O Parquet na defesa dos direitos individuais homogêneos


Sumário:
1. Introdução – 2. Da Inconstitucionalidade como mera Causa de Pedir na Ação Civil Pública – 3. Da Legitimidade do Ministério Público para a Defesa de Interesses Individuais Homogêneo – 4. Da Inconstitucionalidade do Raciocínio Inverso – 5. Da Taxa de Iluminação Pública como Relação de Consumo – 6. Conclusão – 7. Bibliografia.


1. Introdução


O problema da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, em virtude da ausência de um conceito preciso sobre os institutos, está longe do seu término.


Atualmente, os tribunais, mormente o Superior Tribunal de Justiça, vêm negando legitimidade ao Parquet para a propositura de ação civil pública que tem por escopo a defesa dos interesses individuais homogêneos, precipuamente quando o objeto litigioso da referida ação é a “taxa de iluminação pública”.


As respeitáveis decisões citadas têm por fundamentação, em compêndio, o seguinte:


1.      O Ministério Público não pode aviar ação civil pública para a defesa de interesses individuais homogêneos, identificáveis e divisíveis, pois suas atribuições institucionais lhe defere o poder de litigar tão-somente sobre a defesa de interesses difusos ou coletivos stricto sensu;

2.      A ação civil pública não pode ser substituto da ação direta de inconstitucionalidade para obter o reconhecimento de inconstitucionalidade de lei municipal posto que a decisão proferida neste sentido tem efeito erga omnes;

3.      No caso da “taxa de iluminação pública”, a ação civil pública não é a via adequada tendo em vista que a relação jurídica ali estabelecida é tributária – entre a Fazenda Pública municipal e o contribuinte – e, não, relação de consumo, já que não de confundem os conceitos de contribuinte e  consumidor.

Em síntese, é essa argumentação utilizada na maioria dos julgados onde não se reconhece a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública com o escopo de defender interesses individuais homogêneos, como dito, máxime quando se trata de acoimar de ilegal a chamada “taxa de iluminação pública”.

Sem embargo do raciocínio utilizado nas argumentações que servem de fulcro aos acórdãos prolatados, entendo que uma perquirição mais acurada pode inverter o pensamento para o sentido de se deferir legitimidade ao Parquet no que diz respeito à defesa de interesses individuais.


Com efeito, a análise mais detida exporá alguns equívocos do pensamento hodiernamente dominante, sem que se tenha a pretensão de falar sobre verdade absoluta.


2. Da inconstitucionalidade como mera causa de pedir na Ação Civil Pública


A primeira tese a ser analisada mais detidamente concerne ao fato de os tribunais asseverarem ser impossível a declaração de inconstitucionalidade de lei municipal que institui “taxa de iluminação pública” em sede de ação civil pública, utilizando-se, em regra, da argumentação segundo a qual a decisão proferida nesta seara possui efeito erga omnes.


No particular, entendo que nada mais correto porquanto uma decisão no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade não possuirá efeitos tão-somente inter partes e, sim, por força expressa de lei, erga omnes.


De efeito, consubstancia-se inconcebível a tratativa de inconstitucionalidade nas ações civis públicas.


Todavia, o punctum dolens aí não reside, permissa venia.


A argüição de inconstitucionalidade realizada em sede de ação civil pública, na maior parte das vezes, é trazida como mera causa de pedir, motivos que irão animar e dar base ao pedido. Este difere daquela posto que restringe-se à condenação do Réu a obrigação de não fazer.


Portanto, incorre em profundo desvio de perspectiva o pensamento segundo o qual acoimar de inconstitucional uma lei seja a mesma coisa que pedir o reconhecimento ou declaração de sua inconstitucionalidade.


Destarte, faz-se mister, primeiramente, distinguir pedido e causa de pedir, para a determinação de uma linha de raciocínio estreme de obscuridade.


J. J. Calmon de Passos esclarece, em brilhante escólio, a definição de causa petendi:


“Pode-se, conseguintemente, dizer que a causa de pedir é a resultante da conjugação tanto do fato gerador da incidência originária, quanto daquele de que resultou a incidência derivada.

A causa de pedir, ensina Pontes de Miranda, supõe o fato ou série de fatos dentro de categoria ou figura jurídica com que se compõe o direito subjetivo ou se compõem os direitos subjetivos do autor e o seu direito público subjetivo de demandar”.(Cf.: Comentários ao Código de Processo Civil, v. III, ed. Forense, 8ª edição, p. 158/159).

Da mesma forma, podemos, ainda com Calmon de Passos, asseverar que:

“O pedido constitui o objeto da ação, aquilo que se pretende obter com a prestação da tutela jurisdicional reclamada”.

“Distingue-se o pedido imediato do pedido mediato. Isto porque, na inicial, o autor reclama determinado tipo de tutela jurisdicional (pedido imediato) com vistas à obtenção de um bem da vida, que afirma lhe estar assegurado pelo direito (pedido mediato)”.(ob. Cit., p. 171)

Com efeito, não se há de falar em impossibilidade de se argüir inconstitucionalidade de lei como mera causa petendi pois não há norma legal que assim proceda.

Assim, o pedido restringe-se tão-somente a obrigação negativa – de não fazer – alguma coisa, nos casos das ações civis propostas em face de municípios, ou seja, na abstenção no que concerne à cobrança da referida taxa.


A outro giro, e em obediência ao princípio da congruência ou correlação, segundo o qual o magistrado deverá decidir nos limites do que foi pedido, não poderá o juiz reconhecer a inconstitucionalidade da taxa, porém poderá condenar a municipalidade a se abster da cobrança da taxa tendo em vista a fundamentação agasalhada da inconstitucionalidade.


Dessa forma, a argumentação da inconstitucionalidade é mera motivação para pedir, e, não, o pedido em si.


Sendo causa de pedir, todos os argumentos aí insculpidos farão parte da motivação da sentença – princípio da congruência ou correlação – não, porém, do seu dispositivo.


Destarte, o nosso codex processual é claro em determinar que:


Art. 469Não fazem coisa julgada:

I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

Il – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;

IIIa apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.

A questão prejudicial, como é de grande sabença, é aquela que interfere no mérito da questão, no conflito de interesses posto a julgamento e que, por isso, é questão prévia logicamente relacionada ao litígio.

“Na questão prejudicial, há comunicação de conhecimento, a ser apreciada pelo juiz, que funciona como antecedente lógico, sem ser preciso, ou sem ser provável formar processo separado.” (Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 3ª edição, Ed. Forense, atualização legislativa de Sergio Bermudes, p. 128).


Pois bem.


A inconstitucionalidade de uma lei quando argüida como mera motivação, causa de pedir, não faz coisa julgada, ou seja, não pertencerá ao comando da sentença posto que é quaestiones praeiudiciales.


Dessarte, não é impossível ou processualmente incorreto o pedido da ação civil pública proposta porquanto não há pedido de reconhecimento de inconstitucionalidade da lei que instituiu a referida “taxa”.


Trazemos, de outro lado, à lume os escólios de Luiz Fabião Guasque, onde esclarece sobremaneira o equívoco de tal tese, perfeitamente aplicável in casu:


“No que respeita a pedidos de abstenção de cobrança de taxas inconstitucionais por inadequação ao conceito expresso na Constituição da República (art. 145, inc. II), a primeira delas, conforme os arts. 460 e 461, é a de que o pedido na ação civil pública ou no mandado de segurança é sempre o de obrigar o Poder Público a se abster da cobrança. Este o limite objetivo da sentença.


“A decisão nesse sentido faz coisa julgada erga omnes, por força do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, Lei 7.347/85), apenas nos limites do pedido. Em outras palavras, o Poder Público estará, na hipótese de procedência, obrigado a não cobrar a taxa correspondente ao serviço, a todos os sujeitos passivos da obrigação. Não pode pretender cobrar de uns e beneficiar outros. Na situação inversa, poderá cobrar de todos. Estes os limites subjetivos da demanda.


“No caso de procedência da pretensão, os parâmetros deste pedido se limitam a impor ao Poder Público a obrigação de não cobrar, partindo-se da análise incidental de que o pagamento é abusivo por inconstitucional. É como se o Juiz dissesse: por, no meu juízo, considerar inconstitucional a lei que instituiu o dever de pagar, determino que o credor tributário não efetue a cobrança enquanto não declarada inconstitucional ou não a exigência.” (Cf.: O Controle Cautelar de Inconstitucionalidade nas Ações de Interesse Difuso, RT 746/61-62).


A outro giro, o próprio Superior Tribunal de Justiça, por duas vezes, já decidiu que:


“A coisa julgada não alcança os fundamentos da decisão.” (Ac. un. da 4ª T. do STJ de 07.11.1994, no Resp 43.871-3-RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo)


“Os fundamentos das decisões judiciais não fazem coisa julgada.” (Ac. un. da 1ª T. do STJ de 07.11.1994, no Resp 46.447-1-SP, rel. Min. Humberto Gomes de Barros).


AÇÃO DE ALIMENTOS – LIMITES DO PEDIDO E DA COISA JULGADA – CPC, ARTIGOS 128 E 469, III – Restringindo o autor seu pedido exclusivamente à pretensão alimentar, o reconhecimento da paternidade constitui questão prejudicial, não compreendida na coisa julgada.  A determinação de que desde logo se proceda a alterações no registro civil afronta o artigo 128 do CPC.  Hipótese em que não incide o disposto no § único do artigo 4º da lei 883/49.  (STJ – REsp  1643 – RJ – 3ª T. – Rel. Min. Eduardo Ribeiro – DJU 09.04.90)


COISA JULGADA – ALCANCE – Os efeitos da coisa julgada alcançam, somente, a pretensão e objetos do processo onde este fenômeno ocorreu. (STJ – REsp 51.159-3 – GO – 1ª T. – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJU 06.03.95)


E o Supremo Tribunal Federal, por seu ilustre Relator, Min. Marco Aurélio, assim decidiu:


COISA JULGADA – CARACTERIZAÇÃO – FUNDAMENTOS CONTIDOS NO TÍTULO JUDICIAL – A teor do artigo 469 do Código de Processo Civil, os motivos e a verdade dos fatos estabelecidos como fundamento da sentença não fazem coisa julgada, o mesmo ocorrendo quanto ao exame de questão prejudicial, decidida incidentemente no processo, exceção aberta se a hipótese tem enquadramento no artigo 470 do referido Diploma.  A coisa julgada pressupõe, ainda, a tríplice identidade – de pessoas, de causa de pedir e pedido.  Não há falar no fenômeno quando diversas as demandas reveladoras dos títulos em cotejo, quer em relação às partes, quer no tocante às causas de pedir e aos pedidos.  (STF – AR 1.343-3 – SC – TP – Rel.  Min.  Marco Aurélio – DJU 26.03.93)


No mais, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em irretocável julgado, perfeitamente aplicável in casu, asseverou que:


“A declaração incidental de inconstitucionalidade na ação civil pública não produz coisa julgada. É que de acordo com o art. 469, do CPC, não fazem coisa julgada os motivos, ainda que importantes para determinar a parte dispositiva da sentença, nem as questões prejudiciais, decididas incidentalmente no processo.” (Ac. un. da 3ª Câm. do TJSC de 03.03.1994, na Ap 43.723, rel. Des. Amaral e Silva).


Vislumbra-se, portanto, que a tese da impossibilidade de argüição de inconstitucionalidade de lei em sede de ação civil pública está escorreita, não merecendo qualquer reparo. Porém, não menos certo é que o fato de ser cogitada como questão prejudicial naquela ação não terá, tal entendimento, as qualidades de imutabilidade e indiscutibilidade, próprias dos assuntos que estão sob o manto da coisa julgada.


Destarte, é de se analisar com mais acuidade o problema da inconstitucionalidade em seara de ação civil pública para que não se cometa o equívoco de negar vigência a norma federal (art. 469, II e III do CPC).


3. Da legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogêneos


Constitui assunto tormentoso para os profissionais do Direito a legitimidade ativa do Ministério Público para manejar a ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos.


A jurisprudência ainda é vacilante no assunto.


Porém, tal controvérsia ainda constitui celeuma precipuamente em virtude do dado histórico que alguns ainda deslembram de cogitar quando empolgam a questão.


O Direito pátrio, bem como os demais no mundo ocidental, ainda está demasiadamente contaminado com os postulados liberais criados por ocasião da Revolução Francesa de 1789.


Naquela época, primou-se por dar ênfase ao indivíduo enquanto indivíduo, na onda da corrente liberal-burguesa onde se pregava a absoluta liberdade de iniciativa do cidadão.


Por conseqüência, tão-só o titular do interesse conflituoso – de outro lado o titular do dever – poderia propor a demanda – e ser demandado – cabível no caso concreto para a salvaguarda do seu interesse ali em conflituosidade.


Como adverte Celso Agrícola Barbi:


“Teoricamente, pode-se admitir um sistema em que, como regra geral, qualquer pessoa possa vir a juízo reclamar direito de outrem, apesar de, pessoalmente, não ter interesse algum nesse direito. Mas, mesmo nos países socialistas, em que o princípio individualista deixou de prevalecer, a regra geral ainda é a firmada em nosso País, se bem que as exceções sejam mais numerosas”. (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Ed. Forense, 10ª ed., p. 78)


Tal ideologia chegou no nosso ordenamento jurídico, hodiernamente, pelo Estatuto Processual Civil que em seu artigo 6º preceitua – no mesmo sentido o art. 81 do CPC italiano e art. 26 do CPC de Portugal:


Art. – Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.


Nada obstante, força é admitir o acerto das palavras do Prof. Rodolfo de Camargo Mancuso segundo as quais:


“Em primeiro lugar, cabe lembrar a concepção ‘clássica’, pela qual o processo civil é o receptáculo natural das controvérsias intersubjetivas, sendo ele, em princípio, refratário a servir como veículo de litígios supraindividuais,…. Nessa concepção tradicional, entende-se que os conflitos que desbordam a esfera individual devem ser tratados a nível pré-processual, em sede legislativa ou da administração pública… Em suma, a formação de uma lide exigiria a atualidade e concreção da controvérsia entre as partes.


“O processo civil, sob essa óptica, aparece como um instrumento a serviço dos direitos subjetivos, conquanto estes possam ser exercidos individualmente (ações individuais) ou coletivamente (ações coletivas, stricto sensu); neste último caso, o conteúdo e a finalidade da ação continuam a ser privados (é o interesse dos indivíduos reunidos em grupo que está em jogo); apenas o exercício, a forma, é que é coletiva. O problema que se põe para o processo civil, como se verá adiante, é o da admissibilidade das ações propriamente coletivas, isto é, aquelas cuja finalidade é um interesse social, público, quer sejam veiculadas por um indivíduo ou por um grupo”. (Cf.: Interesses Difusos, Conceito e Legitimação para agir, ed. RT, 3ª edição, p. 120/121).


Essa aguda observação faz-nos crer que, a par da legitimidade para a causa tradicional, ordinária, outra, nos tempos atuais, deverá surgir para que não fique no limbo jurídico interesses e direitos que, face à violação, resultariam na inércia de seus titulares exatamente por falta de titularidade para a propositura da demanda enquanto indivíduos, todavia, sob o aspecto social, estariam aptos à mesma, de per si ou representados por organismos intermediários – entre o Estado e o indivíduo – privados, v.g., associações, ou, ainda, por órgãos do próprio Estado, defensores dos referidos interesses, e. g., Ministério Público.


Avulta, não obstante, o punctum dolens.


Este cinge-se ao fato de ter legitimidade ativa para a causa ou não o Ministério Público quando a propositura desta tiver por escopo a defesa de interesses individuais homogêneos.


Pensamos que a resposta positiva se impõe.


O preceptivo sob o número 81 do Código de Defesa do Consumidor define interesses individuais homogêneos, ipsis literis:


Art. 81 – A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único – A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I, II – omissis..

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Pois bem.

As argumentações que abrenunciam referida legitimidade ministerial vicejam da inconstitucionalidade existente que macula o inciso III, do parágrafo único do artigo 81 do codex transcrito fulcrada no fato de que tais interesses não estariam entre as atribuições destinadas ao Parquet, ao revés, estas cingir-se-iam aos interesses sociais e individuais indisponíveis.


Estamos que o equívoco é patente.


Com vantagem, a Profª. Ada Pellegrini Grinover ilide a verborragia doutrinária, que permitimo-nos transcrever, verbis:


“Ora, em primeiro lugar cumpre notar que a Constituição de 1988, anterior ao CDC, evidentemente não poderia aludir, no art. 129, III, à categoria dos interesses individuais homogêneos, que só viria a ser criada pelo Código. Mas na dicção constitucional, a ser tomada em sentido amplo, segundo as regras da interpretação extensiva (quando o legislador diz menos de quanto quis), enquadra-se comodamente a categoria dos interesses individuais, quando coletivamente tratados.


“Em segundo lugar, a doutrina, internacional e nacional, já deixou claro que a tutela de direitos transindividuais não significa propriamente defesa de interesse público, nem de interesses privados, pois os interesses privados são vistos e tratados em sua dimensão social e coletiva, sendo de grande importância política a solução jurisdicional de conflitos de massa.


“Assim, foi exatamente a relevância social da tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais homogêneos que levou o legislador ordinário a conferir ao MP e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa modalidade de demanda, mesmo em se tratando de interesses ou direitos disponíveis. Em conformidade, aliás, com a própria Constituição, que permite a atribuição de outras funções ao MP, desde que compatíveis com sua finalidade (art. 129, IX); e a dimensão comunitária das demandas coletivas, qualquer que seja seu objeto, insere-as sem dúvida na tutela dos interesses sociais referidos no art. 127 da Constituição.


“Apesar de alguma divergência, a linha preponderante é no sentido do reconhecimento da legitimação, havendo casos em que esta é negada não em face de sua eventual inconstitucionalidade, mas porque se trata, na espécie concreta, de pequeno número de interessados, estritamente definido”. (Cf.: Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Comentado pelos Autores do Anteprojeto, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe, Nelson Nery Júnior e Zelmo Denari, ed. Forense Universitária, 4ª edição, p.545/546).


Com efeito, o agasalho constitucional para a propositura de ação civil pública que visa a defesa dos interesses individuais homogêneos reside no artigo 127, caput, quando regra que ao Ministério Público incumbe a defesa dos interesses sociais.


Ao defini-lo, com precisão incomparável, assevera Rodolfo Mancuso:


“Interesse social, no sentido amplo que ora nos concerne, é o interesse que consulta à maioria da sociedade civil: o interesse que reflete o que esta sociedade entende por ‘bem comum’; o anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e bens mais elevados, os quais essa sociedade, espontaneamente, escolheu como sendo os mais relevantes. Tomando-se o adjetivo ‘coletivo’ num sentido amplo, poder-se-ia dizer que o interesse social equivale ao exercício coletivo de interesses coletivos. (In Interesses Difusos, Conceito e legitimação para agir, ed. RT, 1994, p. 25)


Assim, faz-se mister divisar, em cada caso concreto, a importância social da demanda, se coaduna-se com as aspirações da sociedade ou da comunidade na qual cingir-se-á o decreto judicial.


Deveras, lícito é afirmar que não são quaisquer interesses individuais homogêneos que poderão ser defendidos através de ações coletivas, não legitimando, por conseguinte, as associações, bem como o Ministério Público.


É necessário perquirir sobre o cunho social do objeto da demanda, para, só então, definirmos se há legitimidade extraordinária ou anômala daqueles entes intermediários da sociedade.


A celeuma posta à apreciação não refoge desta imprescindível análise.


Ao divisar o objeto litigioso, cristalino se mostra o interesse social que empolga a legitimação extraordinária invectivada, seja do Parquet, seja de associação regularmente constituída.


Não é crível, destarte, que a cobrança de “taxa de iluminação pública” ou outra qualquer, cujas leis instituidoras estarão eivadas de inconstitucionalidade e ilegalidade, não possuam, por parte dos munícipes, atenção e repulsa em sua cobrança.


Ao revés, nesse embate, instar salientar que todos os consumidores dos serviços potencializados pelo Poder Público têm direito público subjetivo de não ver seu patrimônio particular diminuído por cobranças que ficam à margem da lei, mormente da Constituição. Afinal, até mesmo os Poderes constituídos, de todas as esferas de governo, têm o dever de respeitar a Carta Magna.


Nunca é despiciendo lembrar as doces palavras de Helly Lopes Meirelles ao fazer dilação sobre a ação popular, que tem exato cabimento in casu, verbis: “Reconhece-se, assim, que todo cidadão tem direito subjetivo ao governo honesto”. (In Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, “Habeas Data”, 15ª edição, ed. Malheiros, p. 92)


E, no Estado Democrático de Direito, governo honesto não é somente aquele que não lesa o patrimônio público no intuito de locupletamento privado.


Certo é afirmar que também é aquele que se abstém de captar na sociedade recursos ilegais, inconstitucionais, ilegítimos, mesmo que com escopo sadio, porquanto é princípio de Direito Administrativo que o administrador público somente procede em estrita obediência à lei.


Aqui, então, cabe a pergunta: não possui relevância social o estrito cumprimento pelo Poder Público da Constituição Federal e das normas jurídicas em geral, ou aquela não passa de verborragia do legislador constituinte?


Destarte, à símile do que ocorre com a class action do direito norte americano, para haver legitimação dos entes previamente destinados a tal desiderato caberá perquirir sobre a relevância social dos interesses ou direitos individuais homogêneos postos em juízo.


4. Da inconstitucionalidade do raciocínio inverso


Poder-se-ia asseverar, lado outro, que inconstitucional seria o entendimento que negasse tal legitimidade ativa ao Parquet ou as respectivas associações.


Explico.


A Constituição Federal de 1988 tem profundo cunho socializante, já que em diversos dispositivos avulta o caráter social de seus comandos, programáticos ou não, de seus princípios, não olvidando, por óbvio, da iniciativa privada, base do capitalismo liberal-burguês que a Carta Política abraçou.


Tal enfoque, na época de sua feitura, ficou evidenciado sobremaneira, ganhando a Carta o apelido de “Constituição Cidadã”.


De efeito, acolitando as palavras do Min. Carlos Mário da Silva Velloso, podemos entender que constitui direito adquirido da sociedade ter seus representantes judiciais para a defesa dos seus interesses individuais homogêneos, condicionada, é claro, à relevância social de referidos interesses, tendo em vista que a Constituição exsurgiu no bojo de movimentos sociais impacientes com os desmandos praticados pelos militares presidentes.


Eis as palavras do Ministro, verbis:


“O povo é, então, convocado a eleger uma assembléia constituinte. Num caso ou noutro – movimento revolucionário ou convocação –, uma idéia de direito está subjacente, ou uma idéia de direito liberal, por exemplo, ou uma idéia de direito socialista. Evidentemente que, se uma sociedade faz opção pelo socialismo, e esta é a idéia subjacente ao movimento revolucionário ou à convocação, elaborada a constituição em tais termos, ninguém poderá, com base nos seus títulos de propriedade, opor à nova constituição a alegação de direito adquirido.


“Todavia, se a idéia de direito que fez eclodir o movimento revolucionário, ou que resultou na convocação, é uma idéia democrática-liberal, ela, a constituição, produto do poder constituinte que veio no bojo desse movimento ou dessa convocação, está limitada por essa idéia. É dizer, exemplificando: se uma constituição que vem no bojo de um movimento liberal, que proclama o liberalismo político, impõe a um grupo de indivíduos o confisco, a disposição constitucional que o institui é ilegítima.


“É claro que essas questões, que são de teoria geral da constituição, sem nenhum embasamento de direito positivo, somente serão bem compreendidas num Estado cujo povo, cujos líderes e cujos juízes têm consciência do que seja uma constituição. Se isto não ocorre, vira adágio o que não passa de slogan, o de que ‘não há direito adquirido contra a constituição’”. (grifei) (In Reforma Constitucional, Cláusulas Pétreas, especialmente a dos Direitos Fundamentais, e a Reforma Tributária, artigo inserido na obra Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba, 2, Direito Administrativo e Constitucional, organizador Celso Antônio Bandeira de Mello, 1997, ed. Malheiros, p.165/166)


Em compêndio, restando, portanto, provado o cunho social da demanda posta em juízo, satisfeita a condição da legitimidade anômala.


Mas não é só.


Dispõe o artigo 82 e inciso I do Código de Defesa do Consumidor que:


Art. 82 – Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I – o Ministério Público;

II, III, IV – omissis

Neste passo, temos que, por força de disposição expressa de lei federal, o Parquet possui legitimidade para a propositura de ações coletivas na defesa dos interesses individuais homogêneos (art. 81, parágrafo único, III do CDC).

Pois bem.


Qualquer interpretação que deixe de reconhecer legitimidade à Instituição do Ministério Público deverá, obrigatoriamente, reconhecer a inconstitucionalidade do preceptivo transcrito, ou seja, sua incompatibilidade com a Carta Política, posto que tal requisito para o exercício do direito de ação emana daquele dispositivo legal.


Sem embargo, e como visto no início desta pesquisa, não é deferido ao julgador reconhecer ou declarar a inconstitucionalidade de lei em sede de ação civil pública porquanto a decisão aí proferida terá efeito erga omnes.


Nesta linha de raciocínio, os próprios arestos do egrégio Superior Tribunal de Justiça asseveram não ser permitido a declaração de inconstitucionalidade de lei na ação civil pública.


Ora, o que fazem, então, os tribunais que não reconhecem a legitimidade do Parquet para a propositura de ação civil pública na defesa de interesses individuais homogêneos senão a declaração de inconstitucionalidade do artigo 82, I e parágrafo único do artigo 81, todos do CDC, já que esta, repise-se, advém daquele dispositivo?


Estariam tais tribunais usurpando competência privativa do Supremo Tribunal Federal, qual seja, a de declarar inconstitucionalidade de lei com efeito erga omnes?


A resposta afirmativa novamente se impõe.


Ao não reconhecer a legitimidade para a propositura de ações coletivas na defesa de interesses individuais homogêneos às associações e ao Ministério Público nada mais fazem senão reconhecer a inconstitucionalidade dos preceptivos do Código de Defesa do Consumidor que dão legitimidade para a causa a estes entes, na seara de ações que possuem decisões – também por força de lei – com efeitos erga omnes.


Dessarte, como afirmado no início deste trabalho, é vedado, face ao efeito que possuem as decisões aí proferidas – o reconhecimento ou a declaração de inconstitucionalidade de lei em ações coletivas ou ações civis públicas.


5. Da taxa de iluminação pública como relação de consumo


Diversos arestos, bem como parte da doutrina, têm propugnado pela distinção existente entre os conceitos de contribuinte e consumidor.


Assim, adverte José Geraldo Brito Filomeno:


“Quando aqui se tratou do conceito de fornecedor, ficou consignado que também o Poder Público, enquanto produtor de bens ou prestador de serviços, remunerados não mediante a atividade tributária em geral (impostos, taxas e contribuições de melhoria), mas por tarifas ou ‘preços públicos’, se sujeitará às normas ora estatuídas, em todos os sentidos e aspectos versados pelos dispositivos do novo Código do Consumidor, sendo, aliás, categórico o seu art. 22”.(Cf.: Código Brasileiro….., p. 87/88).


Tal distinção merece mitigação, no nosso entender, no tocante à taxa de iluminação pública.


Senão vejamos.


A Constituição Federal, em seu artigo 145, II, afirma que:


Art. 145 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

I – omissis….;

II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;

E o Código Tributário Nacional, em seu artigo 77, reafirma:

Art. 77 – As taxas cobradas pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal ou pelos municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.


Em ambos dispositivos fica explícito que a taxa é uma contraprestação paga pelo consumidor-contribuinte pelo exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis.


No mesmo diapasão, o Código de Defesa do Consumidor determina que:


Art. 3º – Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.


O olhar perfunctório sobre o dispositivo leva o intérprete a entender que o Poder Público, quando vendedor de produtos ou prestador de serviços, traduz-se em fornecedor para o CDC.


Na exata observação do doutrinador citado, a “taxa” de iluminação pública não constitui, às escâncaras, verdadeiramente uma taxa, posto que, e aí reside sua ilegalidade, não é serviço público específico e divisível.


Tal tese tem amparo na maestria de Sacha Calmon Navarro Coêlho, verbis:


“O nosso posicionamento já foi antecipado. A nós interessa o regime jurídico adotado pelo legislador com escora, é claro, constitucional. Assim:

a) quando o Estado exerce poder de polícia é de taxa e só dela que se pode cogitar;

b) quando o Estado diretamente presta serviço público stricto sensu, o caso é, também, de taxa;

c) quando o Estado, porém, engendra instrumentalidades, para em regime de Direito Privado, embora sob concessão, prestar serviços de utilidades tais como fornecimento de gás, luz, transporte, energia, telefonia etc. (atividade econômica), admitimos em casos tais a adoção do regime de preços. (grifei) (In Curso de Direito Tributário Brasileiro, Ed. Forense, 1999, p. 417)

“Por outro lado, considera-se específico o serviço que pode ser destacado em unidades autônomas para a sua prestação, e divisível o que suscetível de utilização, separadamente, por parte de cada usuário. Não pressupõe a cobrança de taxa a prestação de serviços em caráter geral….” (grifei) (Cf.: Manual de Direito Tributário, Adilson Rodrigues Pires, Ed. Forense, 4ª edição, p. 26)

Destarte, tratando-se de adoção de métodos para o fornecimento de energia elétrica e não sendo a contraprestação proveniente de atividade pública divisível, a “taxa” de iluminação pública não passa de mero preço público em cujas relações jurídicas incide as normas do Código de Defesa do Consumidor.

Neste sentido, já houve pronunciamento do STJ:


TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA – ILEGALIDADE – É ilegal a cobrança de taxa em razão da prestação do serviço de iluminação pública, por seu caráter genérico e indivisível, prestado à coletividade como um todo, sem benefício direto para determinado contribuinte.  (STJ – REsp 38.186 – RJ – 2ª T – Rel. Min. Peçanha Martins – DJU 24.03.97)


6. Conclusão

Por conclusão, podemos vislumbrar que, no tocante à taxa de iluminação pública, não se tratando de relações jurídicas tributárias, e, sim, de relações de consumo, ante a sua descaracterização como espécie de tributo, incidente o Código de Defesa do Consumidor.


No que concerne a legitimidade do Ministério Público, assim como das associações, para a propositura de ações coletivas na defesa de interesses individuais homogêneos, da mesma forma, havendo relevância social na demanda, legítimo o Ministério Público para aviar ações pertinentes para a defesa de tais interesses posto que espécie de interesses sociais.


Mesmo que configurando-se inconstitucional o pedido de inconstitucionalidade de lei em sede de ação civil pública, nada obsta a sua argüição como mera causa de pedir ou questão prejudicial, porquanto tais matéria não estão sob o manto da coisa julgada.


A outro giro, não posso olvidar um aspecto fundamental que se extrai desta pesquisa.


A despeito do fato em si do não reconhecimento de legitimidade ao Parquet para a defesa dos interesses individuais homogêneos já constituir gravame social desmesurado, importa vislumbrar que o entendimento que leva à extinção do processo por faltar requisito para o exercício do direito de ação – legitimatio ad causam – estará violando, na mesma medida, o direito de um efetivo acesso à justiça, tema tantas vezes propugnado pelos operadores do Direito.


Será que não chegou a hora de enxergarmos o lado social do Direito para que a sociedade – diretamente ou através de instituições constitucionalmente previstas – tenha um acesso efetivo à Justiça?


À consideração dos doutos.


7. Bibliografia

CALMON DE PASSOS, José Joaquim – Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III, Forense, 8ª edição, 1998.

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MANCUSO, Rodolfo de Camargo – Interesses Difusos, Conceito e Legitimação para Agir, Revista dos Tribunais, 3ª edição, 1994.

CAPPELLETTI, Mauro e Garth, Bryant – Acesso à Justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, trad. Ellen Gracie Northfleet.

GRINOVER, Ada Pellegrini, Vasconcellos e Benjamin, Antônio Herman, Fink, Daniel Roberto, Filomeno, José Geraldo Brito, Watanabe, Kazuo, Nery Júnior, Nelson, Denari, Zelmo – Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, comentado pelos Autores do anteprojeto, Forense Universitária, 4ª edição, 1995.

MEIRELLES, Hely Lopes – Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e “Habeas Data”, Malheiros Editores, 15ª edição, 1994.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva – Reforma Constitucional, Cláusulas Pétreas, especialmente a dos Direitos Fundamentais, e a Reforma Tributária, artigo publicado em Direito Administrativo e Constitucional, estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, 2, Bandeira de Mello, Celso Antônio (organizador), Malheiros Editores, 1997.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro – Curso de Direito Tributário Brasileiro, Forense, 1ª edição, 1999.

PIRES, Adilson Rodrigues – Manual de Direito Tributário, Forense, 4ª edição, 1992.

BASTOS, Celso Ribeiro – Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 18ª edição, 1997.

SOARES, Orlando – Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil, Forense, 9ª edição, 1998.


Informações Sobre o Autor

Renato Franco de Almeida

Promotor de Justiça. Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Membro da Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Direito. Membro do Conselho Editorial da Revista De Jure do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Editorial do periódico MPMG Jurídico. Professor de Graduação e Pós-Graduação lato sensu. Autor do livro Constituição e Políticas Econômicas na Jurisdição Constitucional


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