Resumo: O presente tema traz a tona um debate profícuo sobre como os Tribunais vem utilizando de artifícios para inviabilizar o direito dos contribuintes a repetição de indébito quando recolhido indevidamente o tributo de ICMS sobre as bonificações ou descontos incondicionais.
Superada a visão inicial da impossibilidade de deferimento da repetição de indébito quando existente a substituição tributária, a tendência dos Tribunais vem caminhando para inaceitabilidade dos próprios documentos fiscais.
É verdade! Se está chegando ao ponto de que o direito é reconhecido mas a possibilidade de reaver tais valores é obstaculizada pelo próprio Judiciário, o qual utilizando-se da sua discricionariedade acaba evitando que as empresas possam reaver os valores indevidamente recolhidos.
E infelizmente se tem percebido que muitos Magistrados apenas tem “copiado e colado” em suas sentenças decisões que apenas refletem posições dominantes sem analisar o caso concreto, tornando feitos tributários que mereceriam maiores análises em mera “justiça de massa”. É aquela velha história que como delimita Ortega Y Gasset quando salienta que “a massa faz sucumbir tudo o que é diferente, egrégio, individual, qualificado e especial.”[1]
Essa massificação de julgados sem análises minuciosas tem ampliado ainda mais a incompreensão dos juristas quanto aos temas tributários, tornando um sistema normativo-tributário em algo mais complexo e inexorável de se trabalhar.
Belas as palavras de Augusto Becker quando salienta que :
“Esta contaminação prostitui a atitude mental jurídica, fazendo com que o Juiz, a autoridade pública, o jurista, o advogado e o contribuinte desenvolvam (sem disto se aperceberem) um raciocínio pseudojurídico. Deste raciocínio pseudojurídico resulta, fatalmente, a conclusão invertebrada e de borracha que se molda e adapta ao caso concreto segundo o critério pessoal (arbítrio) do intérprete do Direito Positivo (regra jurídica). Em síntese: aquele tipo de raciocínio introduz clandestinamente a incerteza e a contradição para dentro do mundo jurídico; incertezas e contradições que conduzem todos ao manicômio jurídico tributário e à terapêutica e à cirurgia do desespero”.[2]
Pasmem que mesmo reconhecido o direito, como se aduz no leading case junto ao Superior Tribunal de Justiça, REsp n.º 1.111.156/SP, submetido ao regime do artigo 543 C do Código de Processo Civil, de relatoria do Ministro Humberto Martins, em 14 de outubro de 2009, publicado em 22 de outubro de 2009, em acórdão que restou assim ementado:
“TRIBUTÁRIO – ICMS – MERCADORIAS DADAS EM BONIFICAÇÃO – ESPÉCIE DE DESCONTO INCONDICIONAL – INEXISTÊNCIA DE OPERAÇÃO MERCANTIL – ART. 13 DA LC 87/96 – NÃO-INCLUSÃO NA BASE DE CÁLCULO DO TRIBUTO. 1. A matéria controvertida, examinada sob o rito do art. 543-C do Código de Processo Civil, restringe-se tão-somente à incidência do ICMS nas operações que envolvem mercadorias dadas em bonificação ou com descontos incondicionais; não envolve incidência de IPI ou operação realizada pela sistemática da substituição tributária. 2. A bonificação é uma modalidade de desconto que consiste na entrega de uma maior quantidade de produto vendido em vez de conceder uma redução do valor da venda. Dessa forma, o provador das mercadorias é beneficiado com a redução do preço médio de cada produto, mas sem que isso implique redução do preço do negócio. 3. A literalidade do art. 13 da Lei Complementar n. 87/96 é suficiente para concluir que a base de cálculo do ICMS nas operações mercantis é aquela efetivamente realizada, não se incluindo os "descontos concedidos incondicionais". 4. A jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido de que o valor das mercadorias dadas a título de bonificação não integra a base de cálculo do ICMS. 5. Precedentes: AgRg no REsp 1.073.076/RS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 25.11.2008, DJe 17.12.2008; AgRg no AgRg nos EDcl no REsp 935.462/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJe 8.5.2008; REsp 975.373/MG, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 15.5.2008, DJe 16.6.2008; EDcl no REsp 1.085.542/SP, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 24.3.2009, DJe 29.4.2009. Recurso especial provido para reconhecer a não-incidência do ICMS sobre as vendas realizadas em bonificação. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução 8/2008 do Superior Tribunal de Justiça”. (Grifou-se)
Ampliando o debate, é preciso, a essa altura do estudo, diferir o que é venda com bonificação da simples bonificação. Carraza em seus estudos delimitou sabiamente a operação de venda com bonificação, quando salientou a venda de 12 mercadorias, sendo 10 literalmente vendidas e duas doadas. Expõe o autor que “pouco importa que dez unidades tenham sido ‘vendidas’ e que outras duas tenham sido ‘doadas’. Há, no caso, uma correlação necessária entre a ‘doação’ e a ‘venda’, pois sem esta última aquela não ocorreria. E desta correlação necessária decorre uma operação específica e bem determinada: a venda com bonificação”.[3]
Já a bonificação pura, salvo melhor juízo, é aquela em que há apenas a operação de doação das mercadorias, fugindo a qualquer relação comercial direta em uma mesma operação.
Essa ressalva se faz necessária haja vista que a venda com bonificação pode caracterizar sim uma venda na totalidade com descontos incondicionados, sendo uma espécie de evasão fiscal na operação tributária. Essa tese os Fiscos estaduais adoram, na maioria das vezes desconsiderando a operação e impondo as multas pela suposta infração!
Mas no caso do presente estudo, se está lidando com a ideia de bonificação pura, ou seja, caracterizada pela entrega de pequenas quantidades de produtos a tal específico título.
No mundo corporativo, principalmente quando se trata de empresas que atuam no ramo alimentício, a bonificação é praticamente uma regra para sobrevivência no mercado, haja vista a competitividade existente em tal ramo e as pressões sob as equipes de venda. Nesse sentido Filho ensina que “as bonificações em mercadoria não alteram o valor da operação, não são pagas pelos adquirentes, não são recebidas ou debitadas pelo vendedor e estão atreladas a um contrato de compra e venda, como condição necessária à sua celebração. Assim, em face da alta competitividade em que as empresas se encontram, há casos em que, se não existir a bonificação, não se celebra contrato algum, não há venda.”[4]
Dessa forma, na existência de ramos industriais em que a bonificação é muito importante para as práticas de comércio, surge também o direito dos mesmos em reaverem os valores recolhidos indevidamente. Tal afirmação chega a ser contraditório perto da nefasta visão que será demonstrada de agora em diante.
Inicialmente, sabe-se que é direito do contribuinte ter a devida compensação ou restituição de tributo pago indevido. Lição básica vislumbrada no art. 165 do CTN que assim salienta: “Art. 165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos: I – cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido; II – erro na edificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento; III – reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória. (Grifou-se)
Para o exercício desse direito o contribuinte tem a obrigação de provar que houve o recolhimento indevido ou pagamento a maior. No caso, aplica-se o disposto no art. 333, I do CPC, afinal, a prova do direito é de quem alega. No presente estudo, a prova fica a cargo do contribuinte (indústria).
Mas agora se chega ao ponto delicado da questão! Qual a prova para validar uma bonificação de mercadoria?!
Em uma resposta jurídico-contábil não existiria erro em alegar que a prova é própria nota-fiscal, afinal, ela é o documento hábil para todos os Fiscos, haja vista sua formalidade e sua presunção de veracidade juris tantum. Mas infelizmente não é isso que ocorre na atualidade.
A discricionariedade judicial chegou ao absurdo de negar a validade das notas-fiscais para comprovação do recolhimento de tributo, considerando-as inconsistentes para feitura de prova suficiente para repetição de indébito.
Veja-se a posição da jurisprudência quanto ao tema, pelo menos no Rio Grande do Sul:
“DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTOS. ICMS. AÇÃO DECLARATÓRIA. Sistema de bonificação em nota fiscal separada. Inviabilidade, no caso concreto. Embargos infringentes rejeitados, por maioria.” (Embargos Infringentes Nº 70041557380, Primeiro Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Rodrigues Bossle, Julgado em 08/04/2011)
“AGRAVO. MANDADO DE SEGURANÇA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ICMS. VENDAS COM BONIFICAÇÃO. BASE DE CÁLCULO. 1. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, na operação de venda de mercadorias com bonificação, as mercadorias doadas não integram a base de cálculo do ICMS. REsp repetitivo n.º 1.111.156/SP. 2. A mera referência em nota fiscal de que a mercadoria transportada se constitui em bonificação não é suficiente para provar que se trata de venda anterior com bonificação. É que a venda de mercadorias com bonificação se constitui em operação única, que compreende todas as mercadorias, as vendidas e as doadas. Indispensável a demonstração da operação na sua integralidade, ou seja, a venda com a bonificação. Matéria que depende de prova e não pode ser apreciada em sede de mandado de segurança. 3. Não cabe, em mandado de segurança, buscar efeitos patrimoniais pretéritos. Súmula 269 do STF. Recurso desprovido”. (Agravo Nº 70042171991, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 28/04/2011)
Ou seja, a nota-fiscal que tem validade jurídica para arrecadação tributária não tem para o contribuinte reaver valores pagos indevidamente. Parece gracejo mas não o é, pois, um documento fiscal hábil, com presunção de veracidade, sendo utilizado pelo contribuinte visando reaver tributos indevidamente recolhidos não tem “validade suficiente”, vem então a pergunta: “Qual é a prova da bonificação?”
Se viermos com o discurso falacioso da ST (substituição tributária), o autor terá que chamar todos os seus clientes numa audiência para que os mesmos confirmem que receberam as mercadorias a tal título?! É um absurdo jurídico.
Eles dizem: “Sim, os contribuintes tem o direito, o problema está na prova”! (SIC)!! Fantástico! Nota-se uma nova sistemática para garantir direitos positivos, haja vista tal regulamentação estar na lei complementar 87/96, mas conseguem esvaziá-los no mesmo ato! Fabuloso! Realmente brilhante! Só para constar, estou sendo sarcástico!
Isso lembra a história da menina que a “tia malvada” entrega um doce, deixa que a criança coloque na boca, sinta o gosto, e depois o retira dizendo que a mesma não poderia se deliciar haja vista a possibilidade de cáries dentárias. Triste.
Infelizmente os tributos já tem o caráter, como aduz o ilustre professor Ives Gandra Martins, de normas de rejeição social, mas quando o próprio Judiciário constrói barreiras para o exercício dos direitos dos contribuintes, chega-se a um ponto que a sociedade não terá mais o mínimo de segurança jurídica.
Dessa forma, concluindo o presente ensaio, se pode afirmar, sem sombra de dúvidas, que o contribuinte DEVE RECOLHER ICMS nas bonificações realizadas, haja vista a não aceitação das provas documentais, o que, além de ser um absurdo jurídico, tende a se firmar como posição dominante nessa esteira ideológica pró estatal que estamos vivenciando nos atuais tempos. É aquela história que Martins bem elucidou quando salientou:
“Quem domina, domina alguém. E quem domina precisa tirar deste alguém o seu sustento. O dominado trabalha para sustentar o dominante. O povo, através da história, sempre trabalhou para sustentar os governantes, cabendo aos governantes retirar da sociedade o que desejam e a sociedade produzir os recursos necessários para sustentá-los e a seus caprichos, guerras, desejos de grandeza. A felicidade do povo governado não está entre suas prioridades maiores.”[5]
Daí a César ao que é de César e daí mais um pouco! É o que sobra da interpretação do Direito Tributário na atualidade, infelizmente!
Informações Sobre o Autor
Dartagnan Limberger Costa
Estudante de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul
Santa Cruz do Sul, RS