O lar que não chegou


Recebida com euforia, a chamada Lei da Adoção, que busca reduzir o tempo de crianças e adolescentes institucionalizados, está cheia de propósitos, mas poucos são os avanços e quase nulas as chances de se esvaziarem os abrigos onde se encontram depositados 80 mil seres humanos à espera de um lar. 


O projeto de lei, que aguarda sanção presidencial, tem sete artigos. O segundo introduz 227 alterações no ECA. O quarto modifica acanhadamente o Código Civil e o artigo quinto acrescenta dois parágrafos à lei que regula a investigação oficiosa da paternidade (L 8.560/92). O primeiro dispositivo confessa que a intervenção do Estado é prioritariamente voltada à orientação, apoio, promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer. Somente em caso de absoluta impossibilidade, reconhecida por decisão judicial funda mentada, serão colocadas em família substituta, adoção, tutela ou guarda. 


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Ninguém questiona que o ideal é crianças e adolescentes crescerem junto a quem lhes trouxe ao mundo. Mas há uma realidade que precisa ser arrostada sem medo. Quando a convivência com a família natural se revela impossível ou é desaconselhável, melhor atende ao interesse de quem a família não deseja ou não pode ter consigo, ser entregues aos cuidados de quem sonha reconhecê-los como filhos. A celeridade deste processo é o que garante a convivência familiar, direito constitucionalmente preservado com absoluta prioridade (CF 227). 


Para esse fim – e infelizmente – não se presta a nova legislação, que nada mais fez do que burocratizar e emperrar o direito à adoção de quem teve a desdita de não ser acolhido no seio de sua família. Aliás, a lei traz um novo conceito, o de família extensa ou ampl iada (ECA 25, parágrafo único): é a que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Para preservar o convívio da criança dentro da sua família original, esta tem a preferência na adoção, devendo ser incluída em programa de orientação e auxílio (ECA 19, § 3º). 


Talvez o primeiro percalço esteja em impor à gestante ou à mãe que deseje entregar os filhos à adoção a necessidade de ser encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude (ECA 13, parágrafo único). O consentimento para a adoção precisa ser precedido de esclarecimento prestado por equipe interprofissional, em especial, sobre a irrevogabilidade da medida (ECA 166, § 2º). O consentimento precisa ser colhido em audiência pelo juiz, com a presença do Minsitério Público, e isso depois de esgotados os esforços para a manute nção do filho junto à família natural ou extensa (ECA 166, § 3º). Ainda assim, até a data da publicação da sentença de adoção, o consentimento é retratável (ECA 166, § 5º) e não pode ser prestado por escrito (ECA 166, § 4º) e nem antes do nascimento da criança (ECA 166, § 6º). 


Mas há outros entraves. Não é mais possível a dispensa do estágio de convivência, a não ser que o adotando esteja sob a tutela ou guarda legal do adotante (46, § 1º). Nem a guarda de fato autoriza a dispensa (ECA 46, § 2º), sendo que o estágio precisa ser acompanhado por equipe interprofissional, preferencialmente com apoio de técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, os quais deverão apresentar relatório minucioso (ECA 46, § 4º). 


Além disso, a habilitação à adoção transformou-se em um processo (ECA 197-A), inclusive com petição inicial que deve ser acompanhada de uma série de documentos, entre eles: comprovante de renda e de domicílio; atestado de sanidade física e mental; certidão de antecedentes criminais; e negativa de distribuição cível. O Minsitério Público pode requerer a designação de audiência para a ouvida dos postulantes e de testemunhas (ECA 197-B, II).


Com todas essas cautelas se afigura uma demasia condicionar a inscrição dos candidatos a um período de preparação psicossocial e jurídica (ECA 50, § 3º), mediante a frequência obrigatória a programa de preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos (ECA 197-C, § 1º). Aliás, a título de disposições transitórias, é imposta a todos os figurantes no cadastro, no prazo máximo de um ano, a obrigação de sujeitarem-se à preparação psicossocial e jurídica, sob pena de cassação da inscrição (6º). Pelo jeito, a parti r da entrada em vigor da nova lei, nenhuma adoção poderá ser deferida enquanto não se submeterem as pessoas já habilitadas ao indigitado procedimento preparatório. E, caso não seja disponibilizado dito programa pela justiça, no prazo legal, simplesmente todas as inscrições estarão automaticamente canceladas. 


Mas há uma exigência que se afigura particularmente perversa. Incentivar, de forma obrigatória, o contato dos candidatos com crianças e adolescentes que se encontram institucionalizadas e em condições de serem adotados (ECA 50, § 4º). Além de expô-los à visitação, pode gerar neles e em quem as quer adotar, falsas expectativas. Afinal, a visita é tão-só para candidatar-se à adoção, sendo que, depois da habilitação, terá que ser cadastrado em uma lista a ser obedecida quase que cegamente (ECA 197-E, § 1º). Aliás, uma das exceções à ordem de inscrição é no mínimo curiosa: quando o adotante detém a guarda legal de que m tem mais de três anos de idade (ECA 50, § 13, III). 


Bem, falando em habilitação, perdeu o legislador a bela chance de explicitamente admitir – como já vem fazendo a jurisprudência – a adoção homoparental. Nada, absolutamente nada, justifica a omissão. Para conceder a adoção conjunta, de modo pouco técnico, fala a lei em “casados civilmente” (ECA 42, § 2º). Ora, quem não é legalmente casado, casado não é! Também é confrontado o preceito constitucional ao ser exigida a comprovação documental da união estável (ECA 197-A, III). É instituto que não requerer prova escrita. Trata-se de situação fática que se caracteriza pela convivência entre pessoas que têm o desejo de, entre si, constituir família. É o que basta. De qualquer modo, apesar da aparente limitação, tais dispositivos não vão impedir que casais homoafetivos continuem constituindo família com filhos por meio da adoção. 


 Diante de todos esses tropeços, de nada, ou de muito pouco adianta impor aos dirigentes das entidades que desenvolvem programas de acolhimento familiar ou institucional que, a cada seis meses, encaminhem a juízo relatório (ECA 92, §2º), elaborado por equipe interprofissional ou interdisciplinar, para a reavaliação judicial das crianças e adolescentes em programas de acolhimento (ECA 19, § 1º). Também sem chance de se tornar efetiva a limitação da permanência institucional em dois anos (ECA 19, § 2º). Às claras que não haverá como o juiz fundamentar que atende ao melhor interesse da criança a necessidade de permanecer institucionalizada por prazo superior. A justificativa só será uma: não há onde colocá-las. 


Do mesmo modo, de nenhuma eficácia garantir a tramitação prioritária dos processos, sob pena de responsabilidade (ECA 152, parágrafo único), mas não prever qualquer sanção outra. Não tem qualquer efeito prático impor a conclusão das ações de suspensão e perda do poder familiar no prazo máximo de 120 dias (ECA 163). Também de nada adianta assegurar prioridade absoluta no julgamento dos recursos, ocorrer no prazo de 60 dias (ECA 199-D). Para isso é dispensada a revisão (ECA 199-C) e admitido parecer oral do Minsitério Público (ECA 199-D, parágrafo único). 


A adoção internacional, de fato, carecia de regulamentação. Mas foi tão exaustivamente disciplinada, impondo-se tantos entraves e exigências que, dificilmente, conseguirá alguém obtê-la. Até porque, o laudo de habilitação tem validade de, no máximo, um ano (ECA 52, VII). E, como só se dará a adoção internacional depois de esgotadas todas as possibilidades de colocação em família substituta brasileira, após consulta aos cadastros nacionais (ECA 51, II), havendo a preferência de brasileiros residentes no exte rior (ECA 51, § 2º), parece que a intenção foi de vetá-la. Os labirintos que foram impostos transformaram-se em barreira intransponível para que desafortunados brasileiros tenham a chance de encontrarem um futuro melhor fora do país. 


Claro que a lei tem méritos. Assegurar ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica e acesso ao processo de adoção (ECA 48), é um deles. Aliás, tal já vinha sendo assegurado judicialmente. A manutenção de cadastros estaduais e nacional, tanto de adotantes, como de crianças aptas à adoção (ECA 50, 5º), – o que já havia sido determinada pelo Conselho Nacional da Justiça (Res. 54/08) – é outro mecanismo que visa agilizar a adoção. Inclusive a inscrição nos cadastros deve ocorrer em 48 horas (50, § 8º), cabendo ao Ministério Público fiscalizá-los (ECA 50, § 12). Também é salutar assegurar preferência ao acolhimento familiar do que ao institucional (ECA 34, § 1º), bem como garantir ao s pais o direito de visitas e a mantença do dever de prestar alimentos aos filhos quando colocados sob a guarda de terceiros (ECA 33, § 4º). 


O fato é que a adoção transformou-se em medida excepcional, a qual deve se recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança e do adolescente na família natural ou extensa (ECA 39, § 1º). Assim, a chamada lei da adoção não consegue alcançar os seus propósitos. Em vez de agilizar a adoção, acaba por impor mais entraves para sua concessão, tanto que onze vezes faz referência à prioridade da família natural. 


Portanto, para milhares de crianças e adolescentes que não têm um lar, continuará sendo apenas um sonho o direito assegurado constitucionalmente à convivência familiar.



Informações Sobre o Autor

Maria Berenice Dias

Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM


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