da população ou do Poder Público, mas, sim, de toda a sociedade.

Sendo assim, não assiste razão ao argumento de violação do princípio da livre iniciativa, pelo suposto fato de que apenas as empresas de transporte coletivo interestaduais seriam oneradas com a concessão do passe livre aos acompanhantes de pessoas portadores de necessidades especiais, haja vista que, como regra de comércio, as mencionadas empresas concessionárias do serviço público de transporte coletivo (art. 175 da CF) certamente repassarão aos demais usuários pagantes os custos para a concretização do benefício legalmente assegurado aos portadores de deficiência.

Portanto, não será apenas uma parcela, mas sim toda a sociedade, que arcará com os custos da promoção do princípio constitucional da solidariedade e da inclusão social dos portadores de necessidades especiais.

A imperiosa necessidade de uma atuação afirmativa do Poder Judiciário para que seja respeitado o direito dos portadores de necessidades especiais ao passe livre, mostra-se ainda mais evidente se confrontarmos os textos da Lei n.º 8.899/1994 e do Decreto n.º 3.691/2000, com a Resolução n.º 009/2007 da ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil, a qual dispõe:

“Art. 47. Caberá aos passageiros portadores de deficiência, a fim de resguardar-lhes o direito a autonomia e ao livre arbítrio, definir, junto a empresa aérea, se necessitam ou não de um acompanhante, observando o que consta no art. 10.

Art. 48. As empresas aéreas ou operadoras de aeronaves só poderão exigir um acompanhante para o passageiro portador de deficiência, independentemente da manifestação de seu interesse, quando a critério da empresa aérea ou das operadoras de aeronaves, por razões técnicas e de segurança de vôo, mediante justificativa expressa, por escrito, considere essencial a presença de um acompanhante.

§ 1º. Na hipótese de empresa aérea exigir a presença de um acompanhante para o passageiro portador de deficiência, deverá oferecer para o seu acompanhante, desconto de, no mínimo, 80% da tarifa cobrada do passageiro portador de deficiência. (grifou-se).

§ 2º. O acompanhante deverá viajar na mesma classe e em assento adjacente ao da pessoa portadora de deficiência.”

Portanto, apesar de não haver o direito ao passe livre da pessoa portadora de necessidades especiais no âmbito do transporte aéreo, ainda assim, é assegurado o direito a um desconto de, no mínimo, 80% da tarifa cobrada do passageiro portador de deficiência, ao seu acompanhante, na hipótese da pessoa portadora de necessidades especiais necessitar do auxílio de um acompanhante na viagem.

Como se pode depreender, a ausência de uma regulamentação – e no caso do transporte aéreo até mesmo de uma disposição legal – não pode servir de motivo para que não seja promovida a inclusão social das pessoas portadoras de necessidades especiais, seja em razão do princípio constitucional da solidariedade, seja por força da igualdade material, que deve ser sempre buscada em um Estado que pretenda ser adjetivado como “Social de Direito”.

Nessa linha argumentativa, a propósito, a Defensoria Pública da União ajuizou a ação civil pública n.º 2008.60.00.012950-0, que tramita na Seção Judiciária de Mato Grosso do Sul, requerendo a gratuidade das passagens rodoviárias interestaduais aos acompanhantes das pessoas portadoras de deficiência quando ambas comprovaram insuficiência de recursos financeiros para custearem as passagens.

Concluindo, podemos afirmar que o efetivo respeito ao direito dos portadores de necessidades especiais, consistente na isenção tarifária da passagem no transporte público coletivo interestadual, somente será assegurado com a concessão da gratuidade de passagem ao acompanhante do deficiente, quando comprovada a carência econômica da pessoa portadora da deficiência e do seu acompanhante, nos termos da Lei n° 8.899, de 29 de junho de 1994.

 

Notas:
[1]  J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e teoria da Constituição, 6ª edição, p. 227
[2]  Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19ª edição, p. 250.
[3]  Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, 2003, p. 378.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Jair Soares Júnior

 

Defensor Público Federal, chefe da Defensoria Pública da União no Mato Grosso do Sul, pós-graduado em Direito das Relações Sociais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público/MS e pós-graduado em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco/RJ

 


 

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