Sumário: 1. Introdução. 2. Garantias constitucionais e processuais. 3. Algumas impressões sobre o processo administrativo disciplinar. 4. Considerações acerca do neoconstitucionalismo. 5. Considerações acerca do neoprocessualismo. 6. Aplicabilidade do princípio do juiz natural no processo administrativo disciplinar. 7. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Resumo: O presente artigo tem o escopo de desvelar alguns paradigmas de origem constitucional que afetam o direito processual quando se fala na aplicabilidade do princípio do juiz natural nos processos administrativos disciplinares. Procura demonstrar como deve proceder o Administrador Público frente ao princípio do juiz natural, desde o instante que compõe as comissões processuais até a instauração do processo administrativo disciplinar. Conclui-se que a determinação prévia dos servidores para compor a comissão permanente no processo administrativo disciplinar garante a imparcialidade, bem como a independência do juízo em relação às partes envolvidas.
Palavras-chave: Principio do Juiz Natural – Processo Constitucional – Processo Administrativo Disciplinar.
Abstract: This article has the scope to unveil some paradigms of constitutional origin affecting the procedural law when talking on the applicability of the principle of natural judge in disciplinary administrative proceedings. Seeks to demonstrate how to do the front of the Public Administrator principle of natural judge, from the moment that makes up the procedural committees until the disciplinary administrative proceeding. We conclude that the prior determination of the servers to compose the standing committee in administrative process ensures the impartiality and independence of judgment in relation to the parties involved.
Keywords: Principle of Natural Justice; Constitutional Process; Administrative Disciplinary Process.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo, na área de Direito Constitucional e Administrativo, visa desvelar alguns paradigmas de origem constitucional que afetam o Direito Processual como um todo, principalmente quando se fala na aplicabilidade do princípio do juiz natural nos processos administrativos disciplinares.
O nosso primeiro passo será o de definirmos um conceito de garantias constitucionais, para depois relacioná-lo com ênfase no processo administrativo disciplinar à luz do princípio do juiz natural previsto no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal de 1988, do qual repercutem várias situações – desde a instauração do processo administrativo até o seu julgamento final – para a Administração Pública e, consequentemente, para os servidores públicos que a ela está intimamente vinculada.
Deste modo, procurar-se-á demonstrar como deve proceder o administrador público frente ao princípio do juiz natural, desde o instante que compõe as comissões processuais, ou seja, antes e após a instauração de um processo administrativo disciplinar, as quais se não forem observadas poderão causar a nulidade do mesmo.
2. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E PROCESSUAIS
Muito se fala em garantias constitucionais entre os operadores do direito; pouca atenção se dá, no entanto, à sua parte instrumental, que as legitima e a coloca em prática.
Enquanto o direito constitucional se debruça sobre o estudo da constituição e, consequentemente, sobre as funções e os limites do poder estatal, o processo constitucional garante a realização desse direito material por meio de regras constitutivas de uma cadeia procedimental adequada ao exame e controle das questões jurídico-constitucionais[1].
Canotilho conceitua o Direito Constitucional Processual como “o conjunto de regras constitutivas de um procedimento juridicamente ordenado através do qual se fiscaliza jurisdicionalmente a conformidade constitucional de actos normativos”, ou seja, em alguns aspectos o processo constitucional é a concretização dos direitos material e formal, com certo grau de autonomia em relação à ordem jurídica processual geral[2].
Para José Afonso da Silva, o processo constitucional encontra-se mais próximo do controle de constitucionalidade, sendo instrumento jurisdicional de solução de conflitos derivados da aplicação das normas constitucionais e, portanto, um conjunto de atos destinados a ativar a função da jurisdição constitucional em defesa dos princípios constitucionais, especialmente daqueles que conferem direitos fundamentais contrariados pela autoridade pública[3].
O objeto do Direito Constitucional Processual não se restringe à averiguação da conformidade constitucional do procedimento, mas abrange também “as pretensões (…) que se deduzem perante o Tribunal Constitucional, solicitando um juízo de legitimidade constitucional relativamente a determinados actos normativos”[4].
Por outro lado o processo constitucional pode ser entendido como um conjunto de procedimentos que conduzem à concretização de determinada situação jurídica, cujo fundamento de validade se encontra na Constituição. Por esse ângulo, o processo constitucional se inicia com a necessidade de determinado direito fundamental ser exercido pelo indivíduo e se concretiza com seu julgamento por uma corte constitucional[5].
Ainda de acordo com Gontijo[6], em que pese tratar-se de um tema bastante polêmico na doutrina, o Direito Constitucional Processual tem sua origem vinculada às funções de poder, podendo caminhar para: (a) debates de um projeto de lei cuja aprovação, sanção presidencial e promulgação podem ser questionadas no âmbito jurisdicional; (b) a possibilidade de requisição de direito fundamental em um processo administrativo que pode ser levado ao Poder Judiciário ou, ainda, para (c) a requisição direta ao Poder Judiciário quando o direito fundamental, cujo conteúdo essencial se encontre em norma de eficácia plena ou contida, possa ser concedido pela prestação jurisdicional mediante a interpretação de tais preceitos, de modo que o devido processo constitucional torna-se uma garantia contra decisões inconstitucionais mediante a previsão de determinados procedimentos constitucionais, os quais, a priori, cumprem uma exigência fundamental do princípio do Estado Constitucional de Direito.
Dessa forma, a constituição é o ponto de partida para a interpretação e a argumentação jurídica, assumindo um caráter fundamental na construção do neoprocessualismo. A partir do momento em que se contemplaram amplos direitos e garantias, tornam-se constitucionais os mais importantes fundamentos dos direitos material e processual, criando a denominada constitucionalização do direito infraconstitucional. Deste modo, alterou-se, radicalmente, o modo de construção (exegese) da norma jurídica.
As garantias constitucionais, em um conceito amplo, podem ser postas como os pressupostos e bases do exercício e tutela dos direitos fundamentais, ao mesmo passo que rege, com proteção adequada, nos limites da constituição, o funcionamento de todas instituições existentes no Estados[7]. Ou seja, servem como pressupostos de validade dos atos estatais, tendo como o seu objeto a proteção dos direitos individuais e estruturas do Estado.
Com esse conceito, é interessante trazer para análise a penetração do disposto na Carta Magna no conjunto normativo estudado por meio do corte didático que abrange o Direito Processual. Ou seja, como as garantias constitucionais se introduzem no processo administrativo e seus procedimentos, esses no sentido de instrumentos públicos para apurar condutas de realização da vontade do cidadão, do Estado e da Justiça. Observando que o processo é uma das formas de concretização da justiça, todos os atos estatais (judiciais e administrativos) deverão estar sintonizados com as garantias constitucionais positivadas. Assim a análise da Constituição brasileira em vigor aponta vários dispositivos a caracterizar a tutela constitucional da ação e o processo[8]. E aqui o termo processo não se resume somente ao judicial, mas também ao administrativo.
3. ALGUMAS IMPRESSÕES SOBRE O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR
A Administração Pública precisa registrar seus atos, controlar seus servidores e decidir sobre qualquer controvérsia que surja, para tanto, é necessária a utilização do processo administrativo para consubstanciar cada um desses fatos. O processo administrativo também configura um mecanismo contra abusos e arbitrariedades da própria Administração e deve garantir o irrestrito direito a defesa.
O processo administrativo, em sentido amplo, é um instituto próprio e essencial ao estado democrático de direito. A sua aplicabilidade deve sempre decorrer da norma constitucional, que prevê os meios e princípios com as quais devem estar respaldadas todas as suas etapas.
No âmbito da Administração Pública processo adequado é aquele que se coaduna com os direitos fundamentais e torna evidente o viés democrático que deve respaldá-la, provocando um equilíbrio na relação com seus administrados. Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma[9]:
“O processo administrativo afigura-se, pois, num instrumento legitimador da atividade administrativa que, ao mesmo tempo, materializa a participação democrática na gestão da coisa pública e permite a obtenção de uma atuação administrativa mais clarividente e um melhor conteúdo das decisões administrativas. De igual modo, traduz-se em garantia dos cidadãos administrados, no resguardo de seus direitos”.
A definição legal estabelecida pela Lei do Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Federais – Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, em seu Capítulo III, que trata do Processo Disciplinar no art. 148 estabelece que o processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.
Ademais, na legislação infraconstitucional, a Lei n° 9.784 de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal estabeleceu em seu art. 2° que: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.
Dentre os princípios elencados, o devido processo legal representa a base legal para a aplicação de todos os demais princípios, qualquer que seja o ramo do direito processual, inclusive no âmbito do direito material ou administrativo. Segundo Romeu Felipe Filho Bacellar,[10] “a inobservância do due proces of law (processo adequado ao caso) e o cerceamento do direito de defesa geram – pela extrema gravidade de que se reveste esse procedimento ilícito – a nulidade do ato jurídico”.
No tocante ao processo administrativo disciplinar, o artigo 41, § 1.º inciso II da Carta Magna, equipara o processo administrativo ao processo judicial, aplicando ao mesmo as mesmas exigências do processo judicial, in verbis:
“Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.
§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo:
I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado;
II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa”; (grifo nosso)
Segundo Bacellar a aplicação de qualquer penalidade a servidor público, efetivo ou não, deve ser antecedida de processo administrativo disciplinar, asseguradas, além do devido processo legal, as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Sendo assim, diante das disposições legais, o processo administrativo disciplinar deve representar a garantia para a sociedade de que a competência disciplinar será exercida de modo responsável e consistente.
4. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO NEOCONSTITUCIONALISMO
O processo histórico iniciado na Europa pós 2ª Guerra Mundial se deu no Brasil com a Constituição de 1988. A expressão “neo” (novo) chama a atenção do operador para mudanças paradigmáticas, pois o Direito não pode ficar engessado aos métodos arcaicos, engendrados pelo pensamento iluminista do século XVIII[11].
Nesta esteira a Assembleia Nacional Constituinte de 1988 promulgou uma nova Constituição carregada de direitos fundamentais de diversas dimensões (direitos individuais, políticos, sociais e difusos) e os conferiu aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º) e protegeu diante do próprio poder de reforma (art. 60, § 4º, IV).
Além disso, fortaleceu o Judiciário, consagrando a inafastabilidade da tutela judicial (art. 5º, XXXV), fortaleceu a independência da instituição, bem como a do Ministério Público, ampliou e robusteceu os mecanismos de constitucionalidade.
Para Luís Barroso[12], o Direito Constitucional, nas últimas décadas, na Europa e no Brasil, percorreu três marcos fundamentais, quais sejam: a) marco histórico; b) marco filosófico; e c) marco teórico. Estes marcos, para o mesmo autor, uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX, foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à atuação dos Poderes Públicos.
Tal mudança de paradigma, ainda segundo Barroso, decorrente de “superação do positivismo”, implicou no reconhecimento de força normativa à constituição, na expansão da jurisdição constitucional e no desenvolvimento da interpretação constitucional.
Diante dessas mudanças, atualmente passou a ser premissa do estudo da constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições.
Nesse sentido, alguns aspectos da constitucionalização do direito mudou as relações entre as mais variadas áreas jurídicas. Com o Direito Administrativo não foi diferente. Marcas fundamentais identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional: a) existência de uma vasta quantidade de normas constitucionais voltadas para a disciplina da Administração Pública; b) a sequência das transformações sofridas pelo Estado brasileiro nos últimos anos; c) a influência dos princípios constitucionais sobre as categorias do direito administrativo. Dessa forma, todas estas circunstâncias se somam para a configuração do modelo atual.
Por fim, Luís Barroso diz que mais decisivo que tudo isso foi a incidência no seu domínio dos princípios constitucionais. Não menos importante, a partir da centralidade da dignidade humana e da preservação dos direitos fundamentais, alterou-se a qualidade das relações entre a Administração e administrado, com a superação ou reformulação de paradigmas tradicionais. Dentre eles é possível destacar: a) a redefinição da ideia de supremacia de interesse público sobre o privado; b) a vinculação do administrador à constituição, e não apenas à lei ordinária; e c) a possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo.
5. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO NEOPROCESSUALISMO
O neoprocessualismo teria, como características básicas[13]: a) inserção do direito processual na perspectiva constitucional; b) aplicação dos princípios constitucionais processuais independentemente da existência de previsão legal; c) utilização da reserva de consistência, e não simplesmente a reserva do possível, como dois marcos limitativos para a atuação jurisdicional e também para justificar eventual escolha do exegeta; d) fundamentação analítica (e não meramente sintética); e) democratização do processo (preocupação com as formas de intervenção popular); f) visão publicista do processo; g) implementação concreta dos princípios da colaboração e da cooperação; h) aumento dos poderes do juiz no curso do processo.
Dessa forma, a conformação da legislação processual ao texto constitucional não deve ficar apenas no plano teórico, exigindo do operador novas práticas, para que seja possível resistir a toda a forma de retrocessos, para a concretização da consciência constitucional e a formação de uma silenciosa cultura democrática de proteção dos direitos e garantias fundamentais.
Nessa linha, sobressai o neoprocessualismo, termo polissêmico, como interessante função didática de remeter imediatamente ao neoconstitucionalismo.
Sendo a tutela jurisdicional um direito fundamental (art. 5°, XXXV da CF/88), devendo ser prestado de modo efetivo, célere e adequado (art. 5°, LXXVIII da CF/88), há uma vinculação do legislador, do administrador e do juiz, pois os direitos fundamentais possuem uma dimensão objetiva, constituindo um conjunto de valores básicos e diretivos da ação positiva do Estado[14]. Como cediço, os direitos fundamentais geram influência sobre todo o ordenamento, servindo de norte para a ação de todos os poderes constituídos.
Somente a partir do neoprocessualismo o contraditório passa a ser visto, simultaneamente, como regra processual a ser observada invariavelmente em todas as rotas de processo, inclusive o processo administrativo disciplinar, objeto do nosso estudo, e, também como elemento indispensável à obtenção da igualdade concreta entre os litigantes, o julgador e todos os sujeitos intervenientes do processo, numa relação permanente, franca e perene de inter-relação.
Sendo assim não é possível, destarte, que o processo administrativo disciplinar, instrumento de efetivação prática dos direitos fundamentais e, notadamente, principal veículo de demonstração do respeito de determinado sistema aos direitos fundamentais, seja estudado sem o apoio das valiosas lições do neoprocessualismo e do neoconstitucionalismo.
6. APLICABILIDADE DO PRINCIPIO DO JUIZ NATURAL NO PROCESSO ADMISTRATIVO DISCIPLINAR
Historicamente, o princípio do juiz natural desenvolveu-se da experiência inglesa, desde a Carta Magna de 1215, a qual preconizava que "nenhum homem livre pode ser preso ou encarcerado, despojado de seus bens, proscrito ou desterrado, de qualquer forma liquidado, a não ser por seus pares segundo a lei da terra" até a Petition of Rights de 1628 e a Constituição dos Estados Unidos da América de 1776.
Sobre o tema Bacellar Filho[15] assevera que: "A garantia do juiz competente constitui-se, nesta primeira fase, sinônimo de liberdade civil, para mais tarde ser compreendida como garantia processual". Tratando-se, atualmente, de um princípio/garantia consagrado na legislação, que veda constitucionalmente através do art. 5º, incisos XXXVII e LIII a criação de tribunais ou juízes de exceção e o processamento ou a prolatação de sentença por quem não tem competência, primando pela imparcialidade e pela pré–constituição do julgador.
Com efeito, denota-se a grande importância que este princípio representa na esfera jurídica, entendendo-se assim, a preocupação dispensada pelos legisladores ao inserirem na constituição garantias que representem a imparcialidade, a igualdade, a objetividade do julgamento, o limite do poder estatal, e, por conseguinte o direito de cada cidadão ser julgado coberto pelo manto da justiça, procedendo como um princípio – garantia, o qual deve permear em todos os processos.
No que concerne à imparcialidade, esta constitui pressuposto necessário para atingirmos a objetividade do julgamento. Pode-se afirmar que a aplicação deste requisito, nos processos, constitui garantia para as partes envolvidas, evitando-se a participação de juízes parciais, acidentais e interessados em resultados, assegurando decisões neutras, justas e independentes, impedindo o julgamento antes da decisão.
Em relação à competência é necessário analisar o significado das expressões "juízo" ou "tribunal" de exceção (art. 5º, XXXVII da CF), "processado" e "sentenciado" pela "autoridade competente" (art. 5º, LIII da CF), conforme assinala Bacellar Filho[16].
À primeira vista, poder-se-ia interpretar restritivamente o princípio a partir da literalidade de seu título – juiz natural. Assim ter-se-ia que o princípio alcança em seu aspecto subjetivo (requisito da imparcialidade) somente o juiz da causa e no aspecto objetivo (predeterminação legal e racional da competência), os juízes e tribunais judiciários.
Na síntese precisa do doutrinador, reflete-se a importância e a necessidade de aprofundar o conhecimento em relação ao nomem iuris do princípio, pois este não corresponde aos termos constantes no art. 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição. Assim, levando-se em consideração as expressões acima referenciadas, é imperioso expor o pensamento de alguns doutrinadores:
Amorim e Clares[17] expõem que a autoridade competente é "autoridade que, por força de determinação legal, ou por delegação de competência tem capacidade funcional para praticar atos inerentes ao seu cargo, no âmbito e destro da abrangência de tal competência".
Theodoro Júnior[18] assenta que "o juiz – detentor do poder jurisdicional – para consecução de suas tarefas necessita da colaboração de órgãos auxiliares, que, em seu conjunto e sob a direção do magistrado, formam o juízo".
Desta forma, levando-se em consideração o entendimento doutrinário, percebe-se que o princípio do juiz natural, que constitui uma garantia fundamental, vai além da função jurisdicional, estendendo a sua aplicabilidade, inclusive, aos processos realizados pela Administração Pública – princípio do administrador competente.
Nos processos realizados pela Administração Pública, denominados de processos administrativos, ou mais especificamente nos processos administrativos disciplinares, foco de estudo, que visam preservar a ordem no serviço público e garantir aos servidores públicos um instrumento equânime, o princípio tem como finalidade primordial garantir as partes envolvidas a imparcialidade e a independência do juízo no processamento do feito.
Importante destacar, que o princípio enfatizado abrange todas as pessoas relacionadas ao processo, atingindo deste modo os responsáveis pela acusação, condução/instrução e decisão, sendo que a não observância deste princípio, poderá causar a nulidade de todo o processo, pois, a execução deste por agentes incompetentes violará as garantias asseguradas ao acusado, através dos princípios da ampla defesa e do contraditório, do devido processo legal, da legalidade dentre outros.
Neste sentido, a realização do processo administrativo garante aos administrados – sejam eles particulares e/ou servidores – a proteção de seus direitos, podendo eles serem ouvidos, julgados com paridade e imparcialidade através de um processo preordenado, aproximando a Administração do cidadão e atribuindo a ela a concretização da justiça através dos princípios constitucionais.
Um processo administrativo disciplinar eficiente depende diretamente da escolha prévia dos membros que irão compor a comissão processante. Assim, deverão ser indicados servidores responsáveis e conscientes da importante função que irão desempenhar e da verdadeira finalidade desse instituto. Para alcançar o seu desiderato de forma imparcial, a comissão também deverá ser composta por servidores estáveis, buscando reduzir influências externas que possam afetar o resultado dos seus trabalhos.
Diante do que foi exposto, não raro podemos perguntar: Existe “juiz natural” no direito administrativo? É controversa a origem das primeiras ideias, mas podemos identificar uma noção bem trabalhada sobre juiz natural no iluminismo ou da experiência inglesa, conforme relatado acima.
Um dos sentidos mais aclamado quando se fala em juiz natural é, pois, escapar das comissões arbitrárias e de conveniências pessoais. Então, entendeu-se que uma lei prévia e indicativa, por critérios técnicos, daria mais imparcialidade ao julgador.
Pois bem, a CF/88 exigiu o preenchimento de requisitos, como a exigência de passar em concurso público de provas e títulos, para ser magistrado, ou, no caso dos tribunais, a nomeação pelo Chefe do Poder Executivo, depois de aprovado a escolha pelo Poder Legislativo (Senado Federal, no âmbito da União). Forma-se, assim, juiz natural.
Essa tese, comungada por muitos, diferencia juiz natural e juiz competente.
No Brasil, o juiz natural é matéria essencialmente constitucional (93, I, 94, 101, parágrafo único, 104, parágrafo único, 107, etc), enquanto a competência pode advir de regras constitucionais (justiça federal), processuais e de organização judiciária (especialização de varas).
Quem advoga o juiz natural no direito administrativo, faze-lo, sobretudo, com vista ao direito disciplinar.
Constitucionalmente, há garantia de juiz natural administrativo?. Não há como inferir que a garantia do contraditório, da ampla defesa e da razoável duração do processo, conclamem o chamado “juiz natural” no direito administrativo.
Defende-se que o inciso LIII do art. 5º da CF (“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”) faria menção ao suposto “juiz natural”, não somente no plano judiciário, mas também administrativo.
Quem é contra, entre outros argumentos, defende que sentença é reserva de magistrados. Quem é a favor do juiz, entre outros pontos, sustenta que o termo “sentença” não fora empregado de forma restrita e que o legislador utilizara o termo autoridade (ao invés de juiz) para compreender também a administração.
De mais a mais, o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais estabelece duas esferas de competências, podendo chegar a três: uma que designa a comissão processante e que normalmente será a autoridade julgadora; outra, constituídas por três servidores estáveis, designados, responsáveis pela instrução e relatório (que com a defesa forma o inquérito administrativo).
A Lei n. 8112/90 não previu a composição de uma comissão permanente a conduzir os processos disciplinares. Aliás, na instauração do processo disciplinar é constituída a comissão processante (art. 151, I), o que sugere que a comissão processante é constituída depois do acontecimento do fato tido por infração funcional.
A propósito, o art. 143 obriga a autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público a promover a sua apuração imediatamente.
Com essa observação, o Ministro Dias Toffoli decidiu e aceitou a designação de comissão disciplinar posteriormente ao fato[19]:
“ A designação de comissão disciplinar posteriormente ao fato, por si só, não configura violação do princípio do juiz natural, pois à autoridade se impõe a apuração somente a partir da ciência de irregularidade, conforme o art. 143 da Lei nº 8.112/90. (…)”
De forma diferente o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, afirmando a "nulidade do procedimento administrativo disciplinar em face de: designação dos membros da comissão por autoridade incompetente[20]."
No mesmo sentido o Ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça, a respeito, já tinha decidido:
[…] “o processo administrativo disciplinar a ser instaurado […] deverá ser promovido por Comissão Permanente de Disciplina […] a validade do processo administrativo disciplinar instaurado está condicionada à promoção por Comissão Permanente de Disciplinar, devidamente instituída, em estrita observância aos princípios constitucionais da legalidade e do juiz natural”[21].
Certo é que o processo disciplinar é um instrumento apuratório da infração praticada no exercício das atribuições funcionais ou que com ela tenha tido relação. Não há processo para apurar fato futuro.
É de ressaltar que o Estatuto do Servidor garantiu a observância dos princípios do contraditório, ampla defesa, utilização dos meios e recursos admitidos em direito (art. 153) sem mencionar “juiz natural” ou “comissão natural”.
Em que pese essa omissão, o princípio do juiz natural aplica-se indistintamente ao processo civil, ao penal e ao administrativo. A cláusula constitucional brasileira, “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (artigo 5º. LIII, CF) não distingue o tipo de processo que é abrangido pela garantia. Na seara administrativa, o princípio do juiz natural, decorrente do devido processo legal, se espelha no princípio do administrador competente.
Ademais, o artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso LIII, menciona que ninguém será “processado”, sem especificar o tipo de processo. Também fala genericamente de “autoridade competente”, não de juiz. De modo que essa dimensão positiva dá abrigo direto e imediato à incidência do princípio do “juiz natural” ou “comissão natural” aos processos administrativos.
De toda sorte, a defesa do chamado “juiz natural no direito administrativo” merece consideração, uma vez que querem prevenir a administração de “manipulações indesejáveis”, “jogos retóricos” e “construções indevidas”. No final das contas, a busca é pela isonomia e imparcialidade.
Dessa forma e, dando continuidade à discussão, a administração pode, observando o princípio da legalidade fazer algumas alterações e responder alguns questionamentos, observando os seguintes passos: (i) é necessário que se faça uma norma para criar o juiz natural administrativo; (ii) como seriam indicados os integrantes da comissão e qual diferença entre designar antes ou depois do fato? (iii) quais os critérios para a indicação e se poderiam ser excepcionados por suspeição ou impedimento? (iv) a comissão processante é constituída para instruir e relatar o processo administrativo, não cabendo a ela o julgamento, função que estará a cargo da autoridade que a lei indicar, o que no caso dos servidores públicos federais dependerá da pena a ser imposta. Se é assim, há autoridade julgadora, prevista em lei e, por último; (v) a complexidade de um fato poderá ensejar uma comissão de integrantes com perfil técnico diferente (erro de engenharia), jurídico (direito controvertido), social (costumes de certa localidade), econômica (diferenças contábeis) ou territorial (designar uma comissão de Brasília ou do Acre para apurar um fato envolvendo índio em Brasiléia/AC).
Do exposto, concluo que a constituição e as normas de regência gerais são ricas em conceitos jurídicos indeterminados que não permite afirmar indene de dúvidas a existência do princípio do “juiz natural administrativo”, mas, por outro lado, há sim interesse público de apurar as irregularidades e punir os infratores e esse empenho não é incompatível com a observância dos direitos e garantias individuais. Aliás, o contraditório, a ampla defesa e o tempo razoável no procedimento administrativo ganharam status constitucional e possibilitam prevenir desvios e abusos da comissão processante. Além disso, a necessidade de motivação do julgamento pela autoridade e a oportunidade de recorrer de sua decisão são medidas que orientam para a observação dos princípios administrativos. Por fim, o inconformado pode se socorrer no Poder Judiciário.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta forma, levando-se em consideração a doutrina e o Judiciário, não são pacíficos. Percebe-se que o princípio do juiz natural, que constitui uma garantia fundamental, vai além da função jurisdicional, estendendo a sua aplicabilidade, inclusive, aos processos realizados pela Administração Pública – princípio do administrador competente.
Sabemos que nos processos realizados pela Administração Pública, denominados de processos administrativos, ou mais especificamente nos processos administrativos disciplinares, que visam preservar a ordem no serviço público e garantir aos servidores públicos um instrumento equânime, o princípio tem como finalidade primordial garantir às partes envolvidas a imparcialidade e a independência do juízo no processamento do feito.
Importante destacar que o princípio enfatizado abrange todas as pessoas relacionadas ao processo, atingindo deste modo os responsáveis pela acusação, condução/instrução e decisão, sendo que a não observância deste princípio, poderá causar a nulidade de todo o processo, pois, a execução deste por agentes incompetentes violará as garantias asseguradas ao acusado, através dos princípios da ampla defesa e do contraditório, do devido processo legal, da legalidade, dentre outros.
Neste sentido, a realização do processo administrativo garante aos administrados – sejam eles particulares e/ou servidores – a proteção de seus direitos, podendo eles serem ouvidos, julgados com paridade e imparcialidade através de um processo preordenado, aproximando a Administração do cidadão e atribuindo a ela a concretização da justiça através dos princípios constitucionais.
Assim, a imparcialidade constitui um requisito subjetivo dos agentes competentes envolvidos, que não terão interesse na causa – parcial, nem serão designados para apenas um processo – acidental. Além disso, ela vigorará garantindo: autonomia entre as pessoas responsáveis, que não ficarão adstritas à obediência hierárquica; e ainda, apreciação do processo de forma cristalina, impessoal, independente e objetiva para que racionalmente se alcance uma decisão justa
Por outro lado sabe-se que existem várias leis disciplinadoras de processo administrativo disciplinar, distribuídas entre os diversos entes públicos, e que estas não asseguram, na maioria das vezes, a garantia certificada, aos servidores públicos acusados, através do princípio do juiz natural. Tem-se conhecimento também, que estas falhas e omissões ocorridas pela inobservância dos preceitos constitucionais, podem ser sanadas por meio da busca integradora, com oferecimento de críticas produtivas, que noticiam e discutem os pontos que possam causar ou que atualmente estão provocando erros e dúvidas.
Deste modo, entendemos que a garantia veiculada pelo princípio do juiz natural deve ser observada e respeitada pelos agentes públicos responsáveis, seja por meio da interpretação ou revisão legal, desde a instauração até o julgamento do processo administrativo disciplinar, para que as pretensões e os desejos corporificados de um Estado Democrático de Direito através da Constituição Federal de 1988, não fiquem restritos apenas ao papel, mas que se torne realidade, promovendo através do direito, da ética, da moral, da imparcialidade a realização de um processo justo tão almejado por todos.
Por fim vislumbramos que a determinação prévia dos servidores que poderão compor a comissão permanente de processo administrativo garante a imparcialidade do processamento do feito, bem como a independência do juízo em relação às partes envolvidas, para se alcançar um julgamento objetivo e sem qualquer prejulgamento.
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Notas:
Informações Sobre o Autor
Luiz Alcione Gonçalves
Mestrando em Direito Público pela UFBA – Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público pela UNIFCS – Universidade Salvador. Graduado em Direito pela UCSAL – Universidade Católica do Salvador.