O poder discricionário do juiz

Resumo: O presente artigo busca analisar o novo inciso IV incluído no artigo 139 do Código de Processo Civil, que dispõe sobre o poder discricionário dos Juízes, visando discutir a eficácia ou não de sua aplicabilidade no caso concreto e finalidade prática. Referido inciso autoriza o juiz da causa a determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de uma ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto a prestação pecuniária.    

Palavras-chave: Poder discricionário. Medidas indutivas. Coercitivas. Mandamentais. sub-rogatórias. Novo Código de Processo Civil.

1. INTRODUÇÃO

O novo inciso IV incluído no artigo 139 do Código de Processo Civil tem causado grande polêmica ao conceder aos Juízes poderes para determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para fazer com que se cumpra uma ordem judicial.

Assim, a simples aplicação do disposto neste artigo pode desprezar o texto Constitucional, nossa Lei Maior.

Vejamos o artigo 125 no Código de processo Civil de 1973 (atual 139):

“Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe:

I – assegurar às partes igualdade de tratamento;

II – velar pela rápida solução do litígio;

III – prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça;

IV – tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes.”

 Agora, passemos à leitura do artigo 139 do Novo Código de Processo Civil, onde destacamos o inciso IV, tema deste artigo:

“Art. 139  O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:

I – assegurar às partes igualdade de tratamento;

II – velar pela duração razoável do processo;

III – prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias;

IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

V – promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais;

VI – dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito;

VII – exercer o poder de polícia, requisitando, quando necessário, força policial, além da segurança interna dos fóruns e tribunais;

VIII – determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso;

IX – determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais;

X – quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, e o art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva.

Parágrafo único.  A dilação de prazos prevista no inciso VI somente pode ser determinada antes de encerrado o prazo regular.”

Como podemos ver, com as modificações contidas na nova lei de 2015, muitos incisos foram acrescidos ao antigo art. 125, atual 139. Dentre esses novos acréscimos, nosso objeto de estudo será somente o inciso IV, que concede amplos poderes ao juízo para fazer cumprir uma ordem judicial.

Concluindo, ao final, veremos que essa autonomia dos juízes deverá ser aplicada com observância da Constituição Federal, para que não haja discrepâncias e abusos.

2. DESENVOLVIMENTO

Devido ao grande número de inadimplência e ao fato de o exequente não conseguir a satisfação do seu crédito, não sendo as medidas de apoio satisfatórias, tem havido por parte dos credores pedidos como os de apreensão do passaporte e da carteira nacional de habilitação do executado, proibição de participar de concurso público ou de licitações públicas, bloqueio de cartões de crédito, proibição de a pessoa jurídica contratar novos funcionários, dentre outros, cuja finalidade é a de funcionarem como um meio de obrigar os devedores ao pagamento de seus débitos.

Essa novidade no nosso Ordenamento Jurídico, que ampliou os poderes dos juízes em casos de condenação a pagamento em dinheiro, ou seja, prestação pecuniária, tem causado discussão e polêmica por não se mostrar eficaz no caso concreto, sendo que muitos dos pedidos têm sido rejeitados pelos Juízes de Primeiro Grau, com decisões confirmadas em Segunda Instância, ou acolhidos em Primeira Instância e, objeto de recurso, negados em Segunda Instância.

Sobre o tema, vejamos:

“Agravo de instrumento Ação de execução decorrente de contrato de prestação de serviços educacionais Indeferimento de pedido de suspensão da CNH e apreensão de passaporte Manutenção – Coercitividade que não assegura o cumprimento da obrigação ora discutida. O deferimento da suspensão da CNH do executado ou a apreensão de seu passaporte são medidas coercitivas que não asseguram o cumprimento da obrigação ora discutida. Em que pese a nova sistemática trazida pelo art. 139, IV, do CPC/2015, deve-se considerar que a base estrutural do ordenamento jurídico é a Constituição Federal. Agravo desprovido.” (TJSP;  Agravo de Instrumento 2011281-26.2017.8.26.0000; Relator (a): Lino Machado; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/04/2017; Data de Registro: 05/05/2017).

“Habeas corpus'  Ação de execução por quantia certa – Decisão que determinou a apreensão do passaporte e a suspensão da CNH do executado, até que efetue o pagamento do débito exequendo, fundamento no art. 139, IV, do NCPC – Remédio constitucional conhecido e liminar concedida  Medidas impostas que restringem a liberdade pessoal e o direito de locomoção do paciente  Inteligência do art. 5º, XV, da CF – Limites da responsabilidade patrimonial do devedor que se mantêm circunscritos ao comando do art. 789, do NCPC  Impossibilidade de se impor medidas que extrapolem os limites da razoabilidade e da PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO proporcionalidade. Ação procedente para conceder a ordem” (TJSP; Habeas Corpus 2183713-85.2016.8.26.0000; Relator (a): Marcos Ramos; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XI – Pinheiros – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/03/2017; Data de Registro: 12/04/2017).

“AGRAVO DE INSTRUMENTO  Execução por título extrajudicial  Indeferimento de medidas constritivas requeridas pela exequente com base no poder do juiz de determinar providências coercitivas a fim de assegurar o cumprimento da ordem judicial  Alegado cabimento, com base no disposto no art. 139, IV, do CPC, de suspensão e apreensão de passaporte e de CNH, bloqueio de todos os cartões de crédito, bloqueio permanente de todos os ativos financeiros futuros nas contas bancárias dos devedores e indisponibilidade de bens imóveis Inadmissibilidade, entretanto, de medidas que atentam contra princípios constitucionais relativos à dignidade da pessoa humana e contrárias, ainda, à legalidade e razoabilidade do exercício do direito de execução do crédito  Possibilidade, apenas, de emissão de ordem de indisponibilidade de bens por meio do sistema operado pela CNIB – Central de Indisponibilidade de Bens   Recurso provido em parte apenas para este fim.” (Relator(a): Correia Lima; Comarca: Diadema; Órgão julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 26/06/2017; Data de registro: 28/06/2017).

“Agravo de instrumento. Ação civil pública. Execução de título extrajudicial. Apreensão da CNH e do passaporte do executado, como meio de compeli-lo ao pagamento do débito. Art. 139, IV do CPC. PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO Efetividade do processo que deve observar os limites da proporcionalidade e razoabilidade. Medidas extremas que não garantem, no caso, o adimplemento do débito. Agravo não provido”. (Relator(a): Carlos Violante; Comarca: Caraguatatuba; Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 23/06/2017; Data de registro: 23/06/2017).

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. ATIPICIDADE DOS MEIOS EXECUTIVOS. BLOQUEIO PERMANENTE DE CONTAS BANCÁRIAS, PASSAPORTE, CNH E CARTÕES DE CRÉDITO. IMPOSSIBILIDADE. Ausência de proporcionalidade em sentido estrito. Respeito à dignidade da pessoa humana e observância ao Estatuto do Patrimônio Mínimo. O princípio da proporcionalidade deve ser observado. Ainda que o preceito deontológico determine que todo cidadão arque com as suas dívidas, a pretensão à atipicidade dos meios executivos não pode ser deferida porque implicaria em interpretação desarrazoada. Ademais, por estabelecer, ainda que por via oblíqua, restrição significativa à liberdade de ir e vir da agravada, o indeferimento das medidas pleiteadas é de rigor. RECURSO NÃO PROVIDO.” (Relator(a): Rosangela Telles; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 21/06/2017; Data de registro: 21/06/2017)

Como podemos verificar, os julgados acima foram unânimes no sentido de não ser dado provimento aos recursos, uma vez que as medidas requeridas foram consideradas abusivas.

Nos termos do artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal, é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens, ou seja, segundo o dispositivo constitucional, o judiciário não pode restringir o direito de ir e vir, suspendendo a CNH ou mesmo proibindo viagens, como forma de constranger os devedores para o pagamento do débito, sendo que tais medidas mostram-se absolutamente ilegais e incompatíveis com o ordenamento jurídico, não podendo haver autorização para a violação dos direitos fundamentais da pessoa humana, excetuando-se as situações extraordinárias, como dívidas decorrentes de alimentos, especificamente previstas na Constituição.

Quanto ao direito de ir e vir, importante salientar que, em 09/09/2016, foi proferida decisão em sede de Habeas Corpus (HC 2183713-85.2016.8.26.0000) prolatada pelo Exmo. Des. Marcos Ramos, da 30ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que concedeu liminar para cassar a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação do executado, bem como a apreensão de seu passaporte, até o pagamento do débito exequendo. Entendeu que, em que pese a nova sistemática trazida pelo art. 139, IV, do CPC, deve-se considerar que a base estrutural do ordenamento jurídico é a Constituição Federal, que em seu art. 5º, XV, consagra o direito de ir e vir.

O próprio Código de Processo Civil, em seu artigo  8º, dispõe que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência” .

Desta forma, as medidas para satisfação do crédito do exequente devem acontecer com a invasão do patrimônio do executado, através de bloqueio de valores, bens e imóveis, pelos sistemas BACENJUD, RENAJUD e ARISP, não podendo ser permitida medidas restritivas ilegais e abusivas.

O poder dos Juízes também é limitado pela CF, não podendo haver interpretação autorizando o exercício ilimitado dos poderes.

Assim, com essa liberdade de interpretação que foi dada com o novo Código de Processo Civil, quando a lei diz “todas” as medidas, deveriam ser excluídas as  medidas que têm apenas o caráter punitivo do devedor, com intuito de dificultar sua vida, sem alcançar o resultado pretendido, que é a satisfação do crédito.

Por outro lado, o tema tem criado uma grande discussão entre os Desembargadores do Tribunal de Justiça, havendo diversos julgados favoráveis a essas medidas, como veremos a seguir:

 “AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação civil pública em fase de cumprimento de sentença. Pretensão ministerial de apreensão da CNH e passaporte do executado, com a finalidade de compeli-lo ao pagamento do débito. Admissibilidade Poder geral de cautela. Inteligência do art. 139, inciso IV, do NCPC Medida coercitiva excepcional, que se mostra razoável e justificável no caso e não viola o direito de ir e vir do devedor – Reforma da r. decisão – Recurso provido, com determinação.” (AI nº 2184837-06.2016.8.26.0000, Rel. Des. Sílvia Meirelles, j. em 20.03.2017);

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação Civil Pública por improbidade administrativa. Sentença condenatória em fase de execução. Frustração no cumprimento da obrigação pecuniária. Determinada a suspensão da CNH do executado até o pagamento da dívida, com base na regra trazida pelo art. 139, IV, do CPC. Cabimento da medida. Utilizados os meios típicos de execução, como penhora online, bloqueio de veículos e constatação de bens na residência do devedor, tendo sido os resultados absolutamente infrutíferos. Ademais, respeitados os princípios norteadores do direito PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO Agravo de Instrumento nº 2098030-46.2017.8.26.0000 Voto nº 20977 – Nhandeara 6 processual, como a razoabilidade, proporcionalidade e menor onerosidade da execução. Necessário observar o princípio da efetividade do processo. Por fim, descabido falar em irretroatividade do art. 139, IV. Norma aplicável aos processos em curso, por força do princípio 'tempus regit actum'. Não demonstrada irregularidade ou arbitrariedade na providência determinada pelo D. Juízo de primeiro grau. Decisão mantida. Recurso não provido.” (AI nº 2251477-88.2016.8.26.0000, Rel. Des. Evaristo dos Santos, j. em 22.05.2017);

Sem desrespeitar a Constituição Federal, a aplicação do artigo 139, IV, do CPC, deve ser feita com cautela, examinando-se caso a caso, e somente depois de terem sido aplicadas as medidas típicas (bloqueios de valores e bens) sem o alcance da satisfação do crédito. Assim, no caso de restar provado que o devedor não tenha realmente patrimônio, tal medida não deverá ser aplicada, pois não logrará o real êxito pretendido.

É verdadeiro que a obrigação de pagar quantia certa deve ser cumprida com os bens do devedor (art. 789, CPC/2015; art. 391, Código Civil), com bloqueio de valores e bens, não podendo atingir a pessoa do devedor, observando-se sempre, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

No entanto, podemos observar que, no cotidiano Judiciário, os processos de execução, ou em fase de cumprimento de sentença, arrastam-se por anos e anos, sem que o exequente consiga reaver o seu crédito. Há casos em que os exequentes encontram grandes dificuldades em encontrar bens, sendo que todas as pesquisas restam negativas, e, em alguns desses casos, de fato os executados usam de subterfúgios para evitar o bloqueio de bens e pagamento de débitos.

Nestes casos específicos, não restará outra alternativa ao exequente, a não ser valer-se do disposto no artigo em estudo, utilizando medidas indutivas para o cumprimento da obrigação, através de técnicas que atuem sobre a vontade do devedor, com o intuito de forçar e estimular o pagamento da quantia devida.

Neste sentido, o art. 536, CPC/2015, dispõe que

“No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente. § 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.”

Ou seja, mediante a análise do caso concreto, é dever do Poder Judiciário impor medidas mais duras, indiretas e coercitivas para estimular o devedor ao cumprimento da obrigação.

Inclusive por ser necessário considerar, também, o principio da dignidade da pessoa humana do credor, em um sistema no qual o devedor se furta a suas obrigações, deixando os credores em situação de desvantagem.

3. CONCLUSÃO

Conforme acima exposto, vimos que já existem vários julgados divergentes, no tocante à possível aplicação do disposto no artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, nos casos concretos, sendo que será necessário um posicionamento do Supremo Tribunal de Justiça acerca do assunto para haver um equilíbrio proporcional e razoável.

Não podemos deixar de lado a pessoa do credor, em um ordenamento jurídico em que se fala em uma “execução por meios menos gravosos ao devedor”, para evitar injustiças, potencializando-se a busca pela resolução da lide e o alcance do processo justo, dentro das possibilidades existentes.

     Assim, a nova medida interpretativa que foi dada pelo novo CPC, que tem por objeto compelir o devedor a efetuar o pagamento da sua dívida, deve ser aplicada sempre respeitando os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, e de forma concreta e fundamentada.

  Enfim, de tudo o que foi exposto é possível afirmar que a Jurisprudência ainda não é pacífica quanto à aplicabilidade do tema em estudo, tema que é ainda muito novo em nosso ordenamento jurídico.

 

Referências
Constituição Federal de 1988
Código de Processo Civil 2015
Julgados do Superior Tribunal de Justiça
Julgados do Tribunal de Justiça.

Informações Sobre os Autores

Joseval Martins Viana

Graduado em Letras e em Direito. Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Claudia Evelin Rocha Martins Antunes

Advogada, pós-graduanda em direito civil e processo civil pela faculdade Legale


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