”É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los; e todo legislador sábio deve antes procurar impedir o mal que repará-lo, pois uma boa legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência”. (Cesare Beccaria)
Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de drogas; 3. Aspectos gerais das toxicomanias; 4. A Constituição de 1988 e as drogas; 5. Posse ou porte de drogas para uso próprio; 5.1. Das penas; 5.2. Consumação e tentativa; 5.3. Lei penal no tempo; 5.4. Norma penal em branco; 5.5. Figuras equiparadas; 6. Infrações de menor potencial ofensivo; 7. Concurso entre posse de droga para consumo pessoal e tráfico de drogas; 8. Posse de drogas para consumo pessoal e prisão em flagrante; 8.1. Vedação da detenção do agente; 9. Transação penal; 10. Considerações finais; 11. Referências bibliográficas.
1- Introdução
Um dos objetivos principais da atual Lei 11.343/2006 é, sem dúvida, diferenciar o traficante do mero usuário. Com distanciamento entre ambos, atenua as condutas dos usuários e dependentes, e agrava a situação penal dos traficantes e dos agentes responsáveis pela disseminação de drogas, aumentando o mínimo da pena privativa de liberdade para os respectivos crimes.
Surge, assim, uma nova orientação, qual seja, não igualar mais o dependente com o delinqüente, àqueles que põem em risco o bom convívio social e, o que é mais grave, o mal que fazem tais substâncias à saúde física e mental no tecido social.
Passa ela a ser muito mais branda para o usuário, trazendo medidas educativas, tanto de tratamento, quanto de reinserção ao convívio social. Com isso, não mais possibilita a prisão do usuário ou dependente.
A lei traz discussões e polêmicas acerca do posicionamento do legislador, especialmente quanto ao entendimento em relação ao usuário e dependente. Alguns juristas se manifestam no sentido de que houve uma descriminalização penal, uma abolitio criminis, porém, sem a concomitante legalização.
Assim é a posição adotada por Luiz Flávio Gomes.[1] O jurista alega para tanto, a exegese do artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, onde se descreve que: considera-se crime a infração penal a que a lei comine com pena de reclusão ou de detenção.
Arremata, dizendo que se as penas cominadas para a posse de droga, consumo pessoal, são exclusivamente alternativas, não há que se falar em “crime” ou em “contravenção penal”. O artigo 28 da lei, conseqüentemente, contempla uma infração sui generis.
Outros juristas seguem o caminho da despenalização, trabalhando o artigo 32, combinado com o artigo 43, do Código Penal. Nesses dispositivos, temos os grupos de penas, dentre elas, a pena restritiva de direitos. E nesse diapasão, busca-se demonstrar que, dentre as medidas educativas apresentadas no artigo 28, está uma pena restritiva de direitos – a prestação de serviços à comunidade (inc. II).
Concomitantemente, a Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso XLVI, trata do princípio da individualização da pena, fornecendo um rol exemplificativo de penas a serem adotadas pelo legislador infraconstitucional.
Para Isaac Sabbá Guimarães, não houve a descriminalização das condutas relacionadas com o uso, mas sim, uma inclusão de um tertium genus de pena. Desta forma, manteve-se o crime, erigindo apenas um sistema punitivo sui generis.[2]
De qualquer sorte, o beneficiado é o usuário ou dependente de drogas que passa a ser tratado como um doente, como realmente o é, e não mais como um criminoso. Assim que, abolidas as penas de liberdade, busca-se, de logo, medidas educativas para os comportamentos de dependências ou toxicomanias.
O assunto continua sendo tratado e julgado por um juiz, que se inclinará e dará a medida correta, levando em conta, cada caso específico. Não haverá mais prisão, o usuário será atendido pela autoridade policial que lavrará o termo circunstanciado e lhe cumprirá o dever de comparecer ao Juizado Especial Criminal.
2- Conceito de drogas
A Lei nº. 11.343/2006 ao definir o que seja droga, no seu artigo 1º, parágrafo único, traz um conceito genérico, qual seja: “consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.
Por conseguinte, manteve-se a característica de norma penal em branco, nos moldes da legislação revogada. Destarte, não definem o que deve ser considerada “droga”, limitando-se a preceituar o que serão consideradas como tal. A definição de drogas permanece sob o crivo do Ministério da Saúde, que por meio de portarias expedidas por seus órgãos competentes, publica periodicamente várias listas, especificando as substâncias que devem ser consideradas drogas ilícitas. Atualmente, permanecem em vigor as listas constantes na Portaria SVS/MS nº. 344, de 12 de maio de 1998, conforme expressa disposição do art. 66 da lei.
Portanto, a lei passa a usar uma terminologia diversa da que era usada pelas Leis 6.368/76 e 10.409/2002, substituindo a antiga “entorpecente” pela atual nomenclatura “droga”.
Há muita discussão acerca das definições e diferenças do que vêm a ser drogas, entorpecentes, substâncias pscicotrópicas e tóxicos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) faz constantemente publicações visando unificar os conceitos e terminologias que envolvem o tema.
3- Aspectos gerais das toxicomanias
A toxicomania tem como característica a vontade ou necessidade do uso ou a procura por todos os meios da droga. Assim, uma tendência ao aumento da dose, concomitante dependência de seus efeitos.
Carmen Silvia Có Freitas faz uma revisão histórica:
“Até a 2ª. Guerra o dependente a drogas e efeito psicotrópico era visto como um viciado, caracterizado por uma conduta compulsiva, uma maneira incontrolada de ser, era um proscrito social.
No pós-guerra (pobreza, condições sociais) o dependente recebia um enfoque de delinqüente, o que violava as leis (toxicômano e adicto – termos com significação marginalizante). Este enfoque foi até mais ou menos 1955-1960.
A partir daí, a OMS começou a enfocar o dependente com um enfermo e a dependência a drogas com uma patologia.
Atualmente não se faz muita diferença entre os termos ‘drogadição’, farmacodependência e toxicomania que é definida como um estado de intoxicação periódica ou crônica, nocivo para o indivíduo e para a sociedade, produzida pelo uso repetido de uma droga”.[3]
Vicente Greco Filho ensinava que a toxicomania deveria atingir certo grau de periculosidade individual e social, conforme os seguintes fatores:
“a) elevado teor de influência sobre o sistema nervoso central, de modo que pequenas doses da droga bastem para produzir profunda modificação no seu equilíbrio e levem a instaurar-se rapidamente a dependência de fundo orgânico ou simplesmente psicológico;
b) importância das perturbações físicas ou psíquicas que se originam do seu reiterado consumo, assim lesando gravemente as pessoas que a utilizam e, por via de conseqüência, produzindo dano social.”[4]
Acerca do tema, Ruth Maria Chittó Gauer faz as seguintes constatações:
“O toxicômano é visto como um dos fatores de anormalidade, de perda de humanidade, eles, portanto, são antissociais que anulam a sociedade, são remetidos a categoria de perigoso, de sujo, de doente, etc. […] O que se constata é que os grupos que se utilizam do uso de drogas constroem uma identidade contrastiva que se dá através de um processo de apoio do subgrupo ‘desviante’. Porém não se pode partir do pressuposto que um elevado índice de toxicomania produzem por si só a “anomalia” social. Podemos concluir que há sociedades com toxicomania alta e com baixo índice de anomia, que há sociedades com toxicomania alta e com alto índice de anomia, que há sociedades com baixo índice de toxicomania e baixa anomia, e, que há sociedades com baixo índice de toxicomania e alto índice de anomia”.[5]
Segundo Edevaldo Alves da Silva, a toxicomania possui características próprias, a saber:
“a) o indivíduo toxicômano, sente pela droga um irresistível desejo causado pela falta do tóxico, que o obriga a continuar a usar essas substâncias e procurá-las por todos os meios;
b) o indivíduo sente uma tendência contínua a aumentar a dose das drogas, a cada período de ingestão;
c) o indivíduo passa a sofrer uma dependência psíquica (psicológica) e às vezes até propriamente física, acerca dos efeitos que a droga produz em seu organismo, já então viciado ao uso”.[6]
A toxicomania nasce de um conflito psicológico não resolvido de inadaptação social, assim sendo, chamado de primário, quando resolvido, representa a superação do problema e a permanência na normalidade. Entretanto, quando não resolvido, incidem-se as circunstâncias desencadeantes, da qual geram neurose com manifestações de autogratificação ou autopunição. Desta forma, como conseqüência, temos a prática de delitos para o desafogo da neurose, o uso de tóxicos ou toxicofilia, e a automortificação pelo padecimento de doença psicossomática, como certas formas de asma, úlceras do estômago, dermatoses, artrites, colites, todas de fundo somático.
Na fase secundária, a toxicofilia, que é o simples uso, abate o ego, destrói os valores da convivência e projeta o viciado a uma nova classe conflitual, na qual o dependente perde a condição de trabalhar, enfraquece fisicamente, sente-se vencido e marginalizado.[7]
A toxicomania é um aspecto particular, em regra, um sintoma, de um distúrbio ao mesmo tempo mais intenso e mais complexo de personalidade e de conduta. O dependente de drogas tem a responsabilidade muitas vezes atenuada, em virtude de sua natureza comportamental compulsiva encorpada com o manto da fragilidade, resultado de uma relação com o mercado da dependência que constitui o cerne da questão.
Seguindo a linha, Salo de Carvalho leciona da seguinte maneira:
“Entre os consumidores a principal conseqüência da criminalização é o que se poderia denominar de junkyzação, isto é, a estigmatização do usuário com a sua identificação em (sub)culturas criminais, processo que, a partir de sua amplificação pelos meios de comunicação de massa, produz palpável reação social informal […] o sujeito envolvido com as drogas, por força da política proibicionista, ingressa no vicioso círculo da clandestinação, fato que, em caso de dependência, inviabiliza seu acesso aos sistemas de assistência médica e social”.[8]
Na verdade, o toxicômano é reflexo de várias causas, ou seja, aspectos que se ligam, tais como: substância, contexto sociocultural e econômico e a personalidade do usuário.
Quanto ao aspecto da psicopatologia da toxicomania e vivência do toxicômano, o psicanalista Richard Bucher explica que:
“A toxicomania, antes de ser um problema psicopatológico, constitui uma questão antropológica e ética. Enquanto fenômeno universalmente humano, o consumo de drogas ultrapassa as esferas da medicina e da psicopatologia; ele é propriamente antropológico, no sentido de acompanhar toda a evolução histórica da humanidade, a ponto de não existir sociedade que não tenha a ‘sua’ droga”.[9]
4- A Constituição de 1988 e as drogas
Com o processo de redemocratização, a política criminal instaurou um novo pensar, principalmente com a Assembléia Nacional Constituinte e a promulgação da Constituição Federal de 1988. O desejo de ruptura com as políticas autoritárias dos Governos Militares produziram a formalização no combate às drogas, causando perplexidade aos críticos da política beligerante que viam a Constituição como freio, e não potencializador, da violência planejada.
Como bem ensina Salo de Carvalho:
“O texto constitucional não apenas adquire função restritiva (negativa), característica precípua das normas constitucionais penais liberais, mas potencializa a incidência do penal/carcerário. Este paradoxo – coexistência de normas garantidoras e normas autoritárias em estatutos com clara vocação humanista (Constituições e Tratados Internacionais) – reflete o cenário jurídico-político nacional desde 1988. O processo de elaboração constitucional não apenas fixou limites ao poder repressivo; mas, de forma inédita, projetou sistema criminalizador, conformando o que se pode denominar Constituição Penal dirigente, dada a produção de normas penais programática. Desta forma, a Constituição recepcionou anseios punitivos colocando em xeque seus próprios princípios de contenção da violência punitiva. Tem-se, desta forma, na história recente do constitucionalismo nacional, a formação de núcleo constitucional-penal dirigente, plenamente realizado pelo legislador ordinário, cujo efeito é edificar Estado Penal como alternativa ao inexistente Estado Social”.[10]
Nossa Carta Magna, encorpada com a democracia e à luz das garantias, deve ser entendida como respeitadora das diferenças e particularidades de cada pessoa. Decorre daí, uma especial importância à liberdade da pessoa e, conseqüentemente, o respeito ao direito à privacidade. Sendo assim, a lei penal deve ser entendida não como limite da liberdade pessoal, mas como seu garante.
O Estado não pode criar figuras que venham a agredir a essência da pessoa, suas liberdades, ou seja, sua dignidade. Nesse contexto, a Lei nº. 6.368/76 não apresentava compatibilidade com a Constituição, seja em termos de constitucionalidade, seja sob o ângulo do direito intertemporal.
Por conseguinte, havia um conflito de normas, entre a constitucional que protegia à privacidade, com a relacionada no artigo 16 da Lei velha, que feria este direito fundamental sob a justificativa de estar protegendo outro bem jurídico, qual seja, a saúde pública.
Assim sendo, o fundamento da penalização do usuário de drogas, não encontrava embasamento nos princípios e normas constitucionais. Desta forma, o direito fundamental à liberdade é flagrante, analisado perante o Estado Democrático de Direito, onde a democracia significa respeito às diferenças.
A Lei ancestral, ao tratar do usuário, elencava a proteção do bem jurídico saúde pública em detrimento do direito fundamental à privacidade. Isso confrontava o ordenamento jurídico, pois não havia a compatibilidade da norma infraconstitucional com a Constituição.
Conclui-se, assim, conforme Arlete Hartmann, que: “o Direito não pode interferir na esfera da vida privada das pessoas, a menos que estas provoquem um dano concreto e direto a terceiros, independentemente dos danos que estas condutas possam causar ao usuário de drogas”.[11]
5- Posse ou porte de drogas para uso próprio
Usuário de drogas é, conforme o artigo 28 da lei, quem: “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Conforme o parágrafo 2º do artigo, o juiz para determinar se a droga destinava ao consumo: “atenderá à natureza e à quantidade de substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
Hoje, na esfera mundial, existem quatro tendências de políticas criminais relacionadas com as drogas. A primeira é o modelo norte-americano que prega a abstinência e a tolerância zero, constituem um problema policial e individualmente militar, adotam o encarceramento massivo dos envolvidos com drogas. A segunda tendência é o modelo liberal radical, ou seja, liberalização total. A droga provoca distintas conseqüências entre ricos e pobres, enfatizando que somente estes últimos iriam para a cadeia. O terceiro seria o sistema europeu, ou seja, de redução de danos. Desta forma, há a busca gradual da descriminalização das drogas, assim como por uma política de controle educacional, sendo a droga tratada como um problema de saúde pública. A quarta e última tendência é a justiça restaurativa, esta centra sua atenção no tratamento, propondo, assim, uma disseminação dessa forma como a mais adequada para cuidar do usuário ou dependente.
O modelo de Justiça Terapêutica como forma de tratamento, segundo Salo de Carvalho, já mostrava uma perspectiva ”sanitarista na qual o usuário de drogas é visto invariavelmente como doente crônico, reincidente e incurável”.[12]
Luiz Flávio Gomes faz algumas ponderações pertinentes, quando o assunto é criminalização do usuário de drogas:
“Não há outro rumo mais lúcido e racional que descriminalizar as drogas, isto é, retirar do Direito penal algumas condutas, reservando-o para o mínimo necessário. Não se trata de legaliza-las, sim, de controla-las. Vários países nos últimos anos deixaram de punir o porte para consumo de determinadas drogas (Holanda, Portugal pela Lei 30/2000, Suíça, Espanha etc.), preferindo a política de redução de danos (para a sociedade, para o próprio usuário e sua família). […] Prevenção é a prioridade. O mais sensato e responsável, de tudo quanto se pode extrair das experiências e vivências estrangeiras, consiste na adoção de uma política claramente preventiva em relação às drogas. Educação antes de tudo. E que os pais e professores, dentre tantos outros, assumam sua responsabilidade de orientação e conscientização. […] A postura da legislação penal brasileira sempre tratou o simples usuário de droga como criminoso”.[13]
Raúl Cervini leciona que descriminalização “é sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito do Direito Penal, certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas”. Agora, despenalização significa “o ato de diminuir a pena de um delito sem descriminalizá-lo, quer dizer, sem tirar do fato o caráter de ilícito penal”.[14]
Segundo Luiz Flávio Gomes, a discussão em volta da descriminalização do uso de drogas seria hipótese de abolitio criminis, para tanto, ele se vale do artigo 1º da LICP. Segundo o autor, se crime é a infração penal punida com reclusão ou detenção isto levaria ao seguinte entendimento:
“Não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (com a nova lei) deixou de ser ‘crime’ porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos – art. 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal (que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa). Em outras palavras: a nova Lei de Drogas, no art. 28, descriminalizou a conduta da posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de “infração penal” porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração “penal” no nosso País”.[15]
Conclui-se que, conforme Luiz Flávio Gomes, “a posse de droga para consumo pessoal passou a configurar uma infração sui generis […] porque somente foram cominadas penas alternativas, abandonando-se a pena de prisão”.
Roberto Mendes de Freitas Júnior discorda e traz os seguintes argumentos:
“O Decreto-lei n. 3.914, de 9 de dezembro de 1941 – Lei de Introdução ao Código Penal – jamais poderia se referir às penas restritivas de direitos, vez que estas só foram inseridas na legislação penal após a reforma da parte geral do Código Penal, em 1984. Óbvio, portanto, que em 1941, o legislador não poderia incluir, na definição de crime (art. 1º da LICP), a cominação de pena restritiva de direitos, já que tal pena não existia no direito pátrio.
O art. 28, ademais, está inserido no Capítulo III, do Título III, da Lei n. 11.343/2006, sob a rubrica ‘Dos crimes e das penas’, tornando inquestionável a intenção do legislador em considerar tal conduta como ilícito penal”.[16]
Na mesma linha, Davi André Costa Silva defende que não houve descriminalização, vejamos as suas considerações:
“O argumento pela descriminalização é frágil, pois se funda no artigo 1º da Lei de Introdução do Código Penal que apresenta a diferença entre crimes e contravenções, tendo, como único critério diferenciador, as penas.
A LICP não é a única norma legal a prever as penas a serem adotadas no Brasil. O próprio Código Penal, que teve sua parte geral reformada em 1984, apresenta outras penas, além da reclusão, detenção, prisão simples e multa disciplinadas originalmente na LICP. Além das penas privativas de liberdade, há as restritivas de direito, dentre as quais a prestação de serviços à comunidade, exatamente a mesma cominada para os usuários (art. 28, II, e § 6º, II, da Lei 11.343/06).
Ainda que tal argumento não se mostre suficiente, o operador do direito deve se ancorar na Constituição da República (art. 5º, inc. XLVI), que também prevê a prestação social alternativa, ao lado das penas de privação ou restrição da liberdade, da perda de bens, da multa e da suspensão ou interdição de direitos. […] A natureza jurídica do artigo 28 é de medida despenalizadora mista, eis que o legislador optou por adotar medidas educativas – duas delas afastam por completo a aplicação de pena (advertência sobre os efeitos das drogas e comparecimento a programa ou curso educativo), por isso chamadas de medidas despenalizadoras próprias ou típicas. A terceira é uma medida despenalizadora imprópria ou atípica, pois embora objetive evitar a prisão, impinge ao usuário uma pena restritiva de direitos – a prestação de serviços à comunidade”. [17]
Para Paulo Rangel não houve nem descriminalização e nem despenalização, ele toma como base os princípios constitucionais da reserva legal e da individualização da pena. Ele explica que a Lei Antidrogas é clara ao anunciar que é proibido o consumo de drogas e estabelece sanções, pois a Constituição Federal assim o permite que o faça.[18]
5.1 – Das penas
O artigo 16 da Lei 6.368/76 valorava a pena do uso de drogas em detenção de seis meses a dois anos, traduzindo em crime. O novo texto legal não comina mais tal pena, outrossim, está sancionada com penas alternativas, sendo impostas pelos Juizados Especiais Criminais.
As condutas proibidas, anteriormente, eram apenas três: adquirir, guardar ou trazer consigo. Com a nova legislação, agora, são cinco: adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo.
Quanto aos verbos nucleares acrescidos com a nova legislação, Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho doutrinam o seguinte: “não houve alteração significativa na incriminação, comparando-se com a legislação anterior. As condutas introduzidas já estavam, de maneira direta ou indireta, abrangidas nos verbos previstos no art. 16 da Lei 6.368/1976”.[19]
Conceitualmente, adquirir é comprar, passar a ser proprietário, ou seja, dono do objeto. Já a conduta guardar é ocultar, esconder, não publicar a posse. A conduta de ter em depósito significa manter sob controle, à disposição. Agora, transportar traz a idéia de deslocamento, ou seja, de um local para outro. E, por último, o comportamento de trazer consigo é o mesmo que portar a droga, tendo total disponibilidade de acesso ao uso.
As condutas descritas no artigo 28 da Lei, apenas contemplam a forma dolosa, ou seja, saber e querer ter a posse da droga. Não se admite a forma culposa. Desta forma, o agente que tiver a posse da droga sem saber do que se trata, encontra-se em erro de tipo. Agora, tratando-se de erro invencível, estará excluído o dolo e a culpa, já o erro vencível é apenas punido pela forma culposa, que não tem previsão no artigo 28, sendo caso de atipicidade. Por outro lado, se o agente sabe que está com a posse de drogas, mas acredita que a mesma não é proibida, estaremos diante de erro de proibição.
O tipo requer, ainda, outro elemento subjetivo, qual seja, a intenção especial do agente em ter a droga para consumo pessoal. Assim, se o sujeito tem a posse da droga para destinação a terceiros, outra será a infração, não incidindo mais o artigo 28. Portanto, o tipo requer o que alguns doutrinadores chamam de dolo específico.
Como elemento normativo, resta à observação da expressão “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, cabendo ao julgador verificar a ocorrência ou não de tal elemento.
Quanto à conduta, temos o sujeito ativo que pode ser qualquer pessoa, que, tratando-se de menor de dezoito anos, será medida adotada constante no Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que ela não poderá ser mais grave que as da nova Lei Antidrogas, pois feriria o princípio da proporcionalidade. Outro sujeito classificado como ativo é o inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato, conforme o artigo 45 da Lei, é totalmente isento de pena. Como sujeito passivo temos a coletividade.
O uso de drogas é considerado uma infração de mera conduta, ou seja, basta o desvalor da conduta para configurar e consumir o delito. Portanto, não precisa provar nenhum perigo concreto. O objeto material da infração é a droga. Assim, se esta não for apreendida, impossível será a idoneidade tóxica, ou seja, não se comprova a materialidade do evento.
Portanto, como bem salienta Hélio Sodré, “o crime é, nos exatos termos da lei, trazer consigo drogas prejudiciais à saúde, substâncias que possuam as características previstas na lei. Portanto, nesses casos, é indispensável o imediato exame pericial”.[20]
Mas quando se tratar de posse insignificante de drogas, o correto seria não aplicar nenhuma das sanções alternativas, e sim, o princípio da insignificância, que é causa excludente da tipicidade material do fato. De tal modo, que a droga apreendida não tenha capacidade ofensiva.
A Lei nova estabeleceu alguns critérios para estabelecer se a droga destinava-se ao consumo pessoal. Assim, vejamos o artigo 28, § 2º: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
Assim, é relevante o objeto material do delito, o desvalor da ação, bem como o próprio agente do fato. Por conseguinte, a quantidade da droga, por si só, não configura, em regra, critério decisivo.
Segundo o artigo 28, temos as seguintes penas aplicadas aos usuários de drogas: “I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
A advertência não é uma repressão moral ou religiosa, mas sim jurídica, ou seja, preza-se uma sanção legal. Em contrapartida, aborda-se os efeitos prejudiciais da droga, para o próprio usuário, família, etc. Essa medida pode ocorrer no próprio Juizado Criminal. Ainda, pode ser aplicada isolada ou cumulativamente com as outras medidas, como também, ser substituída a qualquer tempo, sendo vedada a conversão em pena privativa de liberdade.
Para Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho a advertência é uma inovação, constituindo no ato do juiz esclarecer ao agente os malefícios que as drogas podem trazer, não só a sua saúde particular, mas também a da sociedade em geral. O magistrado pode ainda valer-se de diferentes profissionais, tais como, psicólogos, médicos, assistentes sociais, etc, para eventual auxílio.[21]
Outra medida a ser adotada é a prestação de serviços à comunidade, que poderá ser fixada isolada ou cumulativamente com as demais medidas alternativas, disposto no artigo 27 da lei.
O tempo de cumprimento da prestação de serviços à comunidade segue a mesma regra do artigo 46, § 3.º do Código Penal, ou seja, uma hora de tarefa por dia de condenação. O local de realização da medida de prestação de serviços à comunidade será estabelecido pelo juiz das execuções. O artigo 28, § 5.º da Lei 11.343/06 estabelece locais de cumprimento: “A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas”.
Cabe ao julgador fazer a diferenciação do mero usuário, ou dependente de drogas, distinção esta que será fundamental na escolha da medida educativa mais adequada ao caso concreto. Quanto às medidas educativas de comparecimento a programas ou cursos educativos, caberá ao juiz fixá-las, bem como as freqüências a serem feitas. Desta forma, se não constar na sentença, caberá ao juiz de execuções delimita-las.
As repreensões contidas no artigo 28 pertencem a um rol exaustivo, assim, será nula a sentença que colocar em prática qualquer outra sanção ao usuário. Dessa forma, sendo mais benéfica, deverá retroagir, alcançando os crimes ocorridos antes de sua publicação, ou seja, o processo estando na fase de instrução e julgamento, sendo a decisão condenatória, o juiz terá que se valer das novas sanções legais. O mesmo deverá ocorrer nas outras instâncias processuais, e após o trânsito em julgado, cabe ao arbitro executor, de ofício ou a requerimento das partes, o exame da lei mais benigna, conforme o que dispõe a Súmula 611 do STF.[22]
As medidas alternativas aplicadas no artigo 28 não podem ser aplicadas por tempo superior a cinco meses, é o que dispõe o § 3.º do artigo mencionado, salvo em caso de reincidência, onde então, a pena máxima passaria para dez meses, conforme o § 4.º.
No código penal a reincidência significa aquele que pratica novamente a infração, depois de já ter sido condenado definitivamente por outro fato anterior. Mas a reincidência no caso específico do artigo 28, § 4.º não tem correspondência com o sentido técnico do Código Penal, e sim, significa apenas incidir novamente.
No caso em tela, Luiz Flávio Gomes presta maiores esclarecimentos:
“Caso o agente tenha alguma outra condenação precedente (por roubo, homicídio, evasão de divisas, gestão temerária de empresa etc.) e vem a praticar o fato descrito no art. 28, em nada será prejudicado em virtude dessa condenação anterior. O fato de ter condenação por outro crime (distinto da posse de drogas) não impede a aplicação das penas do art. 28. de outro lado, não sendo reincidente específico no art. 28 (posse de droga para consumo pessoal), sua pena não pode passar de cinco meses. Quando reincidente específico no art. 28, sua pena poderá chegar a dez meses. […] Caso já tenha expirado o prazo depurador de cinco anos, não há que se falar na reincidência específica do § 4.º do art. 28. Logo, as sanções não podem passar de 5 (cinco) meses.”[23]
No caso de multireincidência, ou seja, o usuário é várias vezes surpreendido na posse de drogas para consumo pessoal, o lapso temporal do artigo 28, § 4.º, não se altera. Desta forma, mesmo que ele seja multireincidente não terá à pena de prisão e não cumprirá pena mais que dez meses de sanção.
Agora, para garantia do cumprimento das medidas educativas, o artigo 28, § 6.º da lei estudada dispõe que o juiz poderá, para aqueles que injustificadamente se recusarem, aplicar, sucessivamente, a admoestação verbal e a multa.
A admoestação é uma repreensão, o juiz advertirá o agente sobre as conseqüências de sua desídia delituosa. Assim, haverá intimação do magistrado para que o agente compareça à audiência admonitória designada, onde será feita a advertência oral.
Élcio Pinheiro de Castro tece os seguintes comentários acerca do descumprimento das medidas educativas:
“Importa ressaltar que não satisfeita a obrigação (sem plausível justificativa) é facultado ao magistrado infligir a pena de admoestação verbal e, se ainda assim não surtir efeito, determinar o pagamento de multa que não poderá ser inferior a 40 nem superior a 100 dias-multa. O cálculo, entre os apontados limites deverá ser realizado com apoio exclusivamente na reprovabilidade de conduta, observando-se o princípio da proporcionalidade a fim de assegurar a indispensável individualização. Firmando o número de unidades, o julgador prescreverá o valor de cada dia-multa (entre 1/30 e 3 vezes o maior salário mínimo) segundo a capacidade econômica do recalcitrante. Tais importâncias, após o recolhimento, serão destinadas ao Fundo Nacional Antidrogas e não mais ao Tesouro Nacional.”[24]
Praticada a infração do artigo 28, cabe ao Estado o direito de aplicar as medidas alternativas previstas. O lapso temporal para isso é de dois anos, perde-se, portanto, o direito de aplicar contra o agente as medidas estabelecidas após esse período.
5.2 – Consumação e tentativa
A consumação ocorre quando a conduta típica é realizada, não se exige nenhum resultado. Em contrapartida, é preciso a comprovação da idoneidade lesiva da conduta e da droga. Assim, estamos diante de um crime de posse, onde a simples comprovação da posse do objeto já é punível. Trata-se, desta forma, de crime de perigo abstrato, não há a necessidade de provar o efetivo perigo à saúde pública. Assim, basta a realização de alguma das condutas delineadas no tipo para a consumação do delito.
A tentativa fática é possível, exemplo, tentar adquirir droga para consumo pessoal, entretanto, essa conduta não é absorvida pela Lei, pois todo o comportamento que represente menos que a real posse deve ficar impune, pois do contrário haveria uma exagerada antecipação da tutela legal. O certo é que ninguém poderá ser punido pela intenção ou cogitação, assim, se não conseguiu sequer alcançar a posse de droga, não incidirá nele a previsão legal.[25]
5.3 – Lei penal no tempo
A sucessão de leis penais rege-se por dois princípios básicos, quais sejam, a irretroatividade da lei penal nova mais severa e, por outro lado, a retroatividade da lei penal nova mais benéfica. Assim, o artigo 28 da nova lei é indiscutivelmente mais benéfico que o artigo 16 da lei anterior.
Neste sentido, entendimento igual de Roberto Mendes Freitas Júnior:
“Por constituir novatio legis in mellius, a nova lei retroage para alcançar fatos praticados antes de sua vigência. O agente que estiver sendo processado pela prática do crime previsto no art. 16 da antiga Lei de Entorpecentes, dessa forma, deve ser beneficiado pela regra da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 2º, parágrafo único, do Código Penal), só podendo ser submetido a uma das penas previstas no art. 28 da Lei n. 11.343/2006.”[26]
5.4 – Norma penal em branco
A regra constante no artigo 28 da Lei deve ser classificada como norma penal em branco, pois trata de uma infração incompleta, pois exige um complemento normativo. No caso em tela, esse complemento é constituído pela descrição das drogas, ou seja, uma lista de drogas fornecida pela Anvisa, que pertence ao Ministério da Saúde. Esse complemento é heterogêneo, portanto, estamos diante de uma lei em branco heterogênea.
Luiz Flávio Gomes assevera que a lei em branco é formada por dois textos normativos, ou seja, o principal e o complemento. Desta forma, a ausência de um deles acarreta a inexistência da atipicidade. Portanto, se a substância apreendida for retirada da lista, estamos diante de abolitio criminis.[27]
Assim sendo, como bem salienta Salo de Carvalho, “a lei penal em branco é identificada por preceitos incompletos nos quais a descrição da conduta punível requer colmatação por terceiros dispositivos, normalmente de cunho extrapenal e administrativo”.[28]
5.5 – Figuras equiparadas
Muita divergência existia sobre o enquadramento típico da conduta consistente em semear, cultivar ou colher plantas tóxicas, Luiz Flávio Gomes demonstra as posições que eram sustentadas na Lei 6.368/76:
“(a) o fato caracterizava o delito do art. 12, § 1.º, II, da referida Lei (não importava se a intenção do agente era para uso ou para consumo de terceiros); (b) o fato estava descrito nesse dispositivo legal mas quando o agente “plantava”, semeava ou colhia ‘para uso próprio’ a pena não podia ser a do art. 12, § 1.º, II, sim, a do art. 16 (por analogia in bonam partem); (c) o fato era atípico.”[29]
Roberto Mendes de Freitas Júnior exemplifica a orientação da lei antiga:
“Se o agente plantasse um único pé de maconha para uso próprio, e fosse surpreendido enquanto a planta ainda não tivesse sido colhida, respondia por tráfico ilícito de entorpecente; mas se fosse surpreendido pela polícia minutos após a colheita, somente na posse do entorpecente, para uso próprio, respondia pelo crime de uso de entorpecente […] tratava-se de situação absurda, que violava o Princípio Constitucional da Proporcionalidade das Penas, pois uma mesma conduta, dividida em três fases (plantar, colher e usar), era incriminada de forma muito mais grave se interrompida nos dois primeiros momentos.”[30]
A conduta agora vem explicita no § 1.º do artigo 28 da nova lei: “para consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”. Por conseguinte, temos um requisito subjetivo especial, ou seja, diferencia-se a conduta para uso pessoal, da conduta de tráfico, constante no artigo 33, § 1.º, II, também da nova lei. Igualmente, a configuração do crime exige pequena quantidade, ou seja, é requisito normativo do tipo porque exige juízo de valor do juiz.
6- Infrações de menor potencial ofensivo
As penas cominadas no artigo 28 são consideradas de menor potencial ofensivo, assim, o processamento delas segue, em regra, o disposto no artigo 60 e seguintes da Lei 9.099/95, conforme o que está disposto no artigo 48, § 1º da Lei Antidrogas[31].
Além das infrações do artigo 28, outras existem com sanção cominada não superior a dois anos. São elas: art. 33, § 3.º (tráfico privilegiado) e art. 38 (prescrição culposa de drogas).
Conforme o artigo 61 da Lei n°. 9.099/1995, o conceito de menor potencial ofensivo é o seguinte: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”.
Como colação, Jayme Walmer de Freitas traz os seguintes aspectos:
“O tráfico na forma culposa (art. 38) é infração de menor potencial ofensivo, com a nuança de que, como qualquer outro tipo penal assemelhado, dependendo das circunstâncias pessoais do acusado, pode conduzí-lo a uma pena privativa de liberdade, o que inexiste no crime de porte de entorpecentes.”[32]
7- Concurso entre posse de droga para consumo pessoal e tráfico de drogas
As infrações alinhadas pelo Juizado Especial, quando ligadas aos crimes dele excluídos, deverão ser remetidas ao Juízo Comum, que são responsáveis pelo julgamento de ilícito mais grave. Tendo em vista o novo texto legal e, respeitando o artigo 60 da Lei dos Juizados Especiais, preenchidos os requisitos exigíveis, não poderão as infrações de maior gravidade dificultar a possibilidade de transação penal e, por conseguinte, a composição dos danos causados.[33]
Assim, como exemplifica Luiz Flávio Gomes, se o agente cede a sua casa para a traficância e, ao mesmo tempo, é surpreendido com posse de drogas para consumo pessoal, estaríamos diante de dois delitos configurados. Diante disto, surgirá a pergunta qual a solução a ser tomada? Vejamos, uma é de maior gravidade e contaria com o procedimento especial da nova lei e a outra de menor potencial ofensivo e deveria ser processada nos Juizados.
Paulo Rangel tem o seguinte entendimento sobre o assunto: havendo conexão entre o artigo 28 e os artigos 33 a 37 da nova Lei, não impedirá que o consumidor de drogas desfrute dos direitos aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, pois o contrário feriria o princípio da razoabilidade.[34]
A infração de menor potencial ofensivo deverá ser analisada de forma isolada, ou seja, individualizando cada delito. Em contra partida, a infração penal conexa de maior gravidade não poderá ser invocada como fator impeditivo da incidência dos institutos da transação ou da composição civil.
8- Posse de drogas para consumo pessoal e prisão em flagrante
Conforme o que dispõe a lei, será o juiz dos Juizados Criminais competente para a aplicação da penas contidas no artigo 28. Em último caso, em não havendo Juizados de plantão, poderá o caso ser encaminhado à delegacia de polícia, onde assim, o delegado elaborará o termo circunstanciado. Vale frisar que, desapareceu a prisão em flagrante para usuários de drogas.
E, neste particular, se não haverá prisão em flagrante no artigo 28, por analogia in bonam partem, também não poderá haver a prisão em flagrante nas situações de delitos de menor potencial ofensivo, também prevista na nova Lei Antidrogas. Isso significa dizer que não ocorrerá a lavratura do auto de prisão em flagrante, bem como não haverá recolhimento do sujeito ao cárcere.
Sobre o tema, Roberto Mendes de Freitas Júnior comenta:
“A vedação da prisão em flagrante é absoluta, não estando condicionada à aceitação do agente em cooperar com a Justiça. Não será possível a prisão em flagrante, assim, nem mesmo se houver recusa do agente em comparecer em juízo. Óbvio, contudo, que caso o agente pratique o crime previsto no art. 28, em concurso com qualquer conduta dentre aquelas previstas nos arts. 33 a 37, caberá a sua prisão em flagrante, prosseguindo-se o feito nos termos do disposto no art. 50 e seguintes da nova lei.”[35]
Em resumo, como bem ensinam Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho, a autoridade policial que encontrar um usuário em situação de flagrância deverá tomar as seguintes atitudes:
“a) se houver Juízo, conduzi-lo coercitivamente para que a Secretaria do Juizado elabore o Termo Circunstanciado;
b) na falta do Juízo, abrem-se-lhe duas possibilidades: b1) elaborar o termo circunstanciado no local dos fatos ou b2) encaminhar o agente para a Delegacia de Polícia, na qual será lavrado termo circunstanciado ou auto de prisão em flagrante, caso o Delegado entenda tratar-se ou não de usuário”.[36]
8.1 – Vedação da detenção do agente
A legislação afastou a atuação policial nos casos de usuários e dependentes de drogas, ou seja, ele deve ser levado, preferencialmente, ao juiz. Portanto, somente na falta deste é que deve ser encaminhado à Delegacia de Polícia para elaboração do termo circunstanciado.
A Lei vedou a detenção do agente usuário ou semeador ou cultivador de planta tóxica com o fito de consumo próprio. Nesta linha, Luiz Flávio Gomes ensina o tema em destaque:
“A prisão em flagrante […] conta com quatro momentos importantes: (a) captura do agente (no momento da infração ou logo após a sua realização); (b) sua condução coercitiva até à presença da autoridade policial (ou judicial); (c) lavratura do auto de prisão em flagrante e (d) recolhimento ao cárcere. No caso da infração do art. 28 os dois últimos momentos não existem: nem se lavra o auto de prisão em flagrante, nem se recolhe o agente ao cárcere”.[37]
Como bem lembra Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho:
“A finalidade do legislador era afastar ao máximo o usuário das Delegacias de Polícia, evitando-se estigmatizá-lo. Esta concepção se enquadraria dentro do espírito que permeia toda a Lei de Drogas, de separar rigidamente o usuário e o traficante, tratando-se de maneira totalmente diversa. Assim, apenas ao traficante se reservaria o espaço das Delegacias de Polícia”.[38]
9- Transação penal
Sobre o tema transação penal, vejamos a conceituação que Daniel Gerber e Marcelo Lemos Dornelles trazem para discussão:
“O conceito de transação penal vem do latim transactio, no sentido de exprimir uma espécie de negociação, em sentido gramatical, um sentido de pacto na quais as pessoas realizam um contrato, ou negociam, a fim de prevenir um litígio, ou mesmo colocar fim a um determinado litígio que se tenha iniciado. Cumpre a transação penal a tarefa de evitar a contestação. Assim, esta terá sempre um caráter consensual; por esta razão, este acordo é também denominado de composição amigável. […] a proposta de transação penal, que é modalidade de ação penal, somente pode ser feita nos casos em que o agente ministerial tiver feito análise semelhante àquela que faz para o oferecimento da denúncia e tiver vislumbrado elementos suficientes para o desencadeamento de ação penal contra o autor do fato”.[39]
A transação penal, segundo Luiz Flávio Gomes, funciona da seguinte maneira: “na audiência preliminar é possível a transação penal, aplicando-se as penas alternativas do art. 28. Não aceita (pelo agente) a transação penal, segue-se o rito sumaríssimo da Lei 9.099/95”.[40]
Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho fazem a seguinte explanação sobre a transação penal:
“A transação deve envolver, portanto, a aplicação imediata das penas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Em divergência ao tratamento dado aos crimes de menor potencial ofensivo, não será possível o oferecimento de proposta de penas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana ou multa”.[41]
A propósito do tema, Roberto Mendes de Freitas Júnior explica da seguinte maneira: “se o agente não aceitar a proposta, não tiver comparecido à audiência preliminar (apesar de devidamente cientificado), ou não preencher os requisitos legais para tanto, proceder-se-á ao rito sumaríssimo”.[42]
Vale lembrar, que as medidas educativas aplicadas no artigo 28 não contam com caráter penal, ou seja, não valem, por exemplo, para antecedentes criminais e para reincidência. A imposição de uma não impede a segunda.
De outra banda, o autor da proposta de transação é o Ministério Público, isto porque, no caso do artigo 28 da Lei, é pública e incondicionada. Frisa-se, ainda, que a presença de um advogado se fará imprescindível no momento do aceite de qualquer transação penal.
Quando a quantidade de droga apreendida for muito ínfima, Salo de Carvalho doutrinava já na legislação anterior que: “não há outra alternativa possível aos operadores do direito senão optarem pelo arquivamento do procedimento, sequer propondo transação penal ou suspensão condicional do processo”.[43]
10- Considerações finais
Um dos temas mais discutidos e abordados nas últimas décadas, com certeza, são as Drogas. O usuário/dependente carrega há tempos o estigma de criminoso, as legislações passadas traziam severo rigor, sendo desproporcional àqueles que tinham o dolo para o comércio.
Isso se deve muito a uma cultura, ou seja, uma visão popular, diga-se de passagem, retrógrada e conservadora, que iguala o dependente de drogas àquele que trafica drogas ilícitas. Frisa-se que, a problemática em torno das drogas agride não apenas uma parcela da população, mas toda a coletividade.
A prevenção ao uso de drogas tem que, primeiramente, passar pelo estágio da educação, pois se trata de tema, ainda, revestido por forte preconceito e desinformação.
A legislação passada, Lei 6.368/1976, já não acompanhava mais os avanços da criminalidade moderna. Em 2002 surgiu a Lei 10.409/2002, esta, no entanto, tinha o intuito de renovar o ordenamento jurídico, mas não foi bem aceita e acabou por sofrer muitos vetos da Presidência, por considerar trechos que afrontavam a Constituição e o interesse público. A partir daí iniciou-se a tramitação do projeto que hoje é a nova Lei de Drogas, esta surgiu revogando as duas anteriores.
A Lei cria o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, tendo objetivo de prescrever medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, bem como estabelecer normas de repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.
Portanto, o legislador consciente de que o uso de drogas está disseminado na sociedade, buscou criar medidas que atendessem aos usuários e dependentes, e mais, reinserí-los no meio social. Assim, ocorre o reconhecimento de que o uso de drogas é uma realidade e que o caminho não é taxá-los como criminosos, e sim, dar-lhes tratamento.
O Estado passa, assim, a tratar o consumo como um problema de saúde pública, busca-se a redução de danos. A lei aplicará ao usuário penas alternativas, não mais privação de liberdade. Assim, não se cogita mais a propositura de inquérito policial, mas, termo circunstanciado para aqueles que forem surpreendidos com drogas para consumo pessoal. O legislador demonstra nítida intenção de diferenciá-lo do traficante aplicando-lhes, medidas educativas.
Isto significa dizer, que não haverá mais a prisão, retira-se do caminho do usuário/dependente a polícia, sendo ela usada como ultima ratio. Seu caminho, agora, será o Juizado Criminal de plantão.
Enfim, o caminho dado pela nova Lei traz contornos atuais e modernos, seguindo países de primeiro mundo. Já passa o tempo de termos leis anacrônicas e duras, que visem apenas devolver o mal praticado. Agora, cabe ao Estado cumprir o seu papel e disponibilizar locais para tratamento de usuários/dependentes, bem como criar políticas educacionais cada vez mais apropriadas a uma sociedade em constante mudança.
11 – Referências bibliográficas
Notas:
[1] GOMES, Luiz Flávio (Org.). Nova Lei de Drogas Comentada: Lei 11.343, de 23.08.2006. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, 118-119.
Informações Sobre o Autor
Rodrigo Silveira da Rosa