1. Introdução.
A adoção do nome de família do marido (agnação) pela mulher se traduz em um costume a que a lei deu guarida, para exprimir a comunhão de vida entre os cônjuges, como reflexo do sistema patriarcal romano.
Derivado do latim nomem, que advém do verbo noscere ou gnoscere, nome significa a denominação ou a designação que deve ser dada a certa ou determinada pessoa ou coisa, para que possa ser reconhecida e individualizada[i].
Assim, nome civil é o meio de identificação e individualização que serve para a designação de uma pessoa, com o intuito de distingui-la dentre os demais indivíduos que convivem no mesmo grupo social. É, portanto, a referência do sujeito perante a sociedade.
Nota-se ainda que, o nome civil das pessoas naturais possui basicamente dois elementos constitutivos: prenome (nome próprio individual da pessoa) e o nome ou apelido de família, também chamado de sobrenome ou patronímico[ii] (nome que apresenta a posição familiar de um indivíduo).
O prenome é em regra imutável (art. 58 da Lei n. 5.015/73), salvo exceções previstas em lei. E o sobrenome, que serve para estabelecer a ascendência e descendência, informando de qual família determinada pessoa provém, é adquirido ipso iure com o simples nascimento e reconhecimento, podendo, entretanto, ser modificado ou alterado na decorrência de um ato jurídico, como o reconhecimento de paternidade ou maternidade, a adoção, o casamento, união estável ou por ato de interessados, mediante requerimento feito perante magistrado competente.[iii]
Os problemas com a utilização do sobrenome começam a surgir justamente na questão relacionada ao casamento e à união estável. Como fica no nome dos cônjuges e dos companheiros após a constituição e dissolução da família? Esta é a questão central deste trabalho de pesquisa e que tentaremos abordar a seguir.
2. Nome como direito da personalidade.
Ainda hoje na doutrina mais elevada, se discute a natureza jurídica do direito ao nome. Clóvis Bevilaqua, por exemplo, defendeu a tese de que o nome civil não constitui um bem jurídico, porque não é suscetível de apropriação, devendo ser compreendido apenas como uma designação da personalidade, como um complexo de direitos e não um direito.[iv]
Em que pese toda a discussão doutrinária, o novo Código Civil põe fim a esta questão colocando o direito ao nome no rol dos direitos da personalidade previsto no artigo 16 ao reconhecer:
Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.
Em assim sendo, considerando-se o nome como um direito da personalidade podemos aplicar-lhes os efeitos desses direitos peculiares do ser humano. Ou seja, é direito inato, intransmissível, imprescritível, inalienável, irrenunciável, perdurando, inclusive após a morte da pessoa.
Dentro deste aspecto, não se tem dúvida que o nome da pessoa tem natureza privada e também pública. Ou seja, verificamos a simultaneidade de um direito personalíssimo e portanto, privado e, um interesse social.
3. Nome no casamento.
No que tange ao casamento, o artigo 240, parágrafo único, do Código Civil de 1916 falava da faculdade da mulher de acrescentar, no momento da celebração do casamento, os apelidos ou o nome de família do marido. Verifica-se claramente da leitura deste artigo, que somente a mulher poderia receber o nome de família do marido, seguindo-se a idéia da família patriarcal que embasava a família na época do Código Civil antigo.
Discutiu-se na doutrina e na jurisprudência durante muito tempo se essa faculdade atribuída à mulher deveria ser estendida também ao homem por causa da aplicação do princípio da isonomia de direitos e deveres conjugais estabelecida pelo artigo 226 § 5º da Constituição Federal de 1988.[v]
Duas correntes doutrinárias chamaram atenção para a questão. A primeira defendeu a idéia de que não se pode igualar homem e mulher em todos os direitos e obrigações, posto que em algumas situações ambos devem ser considerados de forma diferente. Euclides de Oliveira[vi] salienta que o “conceito de igualdade, repisado com ênfase na Constituição, há de ser interpretado em consonância com as naturais diferenças existentes entre homem e mulher, sem que se possa levar ao extremo a idéia de tratamento jurídico uno, quando haja necessidade de acertamento individual das situações de cada qual, seja pessoalmente ou no concerto das relações familiares. Bem disse Rui Barbosa ‘tratar a iguais com desigualdade ou a desiguais com igualdade não é igualdade real, mas flagrante desigualdade. O que proíbe, com a regra da isonomia jurídica, é o tratamento diferente a pessoas que estejam em situação essencialmente igual’”.
A outra corrente doutrinária defende a tese de que a Constituição teria igualado todos os direitos e deveres entre homens e mulheres, não havendo a possibilidade de fazer distinção alguma entre eles.[vii] Este foi o entendimento de Pedro Sampaio[viii] ao considerar que a Constituição de 1988, quando igualou os direitos e deveres entre os cônjuges, ab-rogou o artigo de lei que tratava do assunto, por ser um privilégio atribuído à mulher em detrimento do homem. Para o mencionado autor, por respeito ao texto constitucional de 1988, correto seria atribuir ao homem o mesmo direito dado à mulher, ou seja, de utilizar o nome de família do outro cônjuge.
Utilizando-se desse último entendimento, o novo Código Civil brasileiro (Lei n. 10406/2002) estabeleceu que qualquer um dos cônjuges poderá acrescer a seu sobrenome o nome de família do outro (artigo 1565 § 1º). Portanto, atualmente tanto o homem quanto a mulher possuem o direito, expressamente regulamentado em lei, de acrescer o nome de família do outro cônjuge ao seu próprio nome. Esse foi sem dúvida nenhuma, um avanço na nossa legislação, que se posicionou segundo a doutrina e jurisprudência já defendida anteriormente.
Portanto, a legislação ordinária atual determina que a mulher ou o homem podem adquirir o sobrenome do outro no momento da celebração do casamento. A faculdade da escolha compete a ambos e em igualdade de condições.
Mas o problema é justamente a situação do nome de casamento no momento da dissolução da sociedade conjugal (separação judicial) e no caso da dissolução do vínculo conjugal (divórcio).
A situação é regulamentada nos artigos 1571 § 2º e artigo 1578 do novo Código Civil.
Art. 1571.
§ 2º Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial.
Podemos compreender da leitura do artigo mencionado que, mesmo após o divórcio, pode o cônjuge permanecer com o nome de casamento, a não ser que exista decisão judicial em contrário.
Art. 1578. O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito a usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar:
I. evidente prejuízo para a sua identificação;
II. manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos na união dissolvida;
III. dano grave e reconhecido na decisão judicial.
§ 1º O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome do outro.
§ 2º Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de casado.
Do mencionado artigo de lei, podemos retirar que a culpa pelo rompimento da sociedade conjugal acarreta a sanção da devolução do nome de casamento, exceto quando a pessoa se encaixar em um dos incisos I a III do mesmo artigo. Ou seja, a culpa na nossa legislação civil, ainda causa conseqüência e efeitos. Por outro lado, ao mesmo tempo que a lei determina esta sanção, indica que, por ser direito da personalidade, poderá a parte culpada afastar essa punição pela ruptura da sociedade conjugal provando uma das situações previstas em lei.
Podemos visualizar o cuidado do legislador a respeito do tema, quando determina que apenas perderá o direito a utilizar o nome de casamento quando: 1) houver culpa decretada em sentença judicial; 2) for expressamente requerido pelo inocente; 3) não ocorrer uma das exceções previstas em lei.
Percebe-se claramente a preocupação do legislador em não ferir o direito da personalidade. A situação hoje é inversa ao que acontecia no passado na Lei 6515/77 (lei do Divórcio) que determina a perda do direito ao nome da mulher, quando culpada ou quando deu início ao procedimento judicial da separação.
Dizemos, portanto, que a legislação atual tem como objetivo principal, dar a pessoas casadas a oportunidade de acrescer ao seu nome, o sobrenome do outro consorte, com o intuito de criar laços importantes de comunhão de vida, estabelecendo, contudo, que apesar do nome ser reconhecido como direito da personalidade pela nossa legislação, caberá exceção a regra da sua irrenunciabilidade quando houver previsão legal. (caso do artigo 1578 NCC)
A pergunta que fazemos é: Será que na realidade atual ainda nos interessa a regulamentação sobre a devolução ou não do nome após a separação judicial e divórcio? Se o nome faz parte dos direitos da personalidade, seria interessante a lei retirar a possibilidade da permanência do nome que já incorporou a personalidade de alguém, simplesmente por uma questão de culpa pelo rompimento da sociedade conjugal? Ou, por outro lado, nada mais justo do que devolver o nome de casamento após a dissolução da família, uma vez que já não mais existe uma família constituída?
Talvez o melhor seria não regulamentar pela culpa e sim pela necessidade ou não do ex-cônjuge em permanecer com o nome de casamento que já faça parte da sua individualização e identificação perante a sociedade.
4. Nome na União estável.
Com relação ao nome de família entre companheiros, não houve nenhuma disposição expressa na legislação civil mais moderna. A única legislação a disciplinar especificamente sobre o tema é a Lei 6015/73 (Lei de Registros Públicos) no seu artigo 57, ao tratar da relação de concubinato e do nome da mulher solteira, desquitada ou viúva que conviva com homem na mesmas condições e que tenha formação de entidade familiar com existência de impedimento de vínculo, com prazo mínimo de cinco anos ou existência de prole comum, demonstrando-se a necessidade do pleito.
Art. 57.[…]
§ 2º. A mulher solteira, desquitada ou viúva, que conviva com homem solteiro, casado ou viúvo, excepcionalmente e havendo motivo ponderável, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o patronímico do companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, de família, desde que haja impedimento para o casamento, decorrente do estado civil de qualquer das partes ou de ambas.
§ 3º. O Juiz competente somente processará o pedido se tiver expressa concordância do companheiro, e se da vida em comum houverem decorridos, no mínimo, 5 (cinco) anos ou existirem filhos da união.
§ 4º. O pedido de averbação só terá curso, quando desquitado o companheiro, se a ex-esposa houver sido condenada ou tiver renunciado ao uso dos apelidos do marido, ainda que dele receba pensão alimentícia.
Note-se que essa questão do nome no concubinato, de acordo com a Lei de Registros Públicos, está diretamente atrelada ao impedimento matrimonial; assim, a lei é cristalina quando diz que apenas as pessoas que possuem um impedimento matrimonial podem utilizá-la.
Nitidamente, essa disposição legal tinha razão de existência na impossibilidade de novas núpcias, pela indissolubilidade da sociedade conjugal e para a identificação da filiação extramatrimonial. Essa situação não mais vigora com a importância de tempos passados, posto que atualmente contamos com a possibilidade do divórcio e o reconhecimento de filhos tidos fora do casamento pode acontecer sem nenhuma restrição legal.
Portanto, da leitura do texto legal acima transcrito, verificamos que a lei impôs expressamente alguns requisitos para que, excepcionalmente e com demonstração de motivo ponderável, a companheira possa acrescer ao seu nome o patronímico do companheiro.
Mas será que esta situação se coaduna com a realidade atual? Poderíamos interpretar a legislação – que, apesar de ultrapassada, ainda está em vigor – com a mesma intensidade que seria aplicada em tempos passados? Ou, ainda, será que o art. 57 da Lei de Registros Públicos, neste aspecto, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988?
A questão é, nos parece, um pouco complexa, posto que a Lei de Registros Públicos determina questões pertinentes à possibilidade de utilização ou alteração de nome pessoal e de família e não é lacunosa quanto aos companheiros, apenas trata a questão de forma inadequada. E, nesse sentido, podemos ressaltar pelo menos dois pontos que geram muitas incertezas:
1) teria direito também o companheiro a adquirir o nome de família da companheira, de acordo com o princípio da igualdade entre homem e mulher?
2) Seria possível a aplicação dessa lei a todos os casos em que se possa reconhecer a união estável e não somente quando ainda impedida (vínculo conjugal, ou seja, separado de fato ou separado judicialmente)?
A primeira questão não nos parece muito complexa, uma vez que o princípio da igualdade deve ser aplicado como fundamento do próprio direito de família e não apenas casamento, portanto, somos favoráveis pela aplicação da regra tanto ao homem quanto à mulher. Portanto aqui fazemos uma crítica à nova legislação civil, ou seja, o legislador atual ao tratar do nome das pessoas casadas, deveria ter feito o mesmo com os companheiros.
A segunda questão, talvez seja mais difícil de chegar a uma solução única e pacífica. Se formos pela interpretação literal do artigo, poderíamos entender que só se enquadram na situação aquelas relações que se firmarem com um impedimento por vínculo, ou seja, pessoas separadas judicialmente e separadas de fato. Lembrando que a separação judicial veio a tomar o lugar do desquite, uma vez que o casamento passou a ser dissolúvel.
Entendemos, contudo, que o mais eficaz seria considerar a faculdade da utilização do sobrenome, não apenas para aqueles que possuem o impedimento por vínculo, uma vez que seria dar a oportunidade diferenciada entre o mesmo tipo de entidade familiar, situação que não mais se adequa à nossa realidade social, e sim dar a oportunidade a toda e qualquer relação reconhecida como família.
Mas, não podemos deixar de lembrar que a lei ainda em vigor sobre o nome dos companheiros não nos leva a esse entendimento quando analisada individualmente.
5. Conclusão.
Tomamos a posição de reconhecer que o sobrenome no caso do casamento e união estável, tem claramente o intuito de exteriorizar o sentimento de comunhão e objetivo familiar das pessoas ali envolvidas e que querem ser reconhecidas em um único núcleo. Além disso, lembramos que a aquisição do nome de família do outro consorte é hoje uma faculdade e não mais uma obrigação.
O ideal, sem dúvida nenhuma, seria uma nova regulamentação sobre o tema, colocando a questão dentro dos parâmetros atuais de interesse familiar e interesse social. Afinal não é o nome, por si só, que caracteriza a affectio ou o interesse de constituir família, mas a utilização do nome pode exteriorizar esse objetivo que se tornou tão importante para a caracterização de uma entidade familiar que não seja matrimonializada.
[i] De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, p. 244.
Informações Sobre o Autor
Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti
Mestre e Doutora em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, advogada em São Paulo, professora dos cursos de graduação e pós-graduação em direito das FMU