“A análise dos conceitos jurídicos e politicos deve revestir-se de utilidade para todos aqueles,que queiram entrar numa dimensão de aprofundamento crítico dos conceitos que hoje determinam o espaço do agir humano e que se encontram codificados nas constituições contemporâneas, com o objetivo de legitimar a relação de obrigação política e o dever de submissão à lei” (…) (Giuseppe Duso. In “O Poder: História da Filosofia e Política Moderna”. Pgs. 8-9)
“VOCÊ NUNCA CHEGARÁ À TERRA PROMETIDA. MAS PODE MARCHAR EM DIREÇÃO A ELA”. (James Callagham [1912 – 2005], político inglês, 1º Ministro de 1976 a 1979)
Sumário: Resumo; 1 Introdução; 2 Breve análise histórica do duplo grau de jurisdição; 3 O duplo grau jurisdicional e as garantias constitucionais; 4 Conclusão; 5 Referências bibliográficas
O duplo grau de jurisdição é postulado constitucional, consectário do devido processo legal. Consiste na possibilidade de impugnar-se a decisão judicial para que seja reexaminada pelo mesmo ou por outro órgão jurisdicional. Embora o conteúdo dogmático do princípio não dê ensejo a maiores divergências, sua existência como regra obrigatória no sistema jurídico brasileiro é assunto que envolve notória controvérsia entre estudiosos do direito processual civil, ou seja, direito adjetivo. Tais questionamentos se exacerbam especialmente quando se fala em celeridade e em duração razoável do processo. Registre-se que, dessa maneira, surgem debates acerca da conveniência de impor restrições aos recursos disponíveis aos litigantes com a função precípua de proporcionar diversos meios de impugnação das decisões judiciais. Controverte a doutrina, outrossim, quanto à natureza jurídica do duplo grau de jurisdição, como garantia constitucional ou não. Pretende-se analisar a dualidade de graus à luz das regras contidas na Constituição da República de 1988 e apontar as razões da inserção do duplo grau jurisdicional como garantia constitucional.
1 INTRODUÇÃO
Apesar de não estar expressamente previsto, a Constituição alberga o duplo grau de jurisdição como garantia constitucional decorrente do devido processo legal. Tem-se, portanto, que o duplo grau de jurisdição é uma construção doutrinária, a fim de melhor garantir a essência do substantive due process of law. Prestigia-se, dessa forma, o modelo de organização processual em que todo litígio pode ser submetido a dois órgãos julgadores diversos.
O designativo “duplo” remonta a idéia de duplicidade, já o termo “grau” nos remete a estágios sucessivos, hierarquia. Desse modo, via de regra, a decisão judicial é analisada por órgão hierarquicamente superior.
O princípio do duplo grau de jurisdição assegura maiores controvérsias dentro do processo, garantindo a ampla defesa e o contraditório, contudo, sua exigência como regra obrigatória no sistema jurídico brasileiro é conteúdo que envolve notória divergência entre doutrinadores da ciência jurídica, principalmente quando se fala em celeridade e em duração razoável do processo.
Nesse momento, surgem interpelações acerca da conveniência de impor restrições aos recursos disponíveis aos litigantes, visando atingir o provimento jurisdicional em um menor lapso temporal ou, ainda, proporcionar vários meios de impugnação das decisões judiciais, almejando alcançar a verdade formal sobre os fatos ou a melhor técnica hermenêutica de interpretação aplicável ao fato em concreto.
Diverge, ainda, a doutrina quanto à natureza jurídica do duplo grau de jurisdição, questionando se tal instituto pode ser concebido como princípio de direito processual civil, como garantia fundamental ou apenas como decorrência da escolha adotada quanto à forma de organização do Poder Judiciário.
Pretende-se, assim, à luz da Constituição da República de 1988, elaborar um estudo pormenorizado do duplo grau de jurisdição, analisando as defesas feitas a favor, bem como as objeções feitas ao princípio em análise.
No primeiro capítulo, tentou-se fazer um escorço histórico acerca do instituto da dualidade de graus e no segundo buscou-se fazer um estudo sistemático do duplo grau de jurisdição em face da Constituição vigente.
2 Breve análise histórica do duplo grau de jurisdição
Ao fazer um escorço histórico do instituto do duplo grau de jurisdição notou-se que o homem ao exercer o direito subjetivo de ação, ainda que de forma rudimentar, com o fim de buscar a prestação jurisdicional devida pela reparação da lesão sofrida, almeja obter uma sentença favorável.
No entanto, o postulante ao obter uma decisão desfavorável, irresignado com esta, procura outra opinião, ou seja, almeja uma nova análise da questão, que modifique ou desconsidere àquela tida como injusta.
Estudiosos do assunto aduzem que a Bíblia é a primeira fonte na qual se apresenta a busca por um novo pronunciamento, recorrendo-se à autoridade hierarquicamente superior. Insta salientar, que tal fundamento encontra-se consubstanciado no capítulo XXV, versículo 11-12, do livro dos atos dos apóstolos de autoria de São Lucas, a saber: “Se fiz algum agravo, ou cometi alguma coisa digna de morte, não recuso morrer, mas, se não há das coisas que estes me acusam, ninguém me pode entregar a eles; apelo para César”.
Há registros na história de que em Atenas e Esparta os cidadãos podiam apelar para a assembléia do povo. Esta assembléia composta por homens bons decidia os recursos interpostos das decisões de vários tribunais.
Havia, no direito romano, durante o período republicano, a possibilidade de impedir que a sentença produzisse seus efeitos e, embora alguns estudiosos não classifiquem tais atos como de natureza recursal, pode-se dizer que certamente o duplo grau já se manifestava nos pretórios.
Nesse caso, a intercessio, no direito romano, permitia que um colega do magistrado, que prolatou a sentença, suspendesse os efeitos da mesma. Daí por diante, a progressão se deu com outras figuras que segundo alguns autores já poderiam ser consideradas verdadeiros recursos com a função precípua de manter ou reformar a sentença impugnada, prolatando-se, em última análise, nova decisão.
Durante a evolução histórica, mais precisamente na época de Justiniano, os recursos tiveram maior incidência, ficando restrito o número de vezes que se poderia socorrer do duplo grau jurisdicional.
Paralelo a isso, no direito primitivo germânico o juiz era considerado uma expressão da divindade, portanto infalível. Em face desse sentido místico que possuía o julgamento, durante muito tempo, ficou impossibilitado o surgimento do instituto do duplo grau de jurisdição na sociedade germânica.
Empós, no direito germânico em face da evolução social e diante dos anseios populares surgiu o que conhecemos como duplo grau de jurisdição.
Destarte, o reexame dos pronunciamentos jurisdicionais é algo tão antigo quanto o próprio direito dos povos; previram-no, dentre outras legislações priscas, a babilônica, a hebraica, a egípcia, a islâmica, a grega, a romana e a canônica.
Igualmente, dos recursos se ocuparam as Ordenações reinóis portuguesas, os diversos códigos estaduais brasileiros e o Código de Processo Civil de 1939. Ademais, as ordenações Afonsinas (1446-1521), Manoelinas (século XVI) e Filipinas (1603) previam a dualidade de graus.
Torna-se imperioso mencionar a discussão que se deu nos pretórios da Revolução Francesa, na qual surgiram inúmeros opositores do duplo grau de jurisdição. Estes o faziam sob a alegativa de que os Tribunais encarnavam a Aristocracia Jurídica.
A doutrina costuma afirmar que a origem do duplo grau de jurisdição obrigatório, conhecido também como remessa oficial, está no antigo processo penal português em contraponto à posição desvantajosa do réu no sistema inquisitivo.
Registra-se que somente no século XIX este mecanismo começou a ser utilizado no processo civil, em favor da Fazenda Pública, sendo posteriormente estendido à proteção das relações familiares.
Com isso, foi possível a aplicação do artigo 822 do Código de Processo Civil de 1939 com redação dada pelo Decreto-Lei n.º 4.565/42 que possibilitava a sua aplicação em sentenças que homologassem o desquite amigável, declarassem nulo de pleno direito o casamento ou, ainda, fossem desfavoráveis à União, Estados e Municípios, considerados pela atual Constituição como entes federados.
Recentemente, diversas leis extravagantes trouxeram disposições semelhantes sempre associadas à tutela do erário. Destaque-se a Lei n.º 2.664/55 que dispõe acerca das ações judiciais decorrentes de atos das Mesas das Câmaras do Congresso Nacional e da Presidência dos Tribunais Federais, a Lei n.º 6.014/73 que inseriu a previsão do duplo grau obrigatório na Lei n.º 1.533/51 ou Lei do Mandado de Segurança, além da Lei da Ação Popular (Lei n.º 4.717/65), Lei das Desapropriações e outras que dispõem sobre medidas cautelares contra os atos do Poder Público.
No vigente estatuto processual civil, a matéria está esculpida nos artigos 496 a 565. A Consolidação das Leis Trabalhistas dedica ao estudo os artigos 893 a 901. Ademais, o Decreto francês, de 1º de maio de 1790, firmou no direito processual moderno, o princípio do duplo grau jurisdicional.
A partir desse momento, assegurou-se ao litigante vencido o direito de submeter a matéria decidida a uma nova apreciação jurisdicional, no mesmo processo, desde que atendidos determinados pressupostos específicos previstos em lei.
O duplo grau de jurisdição representa um instrumento a serviço do aprimoramento das decisões judiciais e de efetiva realização da justiça. Nesse passo, o constituinte não utilizou o vocábulo “recursos” no sentido técnico, ou seja, como instrumento de impugnação dos pronunciamentos jurisdicionais.
Recurso significa o conjunto de medidas necessárias à efetiva garantia da ampla defesa, do qual o contraditório constitui espécie. O vocábulo “recurso” ou a expressão “meios e recursos” traduz uma tradição constitucional, tão antiga, que se confunde com a própria vida republicana.
Nesse sentido, a Constituição Republicana de 1891, consignava no artigo 72, § 16 o seguinte: “Aos acusados se assegurará na lei a mais ampla defesa, com todos os recursos e meios essenciais a ela”. Na Constituição da República de 1934, o artigo 113, § 24 assim previa: “A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciais a esta”. Em seguida, a Carta Constituinte de 1937, por sua vez, foi omissa a respeito do tema em liça, por motivos políticos, já que foi outorgada.
Assim, percebe-se que a alusão a meios e recursos inerentes a ampla defesa não corresponde a uma inovação trazida pela norma constitucional em vigor, mas a tradição iniciada nos primeiros tempos da vida republicana brasileira.
3 O duplo grau jurisdicional e as garantias constitucionais
A Constituição Federal de 1988 alberga, no artigo 5º, os direitos e garantias fundamentais, no qual o duplo grau de jurisdição não aparece de forma expressa como uma das garantias conferidas aos litigantes em processo judicial, entretanto, a questão deve ser analisada conjuntamente com o parágrafo 2º, da norma constitucional, in verbis:
Art. 5 – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
(…). § 2 – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Ao fazer um estudo pormenorizado do mencionado parágrafo, percebe-se que houve uma inserção do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional, se conjugado com princípios que garantem o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
Sem sombra de dúvidas, a constitucionalização ou não do princípio do duplo grau de jurisdição constitui um dos temas mais controvertidos na teoria geral dos recursos, pois muito já se discutiu se aludido princípio apresenta status de garantia constitucional.
Por esse princípio assegura-se à parte o direito de ter sua causa revista por um tribunal de hierarquia superior com o fito de corrigir eventuais falhas e injustiças do decisum recorrido.
É de suma importância que se estabeleça a distinção entre duplo grau de jurisdição e duplo exame. A primeira permite uma nova apreciação da matéria, por órgão de via de regra hierarquicamente superior ao que emitiu a decisão impugnada. A segunda, por sua vez, enseja a que o reexame da matéria seja efetuado pelo próprio juízo prolator da decisão.
O professor Nelson Nery Júnior (2003, p.106) preleciona que o duplo grau jurisdicional: “Consiste em estabelecer a possibilidade de a sentença definitiva ser apreciada por órgão de hierarquia superior à daquele que a proferiu, o que se faz de ordinário pela interposição do recurso”.
Mencionado princípio possui premissas basilares, tais como o inconformismo natural da parte sucumbente, bem como a falibilidade dos juízes, o que gera maior segurança jurídica. O objetivo do duplo grau de jurisdição é promover a adequação entre a realidade no contexto social e o direito à segurança e a justiça das decisões judiciais.
Algumas objeções foram ainda formuladas ao duplo grau de jurisdição. A primeira objeção alega que a confirmação da sentença, pelo tribunal, implicaria supérflua atividade para o Poder Judiciário, na medida em que a manutenção do julgado traria em si uma declaração no sentido de ter sido perfeita a decisão do juízo inferior, a quo.
A segunda preconiza que eventual modificação da sentença envolveria um certo desprestígio do Estado, pois importaria o reconhecimento de estar errada a decisão prolatada pelo Estado-Juiz.
Por fim, os recursos trariam o inconveniente de retardar a formação da coisa julgada material e poderia provocar um prolongamento da duração do conflito de interesses em que se encontram envolvidas às partes, além de infundir-lhes maior insegurança quanto ao sucesso ou insucesso da demanda.
O que justifica, fundamentalmente, o duplo grau de jurisdição não é a maior experiência ou o presuntivo maior saber jurídico dos juízes dos tribunais, nem a insatisfação da parte diante de uma primeira decisão desfavorável às suas pretensões deduzidas em juízo, justifica-o a fatalidade que assinala os atos do homem, como ser naturalmente falível.
Não é, portanto, necessário que falhe sempre, basta, tão somente, a possibilidade de falhar, para que se imponha a revisão de suas decisões. Torna-se imperioso transcrever as lições do saudoso Ministro Orozimbo Nonato: “Os juízes não são seres que detêm a pedra lígia da verdade, nem foram bafejados pelo dom divino da inerrância; por isso, mortais e humanos, erram. E nisso me incluo ainda que involuntariamente já errei, e, sem, dúvida, haverei de errar.
Pode-se ainda justificar a existência do duplo grau de jurisdição pela sua natureza política, na medida em que não se poderia admitir uma atividade estatal prestada sem sujeição à fiscalização. O duplo grau, portanto, exerceria o controle interno exercido por órgãos jurisdicionais diversos do que proferiu o julgamento em primeiro grau com o fim de aferir a legalidade e a justiça deste.
Contrapondo o entendimento de que o duplo grau de jurisdição tem por escopo o controle da atividade do juiz por um órgão hierarquicamente superior, Marinoni (2003, p.515) preleciona que:
Não é acertado dizer, em outras palavras, que o controle da justiça da decisão possa ser confundido com o controle da própria atividade do juiz. Não há que se falar em controle da atividade do juiz quando se está discutindo sobre a oportunidade de dar ao vencido o direito à revisão da decisão que lhe foi contrária. Lembre-se que os tribunais, através das corregedorias, têm suas próprias formas de inibir condutas ilícitas, que obviamente não se confundem com decisões “injustas”.
Partindo desse pressuposto, verifica-se a necessidade de que tais falhas sejam eliminadas por meio de recursos.
A despeito do recurso retardar a constituição da coisa julgada material, não se pode ignorar que a sua supressão acarretará um mal ainda maior, porquanto deixará irreparáveis decisões comprometidas por graves falhas do julgador, derivantes da má apreciação dos fatos e das provas, bem como da ausência de fundamentação e da arbitrariedade judicial.
Na análise perfunctória dos fatos mencionados advoga-se a tese de que o duplo grau de jurisdição constitui um instituto altamente salutar, pois figura como inestimável contributo para a tarefa de aprimoramento dos provimentos jurisdicionais e a sua existência encontra-se intimamente ligada aos regimes democráticos, entretanto, a história tem demonstrado que a supressão dos recursos só atenderia aos anseios das vocações ditatorialescas dos detentores provisórios do poder político.
Além disso, o Decreto n.º 678, de 06.11.1992, incorporou ao Direito brasileiro a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) promulgado em 22.11.1969, que assegura a toda pessoa o direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.
Nesse caso, há uma possibilidade de através do artigo 5º, § 2º da Constituição da República de 1988, o princípio do duplo grau de jurisdição ser considerado verdadeiro direito fundamental.
Como a ratificação do Pacto de São José da Costa Rica ocorreu antes da Emenda Constitucional 45/2004, a Convenção Americana dos Direitos Humanos ao direito interno serve para imprimir-lhe força de lei e reforçar o entendimento, fundado numa interpretação sistemática, de que o princípio do duplo grau de jurisdição pode enquadrar-se na categoria dos direitos fundamentais implícitos.
O jurista Nelson Nery Júnior (1997, p. 39) aduz que o princípio do duplo grau de jurisdição encontra assento na Lei Fundamental, a saber.
Segundo a Constituição Federal vigente, há previsão para o princípio do duplo grau de jurisdição, quando se estabelece que os tribunais do país terão competência para julgar causas originariamente e em grau de recurso.Em o art. 102, II dizendo que o STF conhecerá, em grau de recurso ordinário, outras determinadas e, também, pelo n. III do mesmo dispositivo constitucional, tomará conhecimento, mediante recurso extraordinário, das hipóteses que enumera, evidentemente criou o duplo grau de jurisdição.
(…)
Ocorre que a Constituição Federal limita o âmbito de abrangência desse princípio, como por exemplo, ao enumerar casos em que cabe o recurso ordinário ou extraordinário, ao dizer que as decisões do Tribunal Superior Eleitoral são irrecorríveis, salvo quando contrariem a CF (art.121, § 3), entre outras hipóteses.
(…)
Isto nos faz concluir que, muito embora o princípio do duplo grau de jurisdição esteja previsto na CF, não tem incidência ilimitada, como ocorria no sistema da Constituição Imperial. De todo modo está garantido pela lei maior. Quer dizer, a lei ordinária não poderá suprimir recursos pura e simplesmente.
(…)
Entretanto, compete ao legislador infraconstitucional tornar efetiva aquela regra maior, de sorte a imprimir operatividade ao princípio do duplo grau.
A partir dessa premissa, pode-se afirmar que propiciar recurso com fulcro no artigo 5º, LV, da Constituição Federal vigente assegurando em todos os casos, o duplo grau de jurisdição e declarar a não revogabilidade do § 4, do artigo 2º da Lei n. 5.584/70, que alberga, em seu bojo, serem irrecorríveis as sentenças emitidas nas causas cujo valor não exceda ao de duas vezes o do salário mínimo seria discriminar em termos de garantias processuais o consagrado princípio da igualdade de tratamento de todos perante a lei.
Esposando entendimento diverso Manoel Antônio Teixeira Filho (2004, p.106) leciona que:
Ao dispor, entretanto, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, não teria o art. 5º, LV, da Constituição Federal vigente, assegurado, em todos os casos, o duplo grau de jurisdição, e, com isso, revogado o § 4º do art. 2º da Lei n.º 5.584/70, que declara serem irrecorríveis as sentenças emitidas nas causas cujo valor não exceda ao de duas vezes o do salário mínimo? Apesar de – pelos motivos anteriormente expostos – entendermos que o duplo grau de jurisdição representa um instrumento a serviço do aprimoramento das decisões judiciais e de efetiva realização da justiça, somos levados a responder de maneira negativa à indagação formulada.
(…)
Em suma, como o duplo grau de jurisdição, ao contrário da ação (art.5º, XXXV), não tem sede constitucional, vale dizer, não se encontra incluído no elenco de direitos e garantias individuais estabelecido pela Suprema Carta Política vigente, a conclusão inarredável é de que continua em vigor a Lei n.º 5.584/70 (art.2º, § 4º), conquanto não se deva estimular o hábito de elaborar-se leis que restrinjam o uso dos recursos.
No sentido da não inserção do princípio do duplo grau de jurisdição na garantia constitucional da ampla defesa o ilustre doutrinador Marinoni (1999, p.215) consigna nos seguintes termos:
Quando a Constituição da República afirma que estão assegurados o contraditório e a ampla defesa com os recursos a ela inerentes, ela não está dizendo que toda e qualquer demanda em que é assegurada a ampla defesa deva sujeitar-se a uma revisão ou a um duplo juízo. Os recursos nem sempre são inerentes à ampla defesa; nos casos em que não é razoável a previsão do duplo juízo sobre o mérito, como nas hipóteses das causas denominadas de “menor complexidade” – que sofre os efeitos benéficos da oralidade – ou em outras, assim não definidas, mas que também possa justificar, racionalmente, uma única decisão, não há inconstitucionalidade na dispensa do duplo juízo.
Finalmente, ao lado dos princípios do contraditório e da ampla defesa, a consagração da competência recursal dos tribunais inserta na Constituição da República de 1988 é apontada por muitos doutrinadores como embasamento para o duplo grau de jurisdição.
Tal posicionamento é defendido por estudiosos que vislumbram a necessidade de órgãos judiciais de competência hierárquica diferente intimamente interligada ao instituto sob exame.
Conclui o jurista Nelson Nery sustentando que, embora o duplo grau tenha previsão constitucional e incidência limitada, está garantido pela Lei Maior, de modo que a lei ordinária não poderá suprimir os recursos previstos naquela, cabendo ao legislador infraconstitucional tornar a regra efetiva.
Aos que advogam que o mencionado princípio não está garantido na Constituição da República o fazem por compreenderem que a previsão do recurso especial, nas causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais estaduais, do Distrito Federal e Territórios, não garante ao litigante o direito ao recurso contra toda e qualquer decisão que venha a ser proferida pelo juiz de primeiro grau.
Além disso, a Constituição vigente prevê a interposição de recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal nas causas decididas em única ou última instância conforme artigo 102, III do texto constitucional.
As decisões mais recentes proferidas pelo Supremo Tribunal Federal têm firme orientação no sentido de que o duplo grau jurisdicional não constitui garantia constitucional. Nesse diapasão, Gérson Luiz Carlos Branco (2004, p. 207) menciona a decisão supracitada:
(…) Diante do disposto no inciso III do artigo 102 da Carta Política da República, no que revela cabível o extraordinário contra decisão de última ou única instância, o duplo grau de jurisdição, no âmbito da recorribilidade ordinária, não consubstancia garantia constitucional.
(…)
Não tem razão o recorrente que pretende que, em face do disposto no artigo 5º, LV, parágrafo 1º, da Constituição Federal, esta constitucionalizou o princípio do duplo grau de jurisdição, não mais admitindo decisões de única instância, razão porque não foi recebida pela nova ordem constitucional a Lei n.º 5.58470.
(…)
Acórdão que, em ação penal originária, condenou o recorrente com base na prova dos autos. Pretensão de reexame da matéria de fato. Duplo grau de jurisdição. Questão insuscetível de ser apreciada ante a impossibilidade de reexaminar-se em sede extraordinária a matéria de fato, aonde em processo criminal de competência originária do Tribunal de Justiça, não sendo o duplo grau de jurisdição uma garantia constitucional.
Nesse mesmo sentido, registrem-se os seguintes julgados do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
AI-AgR 513044 / SP – SÃO PAULO
AG.REG.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO
Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO Julgamento: 22/02/2005 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação: DJ 08-04-2005 PP-00031
EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROMOTOR DE JUSTIÇA. CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 279-STF. PREQUESTIONAMENTO. PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. I. – O exame da controvérsia, em recurso extraordinário, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório trazido aos autos, o que esbarra no óbice da Súmula 279-STF. II. – Ausência de prequestionamento das questões constitucionais invocadas no recurso extraordinário. III. – A alegação de ofensa ao inciso LIV do art. 5º, CF, não é pertinente. O inciso LIV do art. 5º, CF, mencionado, diz respeito ao devido processo legal em termos substantivos e não processuais. Pelo exposto nas razões de recurso, quer a recorrente referir-se ao devido processo legal em termos processuais, CF, art. 5º, LV. Todavia, se ofensa tivesse havido, no caso, à Constituição, seria ela indireta, reflexa, dado que a ofensa direta seria a normas processuais. E, conforme é sabido, ofensa indireta à Constituição não autoriza a admissão do recurso extraordinário. IV. – Não há, no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição. Prevalência da Constituição Federal em relação aos tratados e convenções internacionais. V. – Compete ao Tribunal de Justiça, por força do disposto no art. 96, III, da CF/88, o julgamento de promotores de justiça, inclusive nos crimes dolosos contra a vida. VI. – Agravo não provido.
Decisão – A Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso de agravo, nos termos do voto do Relator. 2ª Turma, 22.02.2005.
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO – Recurso extraordinário – Cabimento do apelo contra decisão de última ou única instância – Fato que, no âmbito da recorribilidade ordinária, não consubstancia garantia constitucional – Interpretação do art. 102, III, da CF (STF) RT 762/176
EMENTA: APELAÇÃO CIVIL. ECA. APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL. REPRESENTAÇÃO POR ROUBO, DECLASSIFICADA PELA SENTENÇA PARA ROUBO NA FORMA TENTADA. INTERESSE EM RECORRER. Ainda que o menor tenha manifestado desinteresse em recorrer, é de ser conhecido o recurso apresentado pelo defensor, vez que a defesa técnica é uma garantia Constitucional, detentora do conhecimento acerca da conveniência ou não, bem como da repercussão da medida sócioeducativa aplicada ao menor. Sendo a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição princípios Constitucionais, hão de ser ampliados em relação ao menor e não restringidos. NULIDADE DO FEITO POR INEXISTÊNCIA DE LAUDO ELABORADO POR EQUIPE INTERDISCIPLINAR. A realização de tal laudo é mera faculdade do Juízo no sentido de lhe fornecer subsídios a um melhor conhecimento do caso concreto. TENTATIVA DE ROUBO MEDIANTE GRAVE AMEAÇA. SIMULAÇÃO DE PORTE DE ARMA. A simulação de porte de arma é elemento suficiente a configurar grave ameaça. MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO SEM POSSIBILIDADE DE ATIVIDADES EXTERNAS. Considerando a gravidade do ato e o perfil do adolescente, envolvido em vários episódios delitivos, dependente químico e resistente aos limites impostos pela família, a medida determinada pela sentença além do caráter expiatório poderá fornecer-lhe acompanhamento necessário a sua reeducação e ressocialização. PRELIMINARES REJEITADAS, RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70014114177, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 10/05/2006)
O doutrinador Nelson Nery Júnior na sua obra intitulada “Código de Processo Civil Comentado” (2003, p.847) nos ensina o conceito de recurso com o fito de esclarecer que o princípio do duplo grau de jurisdição constitui uma garantia constitucional:
Recurso é o meio processual que a lei coloca à disposição das partes, do Ministério Público e de um terceiro, a viabilizar, dentro da mesma relação jurídica processual, a anulação, a reforma, a integração ou o aclaramento da decisão judicial impugnada.
Hodiernamente, Celso Marcelo de Oliveira (2006, p.228) nos ensina outro conceito para recurso:
Podemos conceituar o recurso como o remédio jurídico que pode ser utilizado em prazo peremptório pelas partes, Ministério Público e por terceiro prejudicado, apto a ensejar a reforma, anulação, integração ou o esclarecimento da decisão jurisdicional, por parte do próprio julgador ou tribunal ad quem, dentro do mesmo processo em que foi lançado o pronunciamento causador do inconformismo.
Recurso, portanto, é o remédio voluntário e idôneo, dentro do processo, a ensejar a reforma, a invalidação, até mesmo, a integração da decisão judicial que se impugna. Dessa forma, ao recorrer, a parte não propõe nova ação, mas dá continuidade, em nova fase, à ação anteriormente proposta e em andamento, distinguindo-se de outros meios de impugnação de decisões judiciais que são ações, instaurando-se um novo processo.
Nesse passo, todo e qualquer recurso interposto com base no Código de Processo Civil deve obedecer aos princípios fundamentais que informam a teoria geral dos recursos, tais como: o duplo grau de jurisdição, da taxatividade, da singularidade, da fungibilidade, bem como o da proibição da reformatio in pejus.
Baseado nessas premissas, defende-se no presente trabalho que o duplo grau de jurisdição é postulado constitucional, consectário do devido processo legal e consiste na possibilidade de impugnar-se a decisão judicial, que seria reexaminada pelo mesmo ou outro órgão de jurisdição.
Por fim, afirma-se que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça vêm incorrendo em equívoco ao se posicionarem no sentido de que o instituto do duplo grau de jurisdição não é uma garantia constitucional. O Superior Tribunal Federal é considerado órgão máximo do Poder Judiciário, cuja função básica é exercer a guarda da Constituição Federal, além de permitir a integridade do direito nacional.
Dessa maneira, como guardião da Constituição Republicana deveria se posicionar no sentido de que a dualidade de graus é postulado constitucional e não o contrário.
4 Conclusão
Diante dos ensinamentos doutrinários expostos no presente estudo e das análises das jurisprudências, pode-se concluir que o duplo grau de jurisdição é um sistema jurídico assentado na atual Carta Política.
Atualmente, as regras do duplo grau de jurisdição parecem evoluir no sentido de restringir as garantias previstas na Constituição da República de 1988, pois quando a Constituição da República afirma que estão assegurados o contraditório e a ampla defesa com os recursos a ela inerentes, admite-se que a ampla defesa deva estar sujeita a uma revisão ou a um duplo juízo, o que na verdade não vem sendo admitido por renomados doutrinadores.
Defende-se que a garantia do duplo grau de jurisdição embora só implicitamente assegurada na Constituição da República de 1988 é princípio constitucional decorrente da Lei Maior, que estrutura órgãos da denominada jurisdição superior.
O direito à defesa, assim como o direito à tempestividade da tutela jurisdicional são direitos constitucionalmente tutelados pela Constituição promulgada. Como contraponto a esta tempestividade existe a necessidade maior de segurança jurídica, razão pela qual na nossa tradição prevalece o procedimento ordinário, com todas as suas fases, nos quais devem ser obedecidos todas as garantias constitucionalmente asseguradas.
Não obstante a falta de previsão expressa, ipsis litteris , no texto constitucional, parece inegável a existência de uma garantia ao Duplo Grau de Jurisdição. O sistema recursal presente no bojo da Constituição e as diversas partições do Poder Judiciário, hierarquicamente estruturado para esse fim, denotam esse entendimento. Se, no entanto, abusos são cometidos quando da utilização dessa garantia em detrimento da boa prestação, faz-se necessária a realização das devidas reformas para evitá-los, efetivando-se a utilidade na presteza da atividade jurisdicional.
Informações Sobre o Autor
Evilazio Marques Ribeiro
Consultor, Contador, Industrial, Mediador do Trabalho – ato declaratório n.1 de 06/08/2002 da Delegacia Regional do Trabalho do Ceará. Juiz Arbitral da American Arbitration Association, de N. York, membro da I Câmara de Mediação e Arbitragem do Ceará. Aluno do Curso de Direito da Faculdade Farias Brito, sócio-fundador do escritório RIBEIROS CONSULTORES ASSOCIADOS, diretor da Câmara Brasil-Portugal no Ceará