Resumo: O presente artigo produção excessiva de documentos normativos que também pode refletir em uma espécie de autoritarismo com fundamento em decisões discricionárias da forma que ocorria em tempos de anomia. O artigo menciona o pensamento de Robert K. Merton, que deu segmento aos estudos de Durkheim sobre a questão, mostrando que os indivíduos também intensificam os sintomas da anomia quando eles abandonam as normas usadas para satisfazer seus próprios desejos. E esse fenômeno se evidencia quando há conflitos entre normas de uma mesma instituição com conceitos contraditórios à lei e ou aos demais atos infra legais. Assim, a quantidade exagerada de normas que geram conflitos entre si, dão margem para o crescimento de um o modelo burocrático qual tem diversas externalidades negativas.
Palavras-chave: Poder Regulamentar. Excesso Normativo. Gestão de Excepcionalidades. Meio Termo. Análise de Impacto Regulatório.
É notório que as obras literárias que abordam o tema da teoria do Estado e da filosofia política traçam um paralelo entre o Estado autoritário e a ausência de normas jurídicas. No âmbito do Estado autoritário, o compêndio normativo, via de regra, é eivado de lacunas legais as quais dão margem para as mais variadas interpretações e tem como amparo a vedação histórica ao “non liquet”, cuja etimologia remonta o Direito Romano.
Nesse sentido, o reinado do absolutismo fica consubstanciado na vontade do imperador se sobrepõe aos preceitos fundamentais do Direito, o que daria azo, inclusive, à supressão do direito à igualdade em detrimento da discricionariedade.
Assim, a consagrada frase de Luis XIV “L’Etat c’est a moi”[1] resumia a fórmula de centralização do poder que se dava pelo juízo particular de conveniência e oportunidade do prolator das decisões. Sendo certo que no campo da anomia, diante de um universo eivado de uma enorme lacuna normativa, havia bastante espaço para a exceção.
A esse respeito, Émile Durkheim[2] teorizou o conceito da anomia em seus livros “A divisão do trabalho social” e “O suicídio”, nos quais ele define o termo como uma condição em que as normas são confundidas, pouco esclarecidas ou simplesmente ausentes.
Portanto, a organização dos homens em uma mesma sociedade, regulada pelas mesmas leis é o que permite a mediação de conflitos individuais e sociais: “a única força capaz de servir de moderadora para o egoísmo individual é a do grupo; a única que pode servir de moderadora para o egoísmo dos grupos é a de outro grupo que os englobe[3]”. Assim, a anomia é definida pelo autor como a ausência dessa solidariedade, o desrespeito às regras comuns, às tradições e práticas.
Por outro lado, a produção excessiva de documentos normativos, por incrível que pareça, também pode refletir um fenômeno semelhante.
Nessa toada, Robert K. Merton deu segmento aos estudos de Durkheim mostrando que os indivíduos também intensificam os sintomas da anomia quando eles abandonam as normas usadas para satisfazer seus próprios desejos. Merton passa a entender o fenômeno da anomia como uma espécie de desagregação normativa, somada aos comportamentos inadequados derivam de uma disfunção entre ‘‘aspirações culturalmente prescritas’’ de uma sociedade e um ‘‘caminho socialmente estruturado para a realização dessas aspirações”.
Nesse sentido, a teoria de Merton pode ser entendida como uma crítica incisiva e direta ao modelo burocrático, analisando os seus efeitos negativos sobre as organizações e outras esferas da vida. Esses efeitos negativos foram chamados de disfunções burocráticas, dentre os quais podem ser elencados o impacto da prescrição estrita de tarefas burocráticas “red tape”[4] sobre a motivação dos empregados, resistência às mudanças, e o desvirtuamento de objetivos provocado pela obediência acrítica às normas.
Nesse diapasão, no âmbito das agências reguladoras, a hipernomia, constatada pelo excesso de normas, pode apresentar em seus mais variados instrumentos, as mais diversas situações de contradição entre comandos normativos de mesma hierarquia, extrapolação do poder regulamentar ou, até mesmo, uma utilização de diversos conceitos jurídicos indeterminados, os quais necessitam de um complemento discricionário do intérprete; escondendo assim um viés autoritário sob o manto de uma ilusão democrática e inovadora.
Segundo um estudo formulado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) publicado em 04 de julho de 2017, o Brasil edita cerca de 800 (oitocentas) normas por dia, somando 5,4 milhões desde a promulgação da Constituição de 1988[5].
Na sequência, a Ancine, com aproximadamente 16 anos de existência, já conta com 140 Instruções Normativas, dentre as quais, aproximadamente, 40 encontram-se formalmente revogadas. Além de 78 Resoluções da Diretoria Colegiada. Fora as portarias e, obviamente, as leis federais e Medidas Provisórias que regem a matéria.
Assim, esse emaranhado de normas instituídas, ao invés de padronizar comportamentos e situações visando uma melhor qualidade de um serviço público que seja adequado, poderá acarretar, devido ao excesso, uma barreira para que os agentes regulados cumpram determinadas resoluções normativas.
Além disso, o excesso normativo desalinhado facilita a existência de conflitos entre disposições normativas – antinomias –, as quais podem necessitar de um complemento interpretativo que pode resultar tanto em uma decisão positiva ou negativa sobre uma mesma questão diante de um caso concreto. O que daria ensejo a uma gestão de excepcionalidades por parte do intérprete da norma com base em um juízo de discricionariedade.
Portanto, é por este motivo que se faz necessária a utilização do instrumento da Análise de Impacto Regulatório – AIR, que é uma forma de evitar a imprevisibilidade e o “custo regulatório”, decorrente de regulação excessiva ou pouco eficiente. Não obstante, a Agência Nacional do Cinema, tem feito pouco uso desse instrumento.
Frise-se, a esse respeito que no ano de 2017, o qual foram aprovadas 9 instruções normativas (IN 132 a 140) e 5 Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC 74 a 78). Porém, no ano passado, foi realizado apenas um único estudo de análise de impacto regulatório (AIR 01/2017), realizado pela Superintendência de Análise de Mercado, o qual não dizia respeito a nenhum desses instrumentos normativos, pois tratou sobre o decreto anual de cota de tela e da reformulação da instrução normativa a qual será aprovada neste ano de 2018 para tratar da aferição por sessões do número de dias fixado na forma do art. 55 da MP 2.228-01/01.
Diante disso, fica claro que o movimento pela desburocratização deve envolver uma forma de regulação responsável, de modo a evitar os custos regulatórios pela realização de um estudo mais aprofundado sobre a regulamentação englobando uma organização e padronização dos atos normativos institucionais.
Nesse diapasão, diante de todo o exposto, fica evidenciada a aproximação entre a anomalia e a hipernomia, haja vista que em ambos os casos há necessidade de se fazer uso da “gestão de excepcionalidades” com base no juízo de discricionariedade. Assim, o excesso normativo vai se assemelhando à ausência de normas. A definição do que é lícito ou não, deixa de existir ante a ausência de pressuposto ôntico primário, dando azo à burocracia e à gestão dos casos excepcionais.
Portanto, o excesso normativo, diante dos mais diversos “embricamentos” possíveis acaba equivalendo à sua ausência. E, no afã de solucionar uma questão específica, o intérprete afasta-se cada vez mais da técnica e aproxima-se do ato de vontade.
A esse respeito, cumpre fazer uma referência à ARISTÓTELES[6] que ao escrever sobre a doutrina do meio-termo na obra dedicada a seu filho Nicômaco, trata da ideia de equilíbrio, da justa medida; que é o substrato da ponderação axiológica – realizado por intermédio dos conhecidos postulados da razoabilidade e proporcionalidade.
Com efeito, para ARISTÓTELES, também nas virtudes, o excesso ou a falta são destrutivos, porque a virtude é mais exata que qualquer arte, pois possui como atributo o meio-termo – mas é em relação à virtude moral; é ela que diz respeito a paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e meio-termo. E essa seria a vacina para solucionarmos a questão que se encontra justamente entre o excesso e a escassez.
Para o filósofo: “Tanto a deficiência como o excesso de exercício destroem a força; e da mesma forma, o alimento e a bebida que ultrapassam determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a saúde ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, a produzem, aumentam e preservam"[7].
A esse respeito, não é demais lembrar que a balança erguida pela mão esquerda da deusa Têmis – deusa da justiça – possui o seu fiel na vertical, cuja simbologia denota uma decisão ou uma lei justa e reta, na qual o meio termo é atingido.
Informações Sobre o Autor
Magno de Aguiar Maranhão Junior
Professor, Especialista em Regulação da Agência Nacional do Cinema, Advogado. Pós-Graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro -EMERJ, Pós-Graduado em Direito Civil Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ