Resumo: O Estado brasileiro é um estado não-confessional ou laico desde a época da proclamação da República e por meio do Decreto nº 119-A, de 17 de janeiro de 1890. Tal situação foi corroborada pela Constituição Federal de 1988 em diversos dispositivos constitucionais: art. 5.º, inc. VI, art. 19, inc. I, art.. 150, inc. IV, b. Ocorre que tal neutralidade vêm sendo desrespeitada na ostentação de símbolos religiosos em repartições públicas, especialmente em escolas, no Judiciário e no Legislativo. Apesar de tal matéria já ter sido apreciada pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, a questão está longe de ser encerrada. Recentemente, a Itália foi condenada pela Corte Européia de Direitos Humanos por ostentar crucifixos em Escolas Públicas e o Tribunal Constitucional alemão já se posicionou acerca da esperada laicidade do Estado, especialmente em relação à ostentação de crucifixos em órgãos do Judiciário.. Fato é que o Estado deve tratar todas as crenças com igualdade, cabendo-lhe assegurar a coexistência pacífica entre as diversas religiões e mesmo diante do ateísmo.
Sumário: Reminiscências históricas e a questão do Preâmbulo constitucional. A consagração da liberdade religiosa plena. A questão dos símbolos religiosos nos prédios públicos. Considerações finais.
Reminiscências históricas e a questão do Preâmbulo constitucional
A análise da relação entre Estado e Igreja remonta à Antigüidade, onde muitas vezes se confundiam as figuras do Chefe de Estado e do líder religioso da época. Na Idade Média houve enorme influência religiosa nos Governos num período que ficou conhecido como “Era das Trevas”[1], onde as decisões políticas jamais eram tomadas sem a aprovação da Santa Igreja. Em terras brasileiras, tal relação foi bastante acentuada desde o início já que em seus primórdios o Brasil foi chamado de “Terra de Santa Cruz” e teve como primeiro ato solene a celebração de uma missa realizada em 26 de abril de 1500 pelo Frei Henrique de Coimbra.
A Constituição brasileira outorgada de 1824 estabelecia a religião católica como sendo a religião oficial do Império. As demais religiões só eram toleradas em seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo (art. 5.º). Além disso, só se permitia a elegibilidade para o Congresso àquelas pessoas que professassem o catolicismo. No Brasil, a separação entre Estado e Igreja só ocorreu oficialmente após a proclamação da República por meio do Decreto nº 119-A, de 17 de janeiro de 1890.
Conforme consagrado atualmente pela Constituição Federal de 1988, o Brasil é o Estado laico, isto é, não tem religião oficial. Com isso, se reafirma a separação total entre Estado e Igreja. Para afastar qualquer dúvida nesse sentido, a Constituição determina expressamente ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (art. 19, inc. I).
Ora, por definição, Estado laico é Estado leigo, secular, neutro, imparcial, indiferente, não-confessional. Assim, há nitidamente um erro de interpretação quando se diz levianamente que o Estado brasileiro acredita em Deus pelo que foi estabelecido no Preâmbulo da atual Constituição:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (grifei).
O Direito Constitucional ensina que o texto preambular não possui força cogente e só tem alguma utilidade quando é confirmado pelo texto normativo que integra a própria Constituição. Ocorre que o único ponto do Preâmbulo não reforçado pelo texto constitucional foi justamente a referência a Deus. Além de não reafirmado, o artigo 19, inciso I, como já visto, aponta justamente para o contrário. Na verdade, a única interpretação possível que se pode extrair do Preâmbulo é a de que a “proteção de Deus” invocada é pertencente somente à pessoa dos constituintes originários e seu caráter é meramente subjetivo.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente o pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Partido Social Liberal – PSL contra o preâmbulo da Constituição do Estado do Acre, em que se alegava a inconstitucionalidade por omissão da expressão “sob a proteção de Deus”, constante do preâmbulo da CF/88. Considerou-se que as invocações da proteção de Deus no preâmbulo da Constituição não tem força normativa, afastando-se a alegação de que a expressão em causa seria norma de reprodução obrigatória pelos Estados-membros. In verbis:
“[…] tomado em seu conjunto, esta locução ‘sob a proteção de Deus’ não é uma norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato – como afirmou Clemente Mariane, em 1946, na observação recordada pelo eminente Ministro Celso de Mello – jactansiosa e pretensiosa, talvez – de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não sendo norma jurídica, nem princípio constitucional, independentemente de onde esteja, não é ela de reprodução compulsória aos Estados-membros”.[2]
O trecho reproduzido acima não deixa quaisquer dúvidas de que, em virtude da ausência de caráter normativo do preâmbulo constitucional, a cláusula “sob a proteção de Deus” ali contida não pode servir a qualquer propósito interpretativo. E dessa forma consagra-se a plena liberdade de religião ou de crença do Estado brasileiro estabelecida em vários outros dispositivos constitucionais: art. 5.º, inc. VI, art. 19, inc. I, art. 150, inc. IV, b.
A consagração da liberdade religiosa plena
A liberdade religiosa se inclui entres as liberdades espirituais e sua exteriorização é forma de livre manifestação do pensamento. A Constituição previu essa liberdade de modo explícito (art. 5.º, inc. VI) e vedou qualquer relação que possa haver entre Igreja e Estado (art. 19, inc. I) consagrando o Estado laico como modelo a ser adotado de forma definitiva.
Não restam dúvidas de que “a conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira consagração de maturidade de um povo”[3], como diz Alexandre de Moraes. O autor continua a ressaltar a importância do tema: “A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois, sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa humana, de forma a constrangê-lo a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e à própria diversidade espiritual”[4].
Aliás, é preciso dizer que o Brasil é reconhecido como o maior país católico do mundo, conforme estudo publicado pela CNBB[5]. Entretanto, existem diversas outras religiões professadas pela população brasileira que, mesmo em sua minoria, merecem a proteção constitucional adequada. Afinal, a principal razão de um Estado não-confessional é garantir às pessoas que possam viver sua fé, seja ela qual for.
Além disso, o estado laico deve garantir o respeito e a tolerância à própria descrença, como anota Alexandre de Moraes: “a liberdade de convicção religiosa abrange inclusive o direito de não acreditar ou professar nenhuma fé, devendo o Estado respeito ao ateísmo”[6]. No mesmo sentido, Pontes de Miranda já alertava sob a ótica da Constituição anterior que: “o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele juridicamente tal direito”[7], assim como a “liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e de não ter crença”[8].
A questão dos símbolos religiosos nos prédios públicos
Nessa perspectiva, parece claro que o Estado não tem o direito de ostentar símbolos religiosos, sejam eles quais forem. Mas em função da forte influência cristã em nossa sociedade, tornou-se bastante comum a colocação de crucifixos em repartições públicas, especialmente em escolas, no Judiciário e no Legislativo. Isso fez com que muitos não-cristãos se sentissem incomodados em sua fé e postulassem a sua retirada com base nos princípios constitucionais já citados. A questão não é nova e de certa forma já foi enfrentada pelo Judiciário, o que demonstra a polêmica do assunto. Entretanto, parece claro que um Estado neutro não poderia ser identificado com fé alguma.
Quando o assunto é esse, não têm faltado defensores dispostos a mitigar de forma inaceitável o consagrado princípio constitucional da liberdade religiosa em seu favor. Entre seus argumentos mais utilizados, consta que “a retirada de símbolos já instalados, mesmo que em repartições públicas, leva à alteração de uma situação já consolidada em um país composto por uma quase totalidade de adeptos da fé cristã, e agride desnecessariamente os sentimentos de milhões de brasileiros, apenas para contentar a intolerância e a supremacia da vontade de um restrito grupo de pessoas”[9].
Ora, levando-se tal argumento em consideração, parece que a suposta “agressão” é despropositada apenas em relação aos adeptos da fé cristã, sendo plenamente justificada quando envolve o sentimento da minoria da população não-cristã do país. Nesse sentido, não há qualquer fundamento que justifique que a religião majoritária deva merecer do Estado um tratamento especial do Estado. Provavelmente, isso iria instaurar um ciclo vicioso de desigualação entre crenças e que poderia culminar com a total aniquilação dos movimentos religiosos minoritários. Fosse querer reafirmar a laicidade do Estado brasileiro por esse meio, teríamos que ostentar nos prédios públicos uma incontável amostra de símbolos em alusão às diversas religiões que fazem parte da fé da população em geral, inclusive as de origem afro-brasileiras.
O que estabelece a Constituição é que o Estado brasileiro atualmente deve respeito a qualquer forma de crença religiosa e ao ateísmo indiscriminadamente, pouco importando se isso representa a “maioria” da população ou apenas uma minoria reprimida. Por isso, é evidente que o predomínio do Catolicismo no Brasil não justifica a ostentação de símbolos cristãos (crucifixo e Bíblia, p. ex.), em sua maior parte, nos órgãos públicos. A propósito do assunto, Roberto Arriada Lorea afirma que “o Brasil é um país laico e a liberdade de crença da minoria, que não se vê representada por qualquer símbolo religioso, deve ser igualmente respeitada pelo Estado”[10].
No mesmo sentido, Maria Cláudia Bucchianeri[11] escreveu o seguinte:
“A fixação ou manutenção, pelo Estado ou por seus Poderes, de símbolos distintivos de específicas crenças religiosas representa uma inaceitável identificação do ente estatal com determinada convicção de fé, em clara violação à exigência de neutralidade axiológica, em nítida exclusão e diminuição das demais religiões que não foram contempladas com o gesto de apoio estatal e também com patente transgressão à obrigatoriedade imposta aos poderes públicos de adotarem uma conduta de não-ingerência dogmática, esta última a assentar a total incompetência estatal em matéria de fé e a impossibilidade, portanto, do exercício de qualquer juízo de valor (ou de desvalor) a respeito de pensamentos religiosos” (grifei).
Outro argumento utilizado com frequência pelos religiosos favoráveis ao uso de símbolos cristãos em prédios públicos, especialmente nas dependências do Poder Judiciário, diz respeito ao fato de serem utilizados como “fontes de inspiração”[12] para a correta atuação dos agentes estatais. Inspiração para quê?, pergunta-se. Certa vez, Ives Gandra da Silva Martins chegou a escrever: “No caso da magistratura, os valores cristãos se tornam ainda mais fortemente ‘fonte de inspiração’ para as decisões, uma vez que ‘fazer justiça’ é, de certo modo, exercer um atributo divino. A justiça humana será tanto menos falha quanto mais se inspirar na justiça divina”[13].
Na verdade, essa afirmação do eminente Ministro deveria causar preocupação e estranheza já que a chamada “justiça divina” nem sempre se assemelha ao ideal de justiça consagrado na Constituição Federal e tido como modelo para a sociedade em que vivemos hoje. Pelo contrário, na leitura da Bíblia, um dos símbolos cristãos mais utilizados, é fácil encontrar atrocidades e massacres ordenados por Deus e perpetrados por seus seguidores, conforme relatado no “esquecido” Velho Testamento. De fato, a Bíblia possui modelos de comportamento ideais e não-ideais, mas a verdade é que ela não pode ser utilizada como “inspiração” ou tida como modelo de “justiça” a ser seguido.
Por outro lado, é sabido que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ já decidiu que o uso de símbolos religiosos em órgãos da Justiça não fere o princípio de laicidade do Estado[14]. Entretanto, é preciso esclarecer que a questão não está resolvida. Isso porque o CNJ deixou a cargo dos juízes a decisão acerca da permanência de crucifixos nas paredes de suas salas de audiência. No Supremo Tribunal Federal, dois ministros já se manifestaram contra a manutenção do crucifixo localizado no plenário: Celso de Mello e Marco Aurélio. Significa dizer que as salas de audiência e Tribunais não são locais de culto, assim como nenhum outro órgão estatal. De fato, a Cruz afigura-se, desde sempre, um símbolo religioso específico da fé cristã, não podendo dissociar-se desse seu significado, o que afronta a opção constitucional pelo Estado laico que já se esperava ver consolidada.
No plano internacional, recentemente a Itália foi condenada pela Corte Européia de Direitos Humanos por ostentar crucifixos em Escolas Públicas no caso Lautsi v. Italy[15]. Já na Alemanha, o Tribunal Constitucional decidiu que a coerção de participar de uma lide sob a cruz, contrariando as convicções religiosas ou ideológicas do litigante, caracteriza uma intervenção na liberdade de crença do mesmo, que acabou por enxergar ali uma identificação do Estado com a fé cristã[16]. E em outra oportunidade, o Tribunal alemão decidiu que “a colocação de cruzes nas salas de aula ultrapassa os limites aceitáveis, pois a cruz não pode ser separada de sua específica referência ao conteúdo religioso da fé cristã”[17].
Considerações finais
O assunto tratado é polêmico justamente porque aborda a convicção religiosa das pessoas e trata de questões de fé. Entretanto, não se pode perder de vista que o Estado brasileiro é laico desde 1891, quando o catolicismo deixou de ser a religião oficial. Assim, a manutenção de ornamentos religiosos em repartições públicas que não sejam museus não faz mais qualquer sentido. É preciso dizer á exaustão que a sociedade brasileira não é composta apenas por cristãos. Representantes de outras religiões, agnósticos e ateus podem sentir-se constrangidos com a exibição ostensiva dos crucifixos. Estes merecem, como qualquer objeto religioso, todo o respeito, mas não precisam ter presença em edifícios oficiais.
Por outro lado, ainda que o número de cristãos supere em muito os adeptos das outras crenças, esse conflito “não deve ser resolvido segundo o princípio majoritário na medida em que o direito fundamental à liberdade de crença visa a proteção, de maneira especial, das minorias”, conforme aponta Paulo Roberto Iotti Vecchiatti[18]. Aliás, a própria idéia de democracia é concebida como o regime jurídico de defesa dos direitos fundamentais das minorias.
Portanto, a linha adotada pelo Estado constitucional brasileiro deve ser de neutralidade absoluta frente às questões religiosas conforme estabelecido pela Constituição Federal. Dessa maneira, ostentar símbolos religiosos que fazem referência apenas a uma religião padece de qualquer carga de razoabilidade na medida em que o Estado deve tratar todas as crenças com igualdade, cabendo-lhe assegurar a coexistência pacífica entre as diversas religiões e mesmo diante do ateísmo.
Informações Sobre o Autor
Átila da Rold Roesler
Procurador Federal da Advocacia-Geral da União, especialista (pós-graduado lato sensu) em Direito Processual Civil, autor do livro “Execução Civil – Aspectos Destacados” pela Editora Juruá, ex-Delegado de Polícia no Estado do Paraná.