O novo conceito de sujeito de direito

O velho dogma da
completude do sistema jurídico codificado acaba por arremessar juridicidade
sobre diversos fatos e, ainda, excluindo uma realidade que insiste comparecer
diante do Direito desafiando seus conceitos e previsões.

A ascensão do sujeito
de direito trouxe a repersonalização do Direito Civil com ênfase ao princípio
da dignidade da pessoa humana. Na verdade, podemos mesmo cogitar numa
humanização de todo o direito privado em substituição a intensa patrimonialização
anteriormente experimentada.

Também há de se dar
uma releitura ao conceito de sujeito de direito posto que outrora vinha sendo
“patrimonializado” sendo ser com aptidão para os direitos das obrigações e para
os direitos reais.

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Sendo a propriedade
uma necessidade do homem, um mínimo de pertencimento, a projeção matéria de sua
personalidade jurídica, a sua esfera jurídica palpável. Nesse novo arranjamento
do direito civil moderno traduzido por ser direito patrimonial destinado a
partilhar o mundo entre seus diversos proprietários.

É óbvio que o ser da
pessoa depende do ter (grifo meu) e,
essa intensa “mercadorização” dos homens alcança então apropriação dos objetos
e de direitos (como o autoral, títulos de crédito, e, etc…) a permitir trocas
generalizadas.

Os mais deferentes
casais já cogitam em ter sua prole sob o que chamam “design babies” em tradução literal e brutalizada são os “bebês
desenhados’ onde suas características genéticas estão predeterminadas, podendo
inclusive prover deficiências físicas como, por exemplo, a surdez para não
destoar dos pais em futura convivência.

O fortalecimento do
capitalismo vem apoiado na desmaterialização da riqueza, onde se passa a
conhecer novas formas de bens de natureza incorpórea (como o fundo de comércio,
patentes das invenções, marcas, ações e outros títulos).

O próprio
desenvolvimento tecnológico empreende uma marcha frenética despontando novos
valores e novas riquezas cada vez mais efêmeras e instáveis.

A noção de
personalidade jurídica dos seres humanos que constitui bastião clássico do
Direito Privado corresponde à idéia de titularidade, ou seja, de ser titular de
direitos e obrigações de direito subjetivo como direito individual.

A pessoa como sujeito
de direito originou-se das correntes filosóficas que mais se propagaram com a
Revolução Francesa (berço verdadeiro do jusnaturalismo e do iluminismo) e que
gerou as três dimensões dos direitos fundamentais (a saber: liberdade,
igualdade e fraternidade).

E, daí o direito
objetivo passou a ser criação e reflexo das mais diversas manifestações da
personalidade humana. Seria o direito subjetivo inerente a própria natureza
humana e serviria como limite ético necessário para legitimar a atuação do
Estado.
Assim, a pessoa humana fora reduzida por ser simples elemento na relação
jurídica. Então, nascituro é sujeito de direito porém não é pessoa. Tem
efetivamente seus direitos resguardados, como uma pessoa em potencial (também
como a prole futura).

A questão que urge
saber é se embrião humano é sujeito de direito. Enquanto in vitro, não. Mas uma vez nidado no útero humano já se tornaria
nascituro e, conseqüentemente, um sujeito de direito.

Outro problema é
temporal-científico pois após quatorze dias o embrião passaria a desenvolver
sistema nervoso, e  a partir daí, não se
admite que seja o embrião tratado como mera coisa.

A manipulação de
embriões humanos e das células-tronco está permitida para fins terapêuticos de
pesquisa mas jamais por pura mercancia. A existência jurídica de pessoa é de
ser humano sendo composto de corpo e alma.

E a supervalorização
da racionalidade humana que veio a propiciar a apreensão jurídica do que é
externo à razão humana. E redundou na idéia de que o corpo do sujeito de
direito é coisa e, como tal, pode ser objeto de relações jurídicas.

Porém, os embriões “in vitro” distam do que seja persona concebida pela lei formal. Por
outro lado, representa vida e digna de ser protegida.  Há proteção legal aos nascidos com vida, aos
nascituros e, por fim, a prole eventual (como seres não concebidos) desta
forma, podemos assim por analogia tratar os embriões humanos.

Embriões concebidos
criogenizados e, mantidos em laboratório, não são pessoas naturais, embora
também possamos protegê-los a guisa do que já se faz com os nascituros.

Registre-se que é
odiosa a prática chamada de “design baby
onde os genitores projetam até mesmo deficiências físicas arquitetadas
meticulosamente e geneticamente pela vontade dos pais biológicos.

O filho não pode ser
uma mercadoria programada e pré-concebida pelos pais, exceto se for para
livrá-los de patologias e falhas genéticas lastimáveis e que possivelmente
possam comprometer uma vida saudável e digna.

Não há entre nós, a
proteção jurídica específica para o embrião. Apesar de ser uma pessoa
codificada ou ainda um sujeito virtual em oposição do sujeito real e concreto
que corresponde à pessoa humana.

A subjetividade
jurídica se traduz em ser titularidade de direitos que vai além dos bens
patrimoniais, como direitos à segurança, a um mínimo de dignidade para se
sobreviver em sociedade.

E o corpo é a
materialização formal da personalidade mas restringe-se essa titularidade do
sujeito de direito a fim de se evitar a comercialização espúria de sangue,
células, órgãos e tecidos humanos.

Tal restrição é mais
protetiva do que castradora. Pois embora o corpo pertença ao sujeito de
direito, sua perfeição estética e funcional pode ser torneada pois poderá
decidir se tatuar, colocar piercings
, fazer circuncisão, praticar esportes radicais e até violentos, bem como dispor
de seu corpo vivo como cobaia de experimentos e pesquisas científicas mediante
consentimento esclarecido.

E registra a revista
de domingo do jornal “O Globo” que já passa de 250 mil e não pára de aumentar o
número de brasileiros que se oferecem para testar novos medicamentos. Ainda
como titular de direitos sobre seu corpo poderá ceder gametas e material
biológico do seu corpo.

A Lei de
Biossegurança de 24/03/2005 em seu art. 5º permite francamente para fins de
terapia a utilização das células-tronco embrionárias obtidas de embriões
humanos in vitro ou excedentários.

Tal permissão ventila
ampliação da noção de titularidade das pessoas envolvidas indo além de suas
próprias vidas, como é o caso da fertilização post mortem. Mas seria a paternidade e a maternidade dados ou
referenciais apenas genéticos e biológicos? Tão-somente?

Nova parentalidade se
avulta até em razão do anonimato do doador de sêmen que pode ser descoberto
caso seja necessário, por exemplo, identificar certa propensão genética para
certas patologias ou falhas genéticas comprometedoras.

Há ou não vínculo
parental com embrião fertilizado in vitro?

Cabe ressaltar que
antes do advento da Lei de Biossegurança o Código Civil de 2002 (a Lei 10.406 que
entrou em vigor em 10/01/2003) instituiu disciplina aplicável aos embriões
excedentários caracterizando uma extensão do conteúdo da titularidade em
relação ao novo ser.

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Até pelo fato de a
qualquer tempo tais embriões serem transferidos para útero humano e vir
completar seu desenvolvimento, tornando-se plena e juridicamente pessoa ao
nascer com vida.

A estrutura formal da
relação jurídica coloca as pessoas no “cargo” de sujeito de direito (não porque
são reconhecidas a sua natureza humana e dignidade mas por lhes atribui
faculdades ou obrigações de agir, delimitando o exercício de poderes ou
exigindo o cumprimento de deveres).

O sistema jurídico
oferece apenas respostas patrimonializantes a respeito do significado do ser
humano e de sua dignidade. O que nos remete fatalmente a seguinte pergunta crucial:
– “Para que servem os embriões humanos?”.

São objetos de
reprodução humana, objeto de estudo e pesquisa? Ou servirão apenas para se
transformar em pessoas, perpetuando assim certas famílias ou ascendentes
genéticos?

Ratifique-se que o
embrião não é pessoa. E, não se compra, não se vende e nem se testa.

Cabendo outra
inquirição: – Por que proteger os embriões?

Somente a nova
racionalidade do Direito Civil contemporâneo, somente a lógica atualizante
poderá propor revisão das categorias e conceitos jurídicos. E, o sujeito de
direito que é o mais importante destes, poderá inserindo-se nas relações
jurídicas (na dinâmica do Direito) poderá continuar adquirindo direitos e
deveres.

Portanto, o conceito
de pessoa não é mais puramente operacional, pois se admite a personificação do
patrimônio. Logo, a personalidade não é apenas o sinônimo de sujeito de
direito. É valioso o esforço doutrinário no sentido de distinguir as noções de
personalidade, subjetividade e capacidade.

A personalidade é
valor característico da pessoa humana, é elemento axiológico prioritário em
nosso ordenamento jurídico.

Que veio a mitigar a
hermética esfera das relações privadas. E, veio a ser estendida até aos entes
despersonalizados. Portanto, como é um dos fundamentos da república brasileira
a dignidade da pessoa humana evidencia que a vida e a pessoa são valores
cardeais que recebem tutela privilegiada além de prioritária.

A liberdade e a
complexidade do conceito de pessoa vem moldar de maneira peculiar o complexo
único e indivisível, onde os caracteres humanos cingem-se ao valor absoluto da
pessoa humana. Enfim, norteia-se o Direito pelos prismas da solidariedade,
eticidade e operabilidade desenhando um novo conceito de sujeito de direito.
Mais amplo, mais igualitário e pleno aonde a diversidade e as diferenças sejam
elos a ungir ainda mais a humanidade.


Informações Sobre o Autor

Gisele Leite

Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.


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