O futuro do Direito

Resumo: Este artículo discute algunas cuestiones relativas al impacto que una perspectiva naturalista puede llegar a tener para el actual edificio teórico y metodológico de la ciencia jurídica. Una filosofía o ciencia jurídica desarrollada a partir de un enfoque naturalista permite enfrentarse, de forma real y factible, a la evidencia de que la naturaleza humana no sólo genera y limita las condiciones de posibilidad de nuestras sociedades sino que guía y pone límites al conjunto institucional y normativo que regula las relaciones sociales. Comprender mejor nuestro pasado evolutivo podría sentar las bases para un sistema viable con sentido, para un Derecho que proporcione orden y propósito a nuestras vidas en el futuro.

“Quien presume de predecir el futuro miente, aunque el azar pueda hacer realidad su predicción”. PROVÉRBIO ÁRABE

“Tu, tus alegrías y penas, tus memorias y ambiciones, tu sentido de la identidad personal, de la justicia y de la libertad, no son de hecho más que la conducta de una amplia asociación de neuronas y sus moléculas asociadas. Tú no eres otra cosa que un montón de neuronas”. FRANCIS CRICK

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A doutrina jurídica tradicional se interroga desde sempre acerca do modo como as regras sociais e as normas jurídicas surgem e se impõe na sociedade, ao que se acrescenta a questão relativa à maneira como essas regras e normas se legitimam. Também se manteve durante séculos a tese de que o ser humano é sociável por natureza e, portanto, somente na sociedade organizada alcançava o indivíduo humano sua mais plena e perfeita realização. Assim, as normas e a organização sócio-política seriam uma seqüela necessária do próprio “ser do homem”, a dimensão ou componente imanente de sua natureza moral e racional.

Com a chegada da época moderna entra em crise essa justificação teleológica e metafísica da ordem social e de suas normas. O ser humano deixa de ver-se como puro autor racional de um guión pré-escrito e prescrito com anterioridade e se torna autor de sua própria vida e suas realizações sociais. Manter-se-á até nossos dias a idéia comum de que não há sociedade sem normas, mas as normas já não são mais a expressão de nenhum fim (teleológico ou transcendente) pré-estabelecido, senão um produto propriamente humano, evolucionado, contingente e variável.

A crescente correlação entre normas de conduta e natureza humana torna-se cada vez mais explícita e a questão da origem, evolução e natureza dessa natureza (humana) e de seus produtos normativos (sócio-adaptativos) passa a constituir um problema teórico e central das mais modernas filosofias e teorias sociais normativas[1]. Frente ao tradicional desdobramento do sujeito em indivíduo moral (ou quase divino) e ser genérico portador de uma racionalidade quase que absoluta, o sujeito moderno se concebe ao mesmo tempo como o resultado de um processo biológico de hominização (a soma de mutações, recombinações e seleção natural pelo qual o Homo sapiens se distingue progressivamente das espécies de que descende) e um processo histórico de humanização(pelo qual se somam outros fatores diferentes aos puramente biológicos: regras, moral, linguagem, cultura, civilização…)[2].

Já não somos portavozes de uma racionalidade (ou divindade) de alguma forma transcendente que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim predeterminado, senão uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários para resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. O sujeito moral deixa seu lugar ao ser humano produto da evolução por seleção natural.

Hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que diante dos formidáveis descobrimentos logrados pelas ciências da vida e da mente desde há alguns anos nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer encerrada ou isolada em uma torre de marfim fingindo ignorar os resultados da neurociência cognitiva, da ciência cognitiva, da genética do comportamento e da psicologia evolucionista, quatro novos campos de investigação que trabalham para estender uma ponte entre a natureza e a sociedade, a biologia e a cultura, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana. Nenhum filósofo ou teórico do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca, quase cotidianamente, no espaço público, quer dizer, nenhum filósofo do direito intelectualmente honrado, e que queira propugnar de verdade sua causa (quer dizer, honrado também na ação), deveria desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a do status do humano no reino da natureza (do ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social).

Sem embargo, o problema da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito predominante é o de que ainda trabalham como se os humanos só tivessem cultura, uma variedade significativa e nenhuma história evolutiva. De fato, no âmbito do jurídico quase sempre se relega a um segundo plano – ou simplesmente se desconsidera – a devida atenção à evolução da natureza humana e para a forma como o conjunto mente/cérebro processa nossas intuições e emoções morais, assim como as predisposições que permitem criar e articular nossos juízos morais e nossos vínculos sociais relacionais[3]. Isto é, de que não somente a mente e o cérebro não caíram do céu e de que se formaram lentamente ao longo da evolução de nossa espécie, senão também que a mente, a consciência, os sentimentos, a imaginação, os atos voluntários, o sentido de justiça, a liberdade de ação e a tomada de decisões, assim como todos os nossos processos mentais (nossos processos psíquicos internos), são propriedades emergentes de atividades neuronais (ou se acompanham de processos neuronais) em determinadas áreas cerebrais ou, o que é o mesmo, que todos os pensamentos, condutas e emoções humanas surgem da atividade eletroquímica de redes neuronais no cérebro, de interconexões de entidades físicas extremamente complexas dentro do cérebro humano (Dawkins, 2007).

Aliás, diga-se de passo, um dos “fetiches” mais comuns é o de assegurar – principalmente para os alunos dos cursos jurídicos – uma concepção ontológica substancial do direito que reside, em última instância, em “algo” predeterminado (ou vinculado de forma absoluta) por uma indefinida e indecifrável “natureza” considerada sempre igual, por um sistema universal e imutável de princípios e valores ou, com mais atualidade, pela expressão da juridicidade oferecida por um corpo de normas (o ordenamento jurídico) postas pelo legislador, isto é, como um sistema autônomo de leis (im-) postas (com anterioridade) pelo poder (seja este de que natureza for: religiosa, econômica, militar, política, etc.).

De fato, as faculdades de direito parecem estar, na atualidade, submetidas a uma espécie de aliança ímpia tácita entre a verborréia relativista pós-moderna e pós-estruturalista, anti-científica e anti-racionalista, e uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada sobretudo por um positivismo e/ou jus naturalismo substancial ontológico e pela teoria da eleição racional: enquanto os pós-modernos fogem da realidade social, científica e política com delirantes imposturas (“tudo é texto” e truanices parecidas), os outros, os “científicos”, os “filósofos dos direitos humanos” e os “teóricos da hermenêutica” fogem da realidade social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério, senão carentes da menor autoconsciência respeito da realidade biológica que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana, e em particular, de uma teoria da racionalidade reformada. Enfim, por uma completa falta de precisão relativa à adesão de seus respectivos discursos à natureza humana.

É nessa paisagem cognitivamente hostil à realidade por parte das faculdades de direito que os juristas fiéis à “pureza do direito” parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu sistema de crenças, um tipo de resistência construída durante anos de adoutrinamento universitário, utilizando métodos que tardaram séculos em amadurecer. Não há dúvida de que a sabedoria herdada é assombrosa, fascinante e inteligente. Mas se baseia principalmente em suposições, como sabemos pela informação científica e histórica atual. Ao longo da história humana, vários foram os autores que elaboraram teorias morais e jurídicas, interpretações e histórias sobre o que significa ser humano, sobre o que significa existir e sobre como devemos viver. Tudo isso forma parte de nosso rico passado.

Não obstante, a crua e dura realidade é que essas idéias férteis, metafóricas e atrativas – já sejam filosóficas ou religiosas – são meros relatos, se bem alguns mais demonstráveis que outros. O que realmente resulta insólito é que se siga questionando e/ou desconsiderando a existência da natureza humana, quando os novos dados proporcionam bases científicas e históricas para fundamentar novos modos de entender a natureza e nosso passado evolutivo. Sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades físicas e manifestações inatas e inevitáveis em muitas e diversas situações. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. E hoje sabemos que somos o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. Somos animais éticos. O resto das histórias acerca de nossas origens e de nossa natureza não é mais que isso: histórias que consolam, enganam e até motivam, mas histórias ao fim e ao cabo.

Mas aí fora há uma grande quantidade de juristas cujo adoutrinamento não foi demasiado insidioso ou que, por outras razões, não teve lugar, ou aqueles cuja inteligência natural é o suficientemente forte como para superá-lo. Esses espíritos livres somente necessitam de um pequeno estímulo para evadir-se totalmente do “atraso”, o “estancamento”, a “imaturidade” – chame-se como queira – das ciências jurídicas, um fenômeno inconcusso que o dogmatismo e o isolamento endêmico das ciências sociais normativas deveriam fazer-nos reflexionar séria e vivamente sobre o ponto de estancamento ao que estas chegaram: um conjunto de hipóteses escritas na areia.

O universo natural do Direito

De um modo geral, tanto o direito como a ética carecem das bases de conhecimento verificável da mente, do cérebro e da natureza humana necessárias para obter e produzir predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas. Os operadores jurídicos, quando abordam o estudo do comportamento humano e do direito, têm o costume de falar de diversos tipos de explicações: sociológicas, antropológicas, normativas, axiológicas e outras, apropriadas às perspectivas de cada uma das respectivas disciplinas e áreas de conhecimento, quer dizer, sem sequer considerarem a (real) possibilidade de que exista somente uma classe de explicação para a compreensão da juridicidade na sua projeção metodológica. Mas tal explicação unitária de base existe. Desde o ponto de vista teórico é possível imaginar uma explicação que atravesse as escalas do espaço, do tempo e da complexidade unindo os fatos aparentemente inconciliáveis do social e do natural, sempre e quando se parta de um cenário mais credível da emergência do fenômeno jurídico devidamente sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana – que não é uma construção social pós-moderna, senão uma construção natural muito antiga que recapitula a história filogenética da linhagem humana.

Dito de outro modo, de que os grupos humanos atuais nasceram a partir de grupos de Homo erectus, e estes a partir de grupos de Australopithecus, e estes, por sua vez, de antepassados comuns aos humanos e chipanzés que, não obstante serem de maneira provável uns animais com certa vida social, nasceram da sociedade de um elo perdido entre símios e macacos, e assim por diante, até chegar ao ponto em que começamos, como uma espécie de animal essencialmente social, prioritariamente moral, particularmente cultural e decididamente diferente. Em síntese, de que para uma compreensão mais adequada do comportamento humano normativo é necessário ver a vida ética e social humana como um produto da história evolutiva que nos precede, com antecedentes em outras espécies. Longe de ser uma tabula rasa difusa, a arquitetura cognitiva humana, altamente diferenciada e especializada, é um mosaico de vestígios cognitivos dos estágios antigos da evolução humana, previamente adquiridos por nossos ancestrais hominídeos.

E embora não haja uma resposta simples à pergunta de se a moralidade (o direito e a justiça) é um fenômeno cultural ou um fenômeno biológico, o certo é que a importância da mútua relação entre evolução biológica e a emergência de uma conduta moral e jurídica mais complexa, nos momentos em que a espécie humana estava desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a linguagem articulada, parece estar além de toda dúvida razoável: o processo evolutivo proporcionou ao ser humano a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade (que por sua vez deu origem a juridicidade), assim como um conjunto de necessidades, de emoções e de desejos básicos que, com o passo do tempo, deram lugar a nossa atual e astronomicamente grande riqueza moral e jurídico-normativa[4].

Pois bem, esse parece ser o ponto central a partir do qual se deve estabelecer o debate entre a tendência naturalista da melhor ciência contemporânea e a tradição dos filósofos e teóricos do direito que, não obstante, insistem em sustentar que é possível outorgar à cultura a parte que corresponde a natureza e, dessa forma, em não admitir a continuidade entre o reino animal e o mundo humano, entre o universo da natureza e o da cultura, isto é, essa parte de animalidade que há em nós e que toda uma tradição religiosa e filosófica pretendeu (e continua pretendendo) ocultar[5]. Em resumo, deixando de falar do que realmente importa e que tanto gosta de ocultar-se sob o manto perverso de eufemismos e abstrações. O real é sempre mais importante que os devaneios, as idiossincrasias e as ficções filosóficas: descendemos de animais que viveram em comunidade durante milhões de anos; o mítico “contrato social” estava já inventado muito antes que a espécie humana aparecesse sobre o planeta, e nenhuma referência à moral, ao direito ou à “natureza humana” pode silenciar estas raízes.

E não se trata, depois de tudo, de um problema de pouca importância, de um mero exercício mental para os juristas e os filósofos acadêmicos. A eleição de uma das duas formas de abordar o direito supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a conduta e o sentido do raciocínio prático ético-jurídico.

O problema, contudo, é que o ideal de alcançar essa nova forma de entender o direito pode empreender-se com dois talantes intelectuais distintos: ou bem seguindo um exclusivamente naturalista ou bem empregando um moderadamente naturalista.

A naturalização radical do conhecimento humano, tão de moda em nossos tempos e aparentemente ingênua e óbvia, defende que toda questão cognitiva deve ser tratada unicamente recorrendo à ciência, prescindindo de qualquer outra disciplina, incluída a filosofia. Em realidade o que temos é puro cientificismo: todo problema há de ser abordado pela ciência ou bem, se de momento não é possível, deve ser afastado para ser abordado mais adiante pela ciência. Certamente isto não é ingênuo, já que supõe o fim da filosofia, e é notável o entusiasmo com que muitos filósofos, profissionais ou aficionados, pregoam e predicam a naturalização do conhecimento e com ele o fim de sua atividade. Ademais, isto não é óbvio, já que não há demonstração alguma de que somente a ciência resolve os problemas; de fato, nossa lógica natural, nossa psicologia natural ou nossa física ingênua nos permitem resolver múltiplos problemas todos os dias (posso raciocinar sem haver estudado lógica, sei que alguém está enfadado sem haver estudado psicologia, me movo com soltura pela rua sem haver estudado física).

Suponho que já se haverá advertido que não somos partidários de uma naturalização radical do conhecimento humano. Em câmbio, um naturalismo moderado nos parece exigível e algo que pode ajudar a superar o atual problema do direito. Desde nosso ponto de vista, entre ciência e direito se dá uma forte continuidade, de tal maneira que as disciplinas científicas e as disciplinas jurídicas devem ter-se em conta mutuamente[6]. Quer dizer, uma vez que a maneira pela qual deveríamos viver é um tema que não pode separar-se completamente dos fatos, de como são as coisas, já não mais parece lícito e razoável construir-se castelos normativos “no ar” acerca da boa ontologia, da boa metodologia, da boa sociedade ou do direito justo. Porque uma teoria jurídica (o mesmo que uma teoria normativa da sociedade justa, ou uma teoria normativa e metodológica da adequada realização do direito), para que suas propostas programáticas e pragmáticas sejam reputadas “aceitáveis”, têm antes que conseguir o nihil obstat, o certificado de legitimidade, das ciências mais sólidas dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana que os mitos aos que estão chamadas (e destinadas) a substituir. E o mais curioso de tudo é o fato de que sabemos que isso, embora inconveniente, é verdadeiro, mas insistimos em arquivar naquela pasta mental em que todos nós guardamos as verdades inegáveis que não se ajustam aos nossos sistemas de crenças.

Em resumo, a naturalização moderada do conhecimento que ajuda ao conhecimento jurídico, como futuro ideal da filosofia e da ciência do direito, consiste precisamente em ter em conta todos os dados científicos relevantes, em especial a neurociência, a ciência cognitiva, a genética do comportamento e a psicologia, posto que são estas as disciplinas científicas que nos proporcionam um conhecimento adequado e completo da peculiaridade do ser humano, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana.

Já é chegada à hora de voltar a definir o que é um ser humano, de recuperar e redefinir em que consiste a natureza humana ou simplesmente de aceitar que os humanos são muito mais do que um mero produto de fatores sócio-culturais. E ainda que muitas perguntas sigam sem resposta – e dada a resistência a aceitar que as respostas a certas perguntas de uma disciplina possam vir de outros campos de investigação -, podemos pelo menos aduzir novas razões para sustentar ou refutar explicações que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito. O que nos ensinam do mundo jurídico é minúsculo em comparação com a imensidade do real que ainda somos incapazes de perceber. Talvez por isso não resulte ser uma tarefa fácil transcender as fronteiras e as limitações dos “dogmas do momento” aos quais, de uma maneira ou outra, continuamos atados. Afinal, as idéias que soem prosperar são as que contribuem a conservar os sistemas que lhes permitem ser transmitidas.

O problema é que vivemos sempre graças a uma atividade fisiológica que podemos dirigir mediante conteúdos que vão mais além da fisiologia ou da cultura. Pertencemos a dois mundos: o mundo do corpo/cérebro (dos quais emerge a mente) e o mundo das criações culturais fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem. Isso somos. Depois, dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem maximizar nossa capacidade de predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. E nada disso deveria surpreender uma vez que são duas as capacidades humanas que funcionam como fatores particularmente determinantes na formação e transmissão das normas jurídicas: a primeira, provavelmente compartida com outros animais, é a busca incessante de causas e efeitos; a segunda, o raciocínio ou juízo social – insolitamente desenvolvida nos humanos -, que consiste na capacidade de pensar nas pessoas e nos motivos que lhes levam a atuar (o que os cientistas chamam “teoria da mente”).

A combinação dessas capacidades gerou certas características da função mental que formam parte da crença ético-jurídica: nossa capacidade para fazer abstrações e deduções causais e para inferir intenções não percebidas. Dessa forma, o direito se torna possível quando o impulso de encontrar e inferir explicações causais se combina com a capacidade – e a propensão – de nossos cérebros de subministrar níveis avançados de cognição social. Juntas, estas duas capacidades nos permitem gerar complexas idéias culturais que vão desde pôr multas aos condutores por haver cruzado com o semáforo em vermelho até a justiça. E uma vez que a sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental não somente torna o direito altamente dependente da compreensão das múltiplas causas do comportamento humano, como, e na mesma medida, faz com que quanto melhor for esse entendimento da natureza humana, melhor o direito poderá atingir seus propósitos.

Sobre a função do direito

Assim entendido, o problema passa a ser o de dar respostas satisfatórias às seguintes perguntas: Qual é a função do direito no contexto da existência humana? Qual a razão das normas jurídicas (e morais) e por que são universais? Qual é a explicação acerca de como é possível que tenhamos invariavelmente, enquanto espécie, regras respeitantes à maneira de como nos devemos conduzir?

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Pois bem, começaremos por argumentar, em primeiro lugar, sobre a necessidade de se admitir que o direito não é um fim em si mesmo, senão um instrumento ou artefato cultural, uma invenção humana, que deveríamos procurar modelar e utilizar inteligentemente para alcançar propósitos éticos-políticos que vão mais além do próprio direito: uma certa paz, uma certa liberdade, igualdade e fraternidade, enfim, uma certa justiça.

O direito não é mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa – cada vez mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente – empregada para articular argumentativamente – de fato, nem sempre com justiça –, por meio da virtude da prudência, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social. Um artefato cultural que deveria ser manipulado para desenhar um modelo normativo e institucional que evite, em um entorno social abarrotado de assimetrias e desigualdades, a dominação e a interferência arbitrária recíprocas e, na mesma medida, garantindo certa igualdade material, permita, estimule e assegure a titularidade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres.

Por outro lado, diremos que o desenvolvimento dos sistemas normativos implicou processos causais gerados pelas inevitáveis colisões de interesses próprios da coexistência social e em vista da necessidade de inferir os estados mentais, de controlar e de predizer o comportamento dos indivíduos, isto é, de antecipar as consequências do comportamento dos demais em empresas que requerem a competição ou a cooperação de vários indivíduos. Dito de outro modo, criamos um sistema complexo de justiça e de normas de conduta para canalizar nossa tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade e dos defeitos que emergem dos vínculos sociais relacionais que estabelecemos ao longo de nossa secular existência.

Tais normas, por resolverem determinados problemas sócio-adaptativos práticos, modelam e separam os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, podem ser válidos, social e legitimamente exercidos, isto é, plasmam publicamente não somente nossa capacidade (e necessidade) de predizer e controlar o comportamento dos demais senão também o de justificar e coordenar recíproca e mutuamente, em um determinado entorno sócio-cultural, nossas ações e interações sociais. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e emoções morais, não são construções arbitrárias, senão que servem ao importante propósito de, por meio de juízos de valor, tornar a ação coletiva possível – o que, em certa medida, vem a ser confirmado pela recente descoberta das chamadas “neuronas espelho” que, longe de ser uma mera curiosidade, parecem ser muito importantes para compreender a maioria dos aspectos da natureza humana, como a avaliação dos atos e intenções dos demais decorrente de nossa capacidade de “simular” ou elaborar uma “teoria da mente” para prever o comportamento de nossos congêneres (Iacoboni,2009).

Daí a razão pela qual as normas jurídicas não são simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou formalizadas destinadas a constituir uma razão (determinante e/ou moral) para o atuar dos indivíduos. Em vez disso, as normas representam a formalização de regras de condutas sociais sobre as quais uma alta percentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes àqueles que as seguem: quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as normas são, com frequência, não somente ignoradas ou desobedecidas – pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de justiça -, senão que seu cumprimento fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impõem por meio da “força bruta”.

Claro que, de uma maneira geral, resulta impossível fixar uma origem do direito, nem mesmo se o entendemos da maneira mais ampla e flexível imaginável. Mas tenho sustentado que essa origem tem que ver com um desafio adaptativo que os seres humanos tiveram que afrontar: um desafio que nasceu da necessidade humana de entender e valorar o comportamento de seus congêneres, de responder a ele, de predizê-lo e de manipulá-lo e, a partir disso, de estabelecer e regular as mais complexas relações da vida em grupo. Outras espécies como a do chimpanzé tem pressões seletivas muito similares e, ainda assim, não desenvolveram nossos sistemas de normas estabelecidos através de códigos explícitos. Cabem poucas dúvidas, pois, acerca do caráter do direito como ferramenta destinada a resolver conflitos grupais e de manter vivo um limite (ainda que mínimo) de altruísmo e cooperação entre os membros de nossa espécie. Mas o caráter distintivo não significa que o direito (assim como a moral) se veja livre de qualquer tipo de fator ou influência que provem das circunstâncias específicas em que se produziu a evolução coordenada do cérebro humano, dos grupos de hominídeos e de suas soluções culturais.

Sob esta perspectiva, parece razoável supor que os perversos defeitos teóricos de que ainda padecem a filosofia e a ciência do direito, disseminadas em seus guetos de hiper-especialização, decorre principalmente do desprezo ao fato de que o comportamento individual se origina a partir da sucessiva intercessão de nosso sofisticado programa ontogenético cognitivo e do entorno sócio-cultural em que movemos nossa existência, ou seja, de que o comportamento humano inclui um elemento irredutível de naturalismo, porque é nossa arquitetura cognitiva (cuja gênese deve estar integrada na história evolutiva própria de nossa espécie) que, em última instância, seleciona os comportamentos socialmente valiosos: o fundamento da moral e do direito não reside em nenhum ente ou idéia imaterial, transcendental ou abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria mais admitir conceitos ou termos tão vazios como o de dignidade, liberdade, igualdade, etc., sem uma base empírica acerca da natureza humana, sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.

Estas considerações podem ajudar a compreender o fenômeno presente da moralidade e juridicidade humana sem desligá-lo de suas origens e, sobretudo, sem hipostasiá-lo como o elemento essencial de nossa descontinuidade com o mundo animal. As descobertas provenientes de outras áreas do conhecimento oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade da concepção comum da psicologia (e da racionalidade) humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica, para a concepção acerca do homem como causa e fim do direito, e consequentemente, para a tarefa do jurista – interprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo.

E isso tem grande importância para a filosofia e a ciência do direito pois, de não ser assim, de não se encontrar restringido cognitivo-causalmente o domínio das preferências humanas (que impõe constrições significativas para a percepção e o armazenamento discriminatório de representações sócio-culturais e que conforma o repertório de padrões de atividade de nosso cérebro dos quais emerge nossa conduta), se pode perfeitamente admitir a alteração da natureza humana em qualquer sentido que se deseje e, em igual medida, negar a primeira e básica premissa da contribuição científica de que o Homo sapiens é uma espécie biológica cuja evolução foi forjada pelas contingências da seleção natural em um ambiente enriquecido por relações sócio-culturais e de que temos um cérebro (herdado por via do processo evolutivo) gerado para enfrentar-se a realidades tangíveis e equipado com as ferramentas necessárias para, como um verdadeiro motor semântico ou uma máquina de fabricar modelos da mente de outras pessoas, manipular os significados e processar as informações sociais relevantes para resolver os problemas de nosso coexistir evolutivo.

Também se podem dar passos para uma compreensão das condições de possibilidade e limites do fenômeno jurídico, procurando sempre chegar a soluções menos injustas e moralmente aceitáveis se se atende ao princípio ético – extraído diretamente de nossas intuições e emoções morais mais profundas – segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas consequências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e o sofrimento humano (ou seja, que não se produza sofrimento quando seja possível preveni-lo, e que aquele que é inevitável se minimize e grave com moderação aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos).

Por certo que isso implica numa perspectiva inter ou transdisciplinar cuja idéia básica, transcendendo os estritos limites de uma interdisciplinaridade restrita às ciências humanas, consiste em propor que várias disciplinas contidas nas ciências sociais e do comportamento tornem-se mutuamente coerentes e compatíveis com o que é conhecido nas ciências naturais, ou seja, um leque de explicações que se complementem nos diversos níveis de análise e que sejam todas mutuamente compatíveis. Esse diálogo (perspectiva ou postura) reconciliação epistemológica pressupõe simultaneamente uma reforma das estruturas do pensamento – para usar a expressão de Edgar Morin (2000): o verdadeiramente importante não é justapor os aportes das diversas ciências, senão o de enlaçá-los, de saber mover-se entre saberes compartimentados e uma vontade de integrá-los, de contextualizá-los ou globalizá-los.

Somente uma nova estrutura de pensamento pode permitir-nos conceber as ciências como conjunção, como implicação mútua, o que se costuma ver como disjuntiva: o ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social. E já existem numerosos modelos procedentes das ciências da vida que integram os comportamentos sociais como consequência de determinados traços derivados do ser humano. O objetivo consiste em detectar a presença em nossa espécie — essencialmente social e relacional — de certas estratégias sócio-adaptativas que apareceram graças a que contribuíram à sobrevivência e ao êxito reprodutivo. É mais: sem tais estratégias surgidas durante o longo período de nossa história evolutiva para resolver problemas evolutivos, nossa espécie não poderia haver conseguido prosperar.

Compreender a natureza humana, sua limitada racionalidade, suas emoções e seus sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum. E em que pese o fato de que a tendência para a separação entre o material e o espiritual tem levado, todavia, a que se absolutizem alguns desses valores – desligando-os das suas origens e das razões específicas que os viram nascer e apresentando-os como de essência espiritual, como uma transcendência que ultrapassa o próprio homem -, o direito somente adquire uma base segura quando se vincula à nossa arquitetura cognitiva altamente diferenciada e especializada, quer dizer, a partir da natureza humana unificada e fundamentada na herança genética e desenvolvida em um entorno cultural. Poder-se-ia dizer, pois, que os códigos da espécie humana são uma conseqüência peculiar de nossa própria humanidade, e que esta, por sua vez, “constitui o fundamento de toda a unidade cultural”.

Em resumo: a moral (e consequentemente o direito), mais que uma invenção recente, é parte da natureza humana e está evolutivamente enraizada na sociabilidade dos mamíferos (ainda que a tendência a medir cuidadosamente nossas ações frente ao que poderíamos ou deveríamos haver feito, nosso diálogo interior que eleva o comportamento moral a um nível de abstração e auto-reflexão seja uma característica singularmente humana). E embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais, nos há dotado de uma estrutura neuronal psicológica com determinadas tendências e habilidades necessárias para desenvolver uma bússola interna que tenha em conta tanto nossos próprios interesses como os interesses da comunidade em seu conjunto.

O desenvolvimento neurocognitivo do ser humano favoreceu o aparecimento de tais faculdades e, a partir delas, surgiu inevitavelmente a moralidade[7]. Na advertência de Changeux (1996), o cérebro é evidentemente a “base” da linguagem e da moral. E o ser humano é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo. De fato, se se borrasse o conjunto de cérebros humanos da face da terra, a moral e o direito desapareceriam ao mesmo tempo. As normas de conduta (morais ou jurídicas) e teorias jurídicas seguiriam plasmadas em livros guardados em estantes de bibliotecas abandonadas. Todas estas obras do gênio humano não teriam já a oportunidade de viver cada vez que uma mirada humana recai sobre elas. A moral e o direito não existem mais que no cérebro do homem ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir e compreender. Somente os cidadãos individuais têm direito ou sentido de justiça e bondade, e as têm precisamente em seu cérebro, na forma de representações plasmadas em suas conexões neuronais. Toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo quanto fazemos, pensamos e sentimos, depende de nosso cérebro. O cérebro é a sede de nossas idéias e emoções, de nossos temores e esperanças, do prazer e do sofrimento, da linguagem, da moral, do direito e da personalidade. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo o seu esplendor, é sem dúvida em nosso volumoso cérebro[8]. O resto é mitologia.

E como acreditamos que a realidade é real e que a ciência é um modo excelente de perceber como essa realidade funciona, o que pretendemos deixar claro é que essa nova “estrutura de pensamento” dirigida a uma reconciliação epistemológica não somente põe em cheque uma grande porção dos logros teóricos tradicionais da filosofia e da ciência do direito, como, e muito particularmente, possibilita uma revisão das bases ontológicas e metodológicas do fenômeno jurídico a partir de uma concepção mais empírica e robusta acerca da natureza humana.

A partir daí, a iniludível natureza humana serviria para impor o que poderíamos chamar as “regras do jogo”, mas não o resultado final. O mais significativo, não obstante, da aproximação naturalista é a possibilidade de fixar, dentro dessas regras do jogo, certos valores de alto rango que se deduzem do caráter e do sentido do direito como instrumento, uma estratégia sócio-adaptativa, para a convivência social[9]. Por muito que a diversidade cultural e a facilidade da aculturação permitam impor de partida quase qualquer regra jurídica – e a História nos mostra todo um catálogo de propostas que levam a situações monstruosas – as regras “aberrantes” acabam por resultar, no fundo, como ilegítimas, porque contrárias às intuições e emoções morais fixadas pela seleção natural e processadas pelo cérebro humano. Pese a seu enfoque não evolucionista, a Teoria da Justiça de Rawls se baseia precisamente nesse suposto.

O Futuro do Direito: o que podemos esperar

Situar o problema acerca do futuro do direito no nosso tempo implica adotar uma postura prospectiva, tendo como objetivo oferecer linhas de reflexões que convirjam num consenso possível. Não se trata de uma simples tarefa de descrever o que aí está – ou ainda está – senão do que está por vir, do que parece possível (e até mesmo necessário) vislumbrar esboçar-se no horizonte anunciador do futuro, e que nem por essa razão é menos do nosso tempo, pois se são as coordenadas de nossa vivência atual as condições de possibilidade do futuro, só a assumida intencionalidade antecipante dá sentido e direção ao nosso caminhar. (Castanheira Neves, 1995).

Mas, qual a relação dos avanços das ciências da vida e da mente com as pesquisas teóricas do direito? Em que medida um enfoque naturalista poderá vir a resgatar a filosofia e a ciência do direito do insulamento teórico, do hermetismo dogmático e/ou do anacronismo metodológico a que estas chegaram? Poderão os resultados das investigações científicas sobre a natureza humana provenientes de outros campos cientificamente relevantes virem a servir de fonte de informação para a filosofia e a ciência do direito, nomeadamente no que se refere à elaboração (ou reinvenção) de critérios ontológicos e metodológicos que se afastem das falsidades subjacentes às atuais concepções comuns da psicologia (e da racionalidade) humana? Duvidamos por três razões. A primeira é que os juristas distam muito de estar preparados para que os dados científicos guiem suas teorias e práticas jurídicas. A segunda razão pela qual existe resistência à idéia de que a ciência contemporânea afete ao direito tem que ver com a ameaça percebida à nossa “imaculada” noção de racionalidade que sem dúvida está vinculada com o problema da interpretação e aplicação jurídica. A terceira e última reside na aversão dos juristas em comprometerem-se com a evidência de que as ciências e as humanidades, embora continuem tendo suas próprias e separadas preocupações, são geradas por meio de um elemento material comum: o cérebro humano[10].

Seja como for, não restam dúvidas que as consequencias dessas investigações científicas são importantes para a ciência jurídica. Trazem à baila, em última instância, questões fundamentais acerca do fato de que a natureza humana não somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações sociais. Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de decidir sobre o sentido da justiça concreta e a existência de universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neuronal). Afinal, é precisamente o cérebro, como uma “máquina causal” (P. Churchland, 1989), que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para interpretar, tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade. Como recorda Ramachandran (2008), nenhuma empresa humana é mais vital que esta para o bem estar e a sobrevivência da raça humana. Recordemos que a política, a moral, a justiça e o próprio direito também têm suas raízes no cérebro humano.

É certo que ainda não conseguimos resolver o problema da mútua relação entre o natural e o cultural, ou seja, os meios pelos qual a evolução biológica e a cultura influíram sobre a natureza humana, e vice-versa. Mas para entender a condição humana – e o direito é parte dessa condição e a sua idéia (idéia de direito) é o resultado da idéia do homem – há de compreender ao mesmo tempo os genes, a mente e a cultura, e não por separado a maneira tradicional da ciência e as humanidades: a dinâmica, em conjunto, entre os genes e o entorno é o que constitui e configura o ser humano; e é o cérebro o que nos permite analisar, raciocinar, formular teorias e juízos de valor, interagir com os demais e adaptar-nos a todos os contextos.

Algo passa com as ciências sociais e, nomeadamente, com a ciência e a filosofia do direito. E é já um tanto ridículo a esta altura seguir falando de sua “imaturidade”, porquanto já não há motivos para este tipo de argumentação: nem são mais jovens que as ciências naturais, nem pode dizer-se tampouco que seus cultivadores tenham sido espíritos menos refinados ou avisados que os que se dedicaram a cultivar as ciências naturais. A filosofia e a ciência do direito não podem oferecer uma explicação ou uma descrição do “direito real”, do fenômeno jurídico ou da racionalidade jurídica, nem menos esgotar-se nelas, porque sua perspectiva não é primordialmente explicativa nem descritiva, senão normativa. Podem e devem aprender coisas das ciências da vida e da mente, na medida em que somente uma compreensão realista da natureza humana, considerada sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos, poderá levar-nos a reconstruir as melhores e mais profundas teorias acerca do direito e de sua função na constituição da sociedade.

Dito de outro modo, o direito adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo (um novo panorama intelectual que antes parecia distante, estranho e pouco pertinente). Os mecanismos cognitivos são adaptações que se produziram ao longo da evolução através do funcionamento da seleção natural e que adquiriram formas particulares para solucionar problemas adaptativos de larga duração relacionados com a complexidade de uma existência, de uma vida, essencialmente social.

Pode-se argumentar, é verdade, que esta situação é episódica e não deve, por isto, ser tomada em consideração. Mas engana-se quem assim pondera. A vida social despenca do normal para o excepcional com mais facilidade do que se pensa e com maior rapidez do que seria imaginável. E a história (e as ciências da vida e da mente) está aí para demonstrar a necessidade de uma adequada concepção acerca da natureza humana para tratar com valores, normas e princípios jurídicos e, muito especialmente, para fazer face ao emocional e ao imprevisto decorrentes de nosso entorno sócio-cultural.

A atual e inegável desvinculação com relação às outras áreas de conhecimento, à natureza humana e à realidade social e suas práticas tem gerado como consequência o reforço da crise de legitimação do próprio direito. Pode-se dizer, inclusive, que o direito vai anunciando um ponto crítico de que ele poderá sair subvertido ou resgatado. Ou conserva o isolamento teórico e o racionalismo formalizante que sempre o tem vindo a constituir, e dele não restará mais do que uma carcaça ressequida e fria de um dispositivo serventuário da autoridade estatal; ou ouve e faz seu o apelo de afirmação e/ou recuperação de uma concepção empírica de natureza humana, e será também dele o futuro, pois neste caso o direito mais não será que o direito que ao homem compete cumprir e reconhecer a sua humanidade na “multidão dos homens”. Como já dissemos em outro momento, a inumanidade do direito é infinitamente mais indesejável que a ausência de todo direito.

Desafortunadamente, neste momento em que o velho está morto ou morrendo e o novo ainda não pôde nascer ou impor-se em sua integralidade, vem surgindo uma variedade de sintomas mórbidos, decorrentes, fundamentalmente, da quase completa desconexão do direito com o resto das ciências e o seu inconsequente e mais displicente descaso com as características (cognitivas , morais e emocionais) que procedem da admirável natureza humana.

Contudo, será igualmente importante que se tenha o devido cuidado à hora de expressar tal idéia, evitando a assunção de que os genes prescrevem o comportamento humano de uma maneira simples, de um sobre o outro[11]. Oxalá fossem as coisas tão simples. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também quem pensa que a natureza é tudo esquece que, a esta altura da história, o conceito de natureza resulta muito complicado, porque os humanos não somente são o resultado de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nosso entorno.

Depois, todos os recentes progressos da ciência relativos à natureza humana não constituirão o triunfo de qualquer tipo de reducionismo, como também não é definitivamente certo que um maior e melhor conhecimento da natureza humana, por si só, nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Ainda que algum dia cheguemos a compreender profundamente nossa natureza, todos os processos neuronais que subjazem à empatia humana, ao altruísmo, ao livre arbítrio, ao sentido de justiça ou à responsabilidade moral, continuará intacta nossa “perspectiva interna”.

O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. As ciências da vida e da mente nos ajudarão a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo. Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, a revolução provocada por estes novos conhecimentos cambiarão a imagem que temos do mundo e de nós mesmos, depois de rebaixar uma vez mais o orgulho que nos fez (e ainda nos faz) “ter fé” em tantas falsidades.

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Einstein disse certa vez que uma motivação importante para se construir novas teorias é um “esforço em direção à unificação e à simplificação”. E porque o direito é complexo demais para poder ser forçado a ir para o leito procustiano de teorias herméticas e desconectadas, nossa tese é a de que os novos avanços da ciência cognitiva, da neurociência cognitiva, da primatologia, da antropologia evolutiva, da genética do comportamento e da psicologia evolucionista – enfim, das ciências da vida e da mente – permitirá uma melhor compreensão da mente, do cérebro e da natureza humana e trará consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da compreensão do fenômeno jurídico, de sua interpretação e aplicação prático-concreta: constituem uma oportunidade para refinar nossos valores e juízos ético-jurídicos, assim como estabelecer novos parâmetros ontológicos e critérios metodológicos sobre cimentos mais firmes e consistentes.

Estamos firmemente convencidos de que chegou o momento de transladar o problema do direito a um plano distinto e mais frutífero. E ainda que uma perspectiva naturalista não possa determinar se o câmbio é adequado nem que medidas devem ser adotadas para criar, em caso de optar por ela, um desejado câmbio, seguramente poderá servir para informar sobre uma questão de fundamental relevância prático-concreta: quem operacionaliza o direito pode procurar atuar em consonância com a natureza humana ou bem em contra essa natureza, mas é mais provável que alcance soluções eficazes (consentidas e controláveis) modificando o ambiente em que se desenvolve a natureza humana do que empenhando-se na impossível tarefa de alterar a própria natureza humana.

O objetivo de uma boa formação jurídica deveria ser o de fomentar a virtude de compreender melhor a natureza humana e, a partir daí, tratar de fomentar a elaboração de um desenho institucional e normativo que permita a cada um conviver (a viver) com o outro na busca de uma humanidade comum: o modo como se cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo do fenômeno jurídico, da justiça, do homem como causa, princípio e fim do direito e, consequentemente, para a dimensão essencialmente humana da tarefa de elaborar, interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, de um direito que há de servir à natureza humana e não ao contrário.

Longe de ser inimiga das teorias tradicionais, essa nova postura naturalista é um aliado indispensável das mesmas. Não se trata de subestimar o abundante trabalho realizado até o momento no campo do pensamento jurídico e de sua realização prático-concreta em prol de uma “alternativa” adaptacionista/naturalista, senão mais bem assentar dito trabalho sobre os cimentos que merece: uma visão realista, naturalista, potencialmente unificada do lugar que ocupamos na natureza.

A moral e o direito estão entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela humanidade, e precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar decisões políticas, jurídicas e/ou éticas bem informadas e justas. Embora haja riscos e desconfortos envolvidos nesse tema, devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância tradicional de investigar cientificamente os fenômenos éticos e jurídicos, de modo a compreender como e por que a moral e o direito inspiram tal devoção, e descobrir como deveríamos aperfeiçoá-los a partir do estabelecimento de vínculos adequados com a natureza humana.

O objetivo, recorda Chomsky (2006), deve ser sempre o de intentar criar a visão de uma sociedade donde impere a justiça; isto significa criar uma teoria social humanista baseada, na medida do possível, em uma concepção humanista e firme da essência humana, ou da natureza humana, quer dizer, de intentar estabelecer as conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar à liberdade, à igualdade, à dignidade, à nossa distintiva capacidade de imaginar e outras características humanas fundamentais, e uma noção de estrutura social donde estas propriedades possam realizar-se e a vida humana adquira um sentido pleno[12].

Mas não será tudo isso uma utopia? Certamente – mas é uma utopia prática, que depende de nossos atos encaminhá-la para a existência. Apesar da larga aceitação ( manifesta ou dissimulada) da “pureza” das ciências jurídicas, não existe o menor indício de que o assombro do entendimento não seja mais desejável frente ao assombro da “desatenção cega”- isto é, da incapacidade de ver também o que não estamos acostumados a ver ou que não temos de antemão na cabeça. Como disse Heráclito: “Se não esperas o inesperado, não o encontrarás”.

 

Referências
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(1993) WILSON, J. Q., The Moral Sense, New York: Free Press.
Notas:
[1] Nas palavras de Pinker (2002), todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos temos de prever o comportamento dos demais, o qual significa que todos necessitamos umas teorias sobre o que é o que move às pessoas a adotar determinadas condutas. Uma teoria tácita da natureza humana – segundo a qual o comportamento é causado por pensamentos e emoções dos causantes da conduta- é ínsita ao modo como concebemos a pessoa. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remetemos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. Aconselha-nos sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente, aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta a nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Para uma introdução histórica acerca das concepções da natureza humana, a importância da idéia de natureza humana para o indivíduo e a forma como afeta de maneira profunda o tipo de sociedade em que vivemos e em que nos gostaria viver.
[2] Esses dois processos existem evidentemente. Não obstante, compartimos da idéia de que a hominização é primeira; a humanização, sem ser um simples resultado (os indivíduos também têm seu papel, com o que isso supõe de contingência e criatividade), depende dela. De início, e embora o aparecimento da humanidade à vista e o conhecimento da história tenha devolvido às trevas a animalidade que lhe precedeu, é afinal a natureza humana unificada e fundamentada na herança o que faz a diferença. De fato, como seres intencionais, qualquer ação – quer dizer, qualquer movimento, qualquer pensamento ou qualquer sentimento ou emoção que tenham propósitos intencionais – responde a uma forma específica de como a seleção natural modelou nosso cérebro dotando-lhe de uma vantagem adaptativa. Os objetivos de nossas ações se alcançam por meio de estratégias estritamente vinculadas à natureza humana, sem prejuízo – claro está – de admitir amplas variações resultantes da inserção no entorno sócio-cultural em que se vive. A cultura influi tanto no sentido de acentuar como de rebaixar as tendências mais profundamente enraizadas na natureza humana. Essa dupla ação natureza/cultura produziu, durante o largo curso de nosso processo evolutivo, algumas estratégias e mecanismos desenhados com a intenção de que servissem para resolver determinados problemas adaptativos a eles associados. Se o propósito se alcança, assumimos e dizemos que tais mecanismos têm valor (que são bons) e, como tal, que são capazes de ir acumulando “tradições” que, não obstante em processo contínuo de renovação (da evolução acumulativa e renovada da cultura pelo efeito “ratchet”, de que nos fala Tomasello, 1993 e 1999), se transmitem de geração em geração mediante atuações individuais de pessoas influídas por esse triplo conjunto de elementos procedentes da natureza, da cultura e da história, tanto recente como remota, da humanidade. Ante um panorama assim, de diversidade temporal e cultural tão ampla, a hipótese de que todos os humanos sem exceção significativa tendem a valorar como “boa” uma mesma coisa levaria a afirmar que não pode ser porque nos tenhamos posto todos de acordo sobre sua bondade. Tal valor compartido se assentaria na psicologia natural da espécie humana ao dar uma solução efetiva aos problemas adaptativos do momento.
[3] Em 1991, Alan Fiske, professor de antropologia da UCLA, desenvolveu uma detalhada análise etnográfica dos mossi, de Burkina Faso, uma sociedade que habita na região oeste de África. Sobre a base deste trabalho de campo e do trabalho acadêmico acerca de uma variedade de disciplinas que estudam distintas culturas, Fiske propôs um modelo de relações sociais humanas, de acordo com o qual nos vinculamos com os demais mediante quatro formas elementares de relações sociais: reparto comunal, donde as pessoas têm um sentido de identidade comum; autoridade superior, donde as pessoas se relacionam seguindo uma hierarquia; ajuste à igualdade, donde existe uma relação igualitária entre os pares; e preço de mercado, donde a relação se vê mediada por valores que seguem um sistema de mercado. Ao sustentar que estas quatro estruturas vinculantes elementares e suas variações justificam todas as relações sociais entre todos os seres humanos de todas as culturas, Fiske sugere, como única explicação possível deste fato, que estão arraigadas na complexa estrutura da mente humana. Esta idéia sugerida por Fiske dá resposta a muitos dos interrogantes sobre a forma como a organização domínio-específica da mente humana afeta as relações sociais e condiciona nossas intuições morais (o decidir entre o que é bom e o que não o é em relação aos próprios interesses e dos demais supõe o sentido do que é socialmente apropriado no entorno em que estabelecemos nossos vínculos sociais relacionais). E uma vez que parece impensável tratar de relação jurídica (isto é, as relações pessoais dos indivíduos humanos que o discurso jurídico identifica como tal) sem tomar como referência a relação social que a consubstancia e lhe subjaz, um simples exame das características dos quatro tipos de vínculos sociais relacionais propostos por Fiske permite descobrir poderosas e firmes vias de articulação jurídica dessas formas de vida social: modos adequados de combiná-las, de potenciar e cultivar seus melhores lados, e de mitigar ou jugular seus lados destrutivos e perigosos. Recordando a Betti (1955), as relações jurídicas têm seu substrato em relações sociais existentes já antes e inclusive fora da ordem jurídica: relações que o direito não cria, mas encontra ante si, prevê e orienta na diretiva de categorias e avaliações normativas. Para mais detalhes, cfr. Atahualpa Fernandez, 2007.
[4] Em termos mais gerais, nossa capacidade ética e nosso comportamento moral (e jurídico- normativo) devem ser contemplados como um atributo do cérebro humano e, portanto, como um produto mais da evolução biológica e que está determinado pela presença (no ser humano) de três faculdades que são necessárias e, em conjunto, suficientes para que dita capacidade ou comportamento se produza: a de antecipar as conseqüências das ações; a de fazer juízos de valor e; a de eleger entre linhas de ações alternativas. Vejamos em que consistem essas faculdades. A capacidade de prever as consequências das ações, é talvez, a mais fundamental das três condições requeridas para que possa dar-se o comportamento ético. Tal capacidade está estritamente relacionada com a de estabelecer a conexão entre o meio e o fim, quer dizer, de ver ao meio precisamente como meio, como algo que serve a um fim ou propósito determinado. A possibilidade de estabelecer a conexão entre meios e fins requer a capacidade de imaginar o futuro e de formar imagens mentais de realidades não presentes em um momento dado ou ainda inexistente. A possibilidade de estabelecer a conexão entre meios e fins é, de fato, a capacidade intelectual fundamental que tornou possível o desenvolvimento da tecnologia e a cultura humana. As raízes evolutivas de tal capacidade estão no aparecimento da posição bípede, que transformou as extremidades anteriores de órgãos de locomoção em órgãos de manipulação. As mãos puderam então servir para a construção e uso de objetos utilizáveis para a caça e outras atividades que aumentavam a probabilidade de sobrevivência e reprodução. A seleção natural favoreceu o aumento da capacidade intelectual de nossos antepassados, pois que esta fazia possível a construção de utensílios, que eram adaptativamente vantajosos para seus possuidores. A capacidade de antecipar o futuro, necessária para a existência do comportamento ético, está pois intimamente associada com a evolução da habilidade de construir utensílios, cujo resultado é a avançada tecnologia da humanidade moderna, e é responsável do êxito da humanidade como espécie biológica. A segunda e a terceira das condições necessárias para que se dê o comportamento ético, quer dizer, a capacidade de fazer juízos de valor e de eleger entre modos alternativos de ação, estão também fundamentadas na enorme capacidade intelectual dos seres humanos. A faculdade de formar juízos de valor depende da capacidade de abstração, de ver objetos ou ações determinados como membros de classes gerais, o qual torna possível a comparação entre objetos e ações diversos e perceber uns como mais desejáveis que outros. Tal capacidade de abstração requer uma inteligência desenvolvida, como parece ocorrer nos seres humanos e somente neles. Enquanto a capacidade de eleger entre modos alternativos de ação, vemos de novo que está baseada em uma inteligência avançada que torna possível a exploração de alternativas dispersas e a eleição de umas ou outras em função das consequências antecipadas. Em resumo, a capacidade de comportamento ético é um atributo da constituição biológica humana e, por isso, resultante da evolução, não porque tal capacidade fora diretamente promovida pela seleção natural por ser adaptativa em si mesma, senão porque se deriva de uma capacidade intelectual avançada. É o desenvolvimento da capacidade intelectual o que foi diretamente impulsionado pela seleção natural, posto que a construção e o uso de utensílios contribuem ao êxito biológico da humanidade (Cela Conde e Ayala, 2007).
[5] A característica da cultura que a torna tão central na vida humana é o seu potencial acumulativo: os seres humanos modernos desenvolveram a capacidade de “identificar-se” (de ver os “outros”) como membros de sua própria espécie, conduzindo a um entendimento recíproco como seres intencionais; esta nova classe de entendimento social favoreceu o aparecimento de novas formas simbólicas de interação social que, por sua vez, conduziu à produção gradual de novos artefatos culturais cada vez mais complexos, acumulando modificações ao longo do tempo histórico e em um grau que não é encontrado em outra espécie. Nas palavras de Edgar Morin (2000): a cultura, que não está assimilada de forma hereditária, aparece e se transmite por aprendizagem. A cultura não somente nasce no marco de um processo natural senão que adquire uma relativa autonomia, o que vai a propiciar o desenvolvimento da humanidade: já na última etapa, a do Homo sapiens, havia um acervo cultural propício para a eclosão de um grande cérebro, esse grande cérebro que supera desde qualquer ponto de vista ao do Homo erectus. Se a cultura é o resultado de uma evolução natural, o último estágio desta evolução não podia dar-se sem que existisse a cultura. Já não falamos simplesmente de corte epistemológico senão também de soldadura ontológica. Significa dizer que inclusive o ato de filosofar não pode perder de vista sua origem animal, e que aí, nessa simbiose, reside o característico da “natureza humana” (o próprio “tempo”, que durante um largo período se acreditou ser uma noção filosófica agora descobrimos que talvez seja um conceito biológico; os neurocientistas nos explicam que quando se produz um corte do lobo prefrontal ou uma alteração dos tubérculos mamilares, os sujeitos passam a perceber somente o presente, vivem em uma sucessão de presentes: deixa de haver, nessas zonas cerebrais, conexões com a memória e possibilidade de antecipação). A mente se inscreve no e é produto da atividade de nosso cérebro, uma massa de aproximadamente 1 quilo e meio de peso que resulta ter uma estrutura mais complexa que uma galáxia repleta de estrelas. Nenhuma construção cultural pode desconectar-se de sua raiz, e esta raiz é tão “espiritual” como “material”, tão cultural como animal. Dito de outro modo, a origem de nosso comportamento normativo (ético/jurídico) não se encontra tanto no contrato social de Hobbes senão nas idéias do próprio Darwin, precursor dos etólogos. A origem está nos “instintos sociais “ dos animais, não somente no temor racional do egoísmo (Hobbes). Há uma prévia “empatia” ativa que desenha soluções compartidas. As condutas morais não somente são produto da história cultural, senão também da seleção natural. Se cabe falar de um “animal ético” é porque os comportamentos altruístas e corporativos possuem um valor de sobrevivência. Seja como for, o certo é que, desde uma perspectiva mais científica que humanista, filosofamos depois de Darwin. Sabemos que descendemos daqueles primeiros símios que começaram a andar sobre duas patas. Sabemos que todos os seres vivos usam o mesmo código, e que estamos baseados no DNA. Somos essencialmente animais. Animais falantes ou éticos, mas animais ao fim.
[6] Não é “cientificismo” pretender conceder objetividade e precisão ao conhecimento, do mesmo modo que não é adoração da história conceber que Napoleão durante um tempo dominou a França e que o Holocausto sucedeu realmente; aqueles que temem os fatos tratarão sempre de desacreditar aos que os encontram (Dennett, 1995). No mesmo sentido, James Q. Wilson (1993) , que recorre à análise da investigação científica social, mas reconhece que “ a verdade, se existe, está nos detalhes.[…] Não trato de descobrir “fatos” que provem “valores”; intento descobrir as origens evolutivas, culturais e de desenvolvimento dos hábitos morais e do sentido moral. Mas ao descobrir tais origens, suspeito que encontraremos uniformidades; e, ao revelar uniformidades, creio que podemos apreciar melhor os aspectos gerais, não arbitrários e emocionalmente convincentes da natureza humana.[…] Por muito que se considere o método científico como inimigo da moral, os achados científicos proporcionam um apoio considerável para sua existência e sua força”. Wilson emprega diversos argumentos para defender sua tese acerca do sentido moral humano inato. Não somente rastreia a história da filosofia senão também a teoria da evolução, a antropologia, a criminologia, a psicologia e a sociologia. Sua conclusão é que, digam o que digam os intelectuais, existem certos instintos morais reitores de alcance universal. De fato, são tão instintivos que com frequência os passamos por alto: “Grande parte da discussão acerca da existência de traços humanos universais foi e tem sido canalizada como busca de leis e costumes estabelecidos. Mas provavelmente o mais universal são esses impulsos que, por ser tão comuns, não se formulam como regra[…]”. Entre eles destaca o fato de que todas as sociedades admitem que o assassinato e o incesto estão mal, que há que cuidar e não abandonar às crianças, que não devemos dizer mentiras nem descumprir promessas, e que devemos ser fiéis à família. Em síntese, Wilson rechaça a idéia de que a moral ( e consequentemente o direito) é um mero constructo social, a idéia de que estamos obrigados a comportar-nos de certa maneira por fatores puramente externos. Do diálogo, pois, entre ciência e humanidades, deverá provir um entendimento mais profundo acerca de quem somos, de nossas intuições e emoções morais, de nossas condutas e dos artefatos sócio-culturais que criamos.
[7] Parecem ser três as condições (necessárias e suficientes) que se deu para a evolução da moralidade: 1. valor do grupo ou inclusão social, que consiste na dependência do grupo para encontrar comida ou para defender-se dos inimigos e depredadores; 2. apoio mútuo ou preocupação pela comunidade, que consiste na cooperação e intercâmbio recíproco dentro do grupo; 3. conflito dentro do grupo, condição segundo a qual os membros individuais de um determinado grupo têm interesses díspares (de Waal, 1996 e 2006 – cujas teorias acerca da origem, evolução, natureza, níveis e componentes básicos da moralidade admitimos como acertadas em muitos de seus aspectos). Note-se que, para de Waal (2006), a moralidade, mais que uma invenção recente, é parte da natureza humana e está evolutivamente enraizada na sociabilidade dos mamíferos (ainda que a tendência a medir cuidadosamente nossas ações frente ao que poderíamos ou deveríamos haver feito, nosso diálogo interior que eleva o comportamento moral a um nível de abstração e auto-reflexão, segundo de Waal , seja uma característica singularmente humana). Daí que, para de Waal (2006), embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais ( que não surgem a partir de máximas derivadas independentemente, senão que nascem da “interiorização” de nossas interações com os demais – isto é, de que a interação social há de estar na raiz do raciocínio moral), nos há dotado da estrutura psicológica , as tendências e as habilidades necessárias para desenvolver uma bússola interna ( configurada por nosso entorno social, na qual as emoções precedem a racionalidade e constituem a força que impulsiona a realização de juízos morais) que tenha em conta os interesses da comunidade em seu conjunto capaz de guiar-nos na tomada de decisões vitais; aqui reside a essência da moralidade humana, cujo domínio (moral) da ação consiste em ajudar ou (não) causar dano aos demais. Resumindo: nossos sistemas morais reforçam algo que é em si parte de nossa herança; não estão transformando radicalmente o comportamento humano: simplesmente, potenciam capacidades pré-existentes, isto é, tem seu assento último nos mecanismos mais primitivos de nosso cérebro (os mecanismos das emoções que dão a satisfação do dever cumprido, a alegria pelo êxito de alguém querido, a felicidade de amar e cooperar, etc.).
[8] Daí que Gazzaniga (2005) defenda a idéia de que poderia existir um conjunto universal de respostas biológicas aos dilemas morais, uma sorte de ética integrada no cérebro – isto é, de que temos um sentido moral que está construído em nossos cérebro por nossa evolução, como nosso instinto sexual ou nosso medo às alturas ou, como Hauser (2006) prefere dizer, como nossa capacidade para a linguagem : estamos dotados de uma faculdade moral que guia nossos juízos intuitivos sobre o bem e o mal; essas intuições refletem o resultado de milhões de anos nos quais nossos antecessores viveram como mamíferos sociais e formam parte de nosso patrimônio comum (Hauser, 2006).
[9] Um equívoco comum das interpretações positivistas e naturalistas do direito – já seja de origem transcendente ou darwiniano – consiste em entender que a natureza humana contém o que poderíamos chamar o “produto final” do direito, enquanto que para uma interpretação positivista do fenômeno jurídico o melhor caminho é sempre o de negar, pura e simplesmente, a natureza humana. Essa parece ser uma conclusão necessária sempre que analisemos a determinação da conduta moral e dos juízos éticos com relação às instâncias supra-individuais, sejam elas de ordem genético, normativo, teológico ou transcendental. Se a natureza ou a cultura conduz de maneira necessária até um “sentido moral” preciso, então essa condição moral vem garantida e assegurada sem necessidade alguma de ação individual. Sem embargo, o modelo que propomos nega essa dependência. O domínio das preferências humanas é, como já dissemos tantas vezes, o resultado de um amadurecimento dentro de um grupo social e de uma adequação a determinados acontecimentos históricos, amadurecimento que conduz, desde as constrições gerais e significativas para a percepção e o armazenamento discriminatório das representações cognitivas, ao repertório final – e muito plástico – dos padrões de atividade de nosso cérebro dos quais emerge nossa conduta. E uma vez que a enorme carga de riqueza empírica (e intuitiva) milita em favor desta linha de pensamento, a razão parece inclinar-se fortemente à evidência de que o nascimento de representações culturais como o direito pressupõe a integração de uma visão vinculada à natureza humana, ou seja, de que a co-evolução entre os genes e a cultura teceu não só parte, senão toda a rica trama do comportamento social humano. Dito de outro modo, se o fundamento da ética e dos direitos individuais é a suposição de que as pessoas têm preferências , desejos e necessidades – e que, por sua vez, gozam de plena autoridade sobre o que são estes desejos, necessidades e preferências – , a negação de uma estrutura fixa da natureza humana e a consequente negação da possibilidade de se aceder a métodos universalmente válidos de pensamento objetivo pode ser um instrumento útil para, uma vez deformada , justificar qualquer atrocidade e, como tal , servir para atender a finalidades potencialmente perniciosas.Aceitar essa condição seria tanto como supor que os agentes cognitivos individuais são “all-purpose computers”, capazes de albergar qualquer crença ou preferência epistêmica ( Jones e Goldsmith, 2004). Ao contrário, o razoável é supor que os seres humanos dispõem de um repertório cognitivo que é domínio-específico, e que o tipo de preferências, crenças e desejos que podem asilar está severa e causalmente restringido por nossa arquitetura cognitiva (Hirschfeld e Gelman,1994; Atahualpa e Marly Fernandez, 2008).
[10] Simétrica à falácia naturalista, a falácia moralista consiste em inferir um fato de um desejo, valor, imperativo ou enunciado moral ou deôntico. A falácia naturalista consiste em inferir “deve” de “é”; a falácia moralista consiste em inferir “é” de “deve”. Como é obvio, ambas são falácias e insustentáveis logicamente. Pinker chamou a atenção sobre a frequência com que diversos intelectuais bem intencionados e “politicamente corretos” caem na falácia moralista. Não podemos inferir nada acerca da natureza humana a partir de nossos meros ideais políticos ou de vagas elucubrações acadêmico- filosóficas. A investigação da natureza humana é uma questão tão fática como a medida do perihelio de Mercúrio. Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma natureza humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre esta e meramente como condição transcendental de possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da liberdade, da igualdade, da dignidade humana,…
[11] Recorde-se que os genes codificam estruturas neuronais e não comportamentos. A afirmação de que alguns traços da personalidade têm um componente hereditário significa não somente que os genes (ou mais propriamente o “quando” e “como” se expressam esses genes) influem no desenvolvimento do cérebro e dos circuitos neuronais implicados nos sistemas cerebrais, senão que também a experiência pode modificar a expressão de certos genes que são capazes de alterar a estrutura e o próprio funcionamento do cérebro ( isto é, de que são múltiplos os fatores que regulam e modificam a expressão de nossos genes e, consequentemente, que configuram as características da conduta humana complexa). A grande diversidade de condutas, habilidades e temperamentos que caracterizam cada indivíduo procedem das diferenças genéticas e os processos de impressão devidos às influências ambientais, por necessidades individuais e seguindo um sistema individual de valores, os quais, por sua vez, geram e configuram o caráter particular que possui o cérebro de cada pessoa (o que ilustra as maravilhas da plasticidade cerebral – neuronal ou sináptica). Dito de outro modo, as experiências vividas alteram o uso que fazemos da informação genética e produz particulares modificações da estrutura e do funcionamento cerebral (ao cambiar e reorganizar os circuitos e as conexões neuronais ou sinápticas presentes no cérebro, capacidade de câmbio esta denominada de neuroplasticidade). A formação e construção do cérebro (que subjaz a nossas emoções e condutas, à resolução de problemas, aos processos de tomada de decisão, à inteligência, ao pensamento, a capacidades tão humanas como a linguagem, a atenção ou os mecanismos de aprendizagem e memória, etc.) é larga, maleável, custosa e complexa. Tal como expõe Norman Doidge, a evolução nos há dotado de “un cérebro que sobrevive en un mundo cambiante cambiándose a sí mismo”.(Atahualpa e Marly Fernandez, 2008)
[12] De fato, continua Chomsky (2006), a concepção do entendimento humano como uma tabula rasa é um poderoso instrumento em mãos do totalitarismo: se as pessoas são em realidade seres maleáveis, infinitamente adaptáveis e acomodados , sem nenhuma essencial natureza psicológica, então, por que não hão de ser controlados e coagidos por aqueles que se arrogam autoridade, conhecimentos especiais e uma clarividência única sobre o que mais convém aos que são menos esclarecidos? Felizmente, ficou provado que existe, nas palavras de Lionel Trilling, “um resíduo de qualidade humana que escapa do controle cultural”. Do contrário, “os russos seriam a esta altura irremediavelmente corruptos, o que claramente não são. Marx projetou um sistema social que só funcionaria se fôssemos anjos; fracassou porque somos animais. A natureza humana absolutamente não se alterou. Eu preferiria que o homem tivesse uma natureza inata do que ficar com uma tabula rasa humana na qual qualquer tirano ou pessoa bem-intencionada pudesse escrever à vontade sua mensagem (“sempre benévola”). E acho que o homem possui essa natureza, que ela é intensamente social, e que desmente todos os manipuladores beatos, de Mill a Stalin” , disse Robin Fox (1989).

 


 

Informações Sobre os Autores

 

Atahualpa Fernandez

 

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

 

Marly Fernandez

 

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB).

 


 

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