O principio constitucional da Dignidade Humana como fundamento do estado contemporâneo

logo Âmbito Jurídico

Resumo: O artigo busca analisar o princípio da dignidade humana enquanto fundamento constitucional a balizar as relações sociais, diante da nova sociedade , cujos contornos alteram substancialmente a segurança jurídica. Analisa essa nova concepção constitucional e seus reflexos diante das atividades econômicas.


Palavras-chave: dignidade da pessoa humana – fundamento – sociedade de risco.


Abstract: This paper analyzes the principle of human dignity as the constitucional basis baliser social relations, given the new society whose contours substantially alter the legal certainty and this new constitutional conception and their impacts on the economic activities.


Keywords: human dignity – fundamentals – risk society


Sumário: 1.Introdução. 2. Conceito de dignidade da pessoa humana. 3. A dignidade da pessoa humana como princípio constitucional. 4. Contornos da sociedade pós-moderna. Uma sociedade de riscos. 5. O princípio da dignidade humana e os princípios gerais da atividade econômica na Constituição Brasileira. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO


O presente trabalho busca analisar a proteção jurídica – de mando constitucional – do princípio da dignidade da pessoa humana frente às transformações sociais e jurídicas, oriundas da nova ordem capitalista e às mudanças experimentadas pela sociedade pós-moderna.


Busca a reflexão de como se dá e como se apresenta, na atual conjuntura, a aplicação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana ou, como ensina SCHIAVI (2009), a efetiva proteção desse princípio, pois neste conceito mais amplo


 “…, a proteção da dignidade da pessoa humana envolve todos os aspectos da pessoa, seja no seu aspecto exterior – papéis que representa na sociedade, como função profissional, imagem, etc., como na sua individualidade – privacidade, intimidade (art. 5º. V e X, da CF), assim como ao fato de pertencer ao gênero humano, seu aspecto físico, sua etnia, bem como a proteção ao meio ambiente”.


Assim, o trabalho elenca, primeiramente, os padrões conceituais acerca da dignidade humana. Num enfoque inicial traz os conceitos do termo “pessoa” e, após, a dignidade humana, enquanto sua característica inerente .


Em seguida, trata da dignidade humana como princípio constitucional e sua extensão de aplicabilidade, no âmbito geral da Constituição Brasileira . O enfoque é a análise do direito à dignidade humana, com perpassar sobre outros comandos constitucionais.


Na sequência, traça alguns contornos da sociedade pós-moderna, retratada como sociedade de risco e busca as atuações desses contornos que possam estar servindo de elemento confrontador à efetivação da garantia constitucional.


Em encerramento, apresenta alguns dos princípios constitucionais econômicos, que em conformidade com o princípio da dignidade humana , tracem os parâmetros que possam servir de norte ao estudo mais aprofundado e extremamente necessário, para a efetiva aplicação do princípio protetivo constitucional, sem se olvidar de que para estas análises, vêm sendo desencadeadas discussões interdisciplinares, envolvendo outras ciências como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia e a Economia.


2. CONCEITO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


Antes de se buscar o conceito de dignidade da pessoa humana, é necessário incluir neste estudo referências acerca do próprio conceito de “pessoa”, cujas definições sofreram mutações, que acompanham o desenrolar histórico da participação do homem, ora como protagonista, ora como personagem secundário.


Na Antiguidade Clássica, o homem era considerado um animal político ou social. Na visão aristotélica, o “ser” estava associado à cidadania, ou seja, o homem não era objeto de análise individual e somente o fato de “pertencer à polis ” é que o legitimava a merecer eventual reconhecimento.


Contrapondo-se a essa idéia, vê-se surgir com o cristianismo o conceito de pessoa associado à idéia de “valor essencial”, que a legitimaria a ser possuidora de direitos subjetivos fundamentais e de dignidade. A idéia cristã era a de reforçar que, porquanto tenha sido o homem criado à imagem e semelhança de Deus, ele deveria ser o centro social; a partir dele é que deveriam ser geradas e criadas normas, que pudessem estabelecer sua convivência numa comunidade pacífica.


Com o Renascimento, existe uma recuperação dos ideais gregos, dando destaque ao sociocentrismo, atribuindo à sociedade o papel central em relação a todos os demais sistemas.


Na era moderna, a partir do século XV, os ideais antropocêntricos retomam o seu lugar, trazendo novamente ao papel protagonista o homem, a pessoa.


A idéia de “pessoa”, portanto, como portadora de direitos e obrigações, tem sua raiz na própria origem da palavra “persona”, que era a “máscara do ato do teatro”, como ensina FERRAZ (2006):


“O mesmo indivíduo representa vários papéis (no teatro antigo, pondo a máscara). A própria sociedade institucionaliza os papéis como condição de interação. Conhecemo-nos e interagimos, porque conhecemos os papéis assumíveis: o pai, o filho, o pagador de impostos, o motorista, o vendedor, o comerciante. Os papéis institucionalizados normativamente, no direito, ganham contornos certos e seguros. (…) O Estado confere papel às qualidades que o tornam consistente para o intercâmbio jurídico. Nesses termos, o que chamamos de pessoa nada mais é do que feixe de papéis institucionalizados”.


Nesse mesmo sentido, tem-se a lição de DINIZ (2005):


“Liga-se à pessoa a idéia de personalidade, que exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres. O novel Código Civil preferiu empregar o termo deveres, alerta Fiúza no relatório geral, por existirem deveres jurídicos diferentes da obrigação, como a sujeição nos direitos de vizinhança, o dever genérico de abstenção, os poderes-deveres e os deveres do direitos de família”.


Para NERY e NERY (2005), devem-se entender como sinônimas tanto a expressão pessoa natural quanto a pessoa física, e ambos os vocábulos devem ser utilizados para a necessária distinção do homem a outros titulares de direito (criados a partir de um processo artificial de ficção jurídica), como aqueles tratados no Título II , do Livro I, da Parte Geral do Código Civil.


A concepção da dignidade da pessoa humana sofreu um processo de racionalização e de laicização, sendo mantida entretanto, a noção fundamental de igualdade de todos os homens, como nos ensina SCHIAVI (2009). A dignidade da pessoa humana era considerada como “ a liberdade do ser humano de optar de acordo com a sua razão e agir conforme o seu entendimento e opção”. Também como se extrai das lições de Kant, cuja concepção de dignidade “parte da autonomia ética do ser humano, considerando esta (a autonomia) como fundamento da dignidade do homem”. além de sustentar que o ser humano (o indivíduo) não pode ser tratado – nem por ele próprio – como objeto. É com Kant que, de certo modo, se completa o processo de secularização da dignidade, que, de vez por todas, abandonou suas vestes sacrais.


Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, ensina SARLET (2006):


“O problema do significado que se pode hoje atribuir à dignidade da pessoa humana é que a idéia do valor intrínseco da pessoa humana deita raízes já no pensamento clássico e no ideário cristão. Muito embora não nos pareça correto, inclusive por faltar dados seguros quanto a este aspecto, reivindicar – no contexto das diversas religiões professadas pelo ser humano ao longo dos tempos – para a religião cristã a exclusividade e originalidade quanto à elaboração de uma concepção de dignidade da pessoa, o fato é que tanto no Antigo quanto no Novo Testamento podemos encontrar referências no sentido de que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, premissa da qual o cristianismo extraiu a conseqüência – lamentavelmente renegada por muito tempo por parte das instituições cristãs e seus integrantes (basta lembrar as crueldades praticadas pela ‘Santa Inquisição’) – de que o ser humano – e não apenas os cristãos – é dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento”.


E é também SARLET (2006) quem melhor traduz o conceito de dignidade humana:


“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano, que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.


Por esta razão , tem-se a dignidade humana como característica inerente às pessoas, que tem por objetivo colocá-las a salvo de qualquer ato arbitrário, seja qual for o agente e protegê-las de ausência de condições mínimas de sobrevivência. É da própria essência do ser humano ser dotado dessa condição e qualidade. Estar desprovido desse manto protetor destitui o ser humano da capacidade de subsistência e da convivência social.


3. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL


A dignidade da pessoa humana, como princípio constitucional, aparece prevista no artigo 1º., inciso III, da Carta Magna e, na esteira das modernas legislações, toma o papel de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil . Em diversos artigos, a Carta Magna referenda tal princípio como norteador do Estado Democrático de Direito, v.g. , ao tratar da proteção à vida, do direito à saúde, à moradia digna, garantindo a liberdade, a igualdade, o acesso à justiça, bem como quando trata do meio ambiente sustentável, capaz de atender às necessidades sociais presentes e futuras.


Tratada como direito fundamental, a dignidade da pessoa humana reflete um valor inestimável, porquanto subsume a aplicação e a interpretação de todas as demais normas legais ao respeito dessa garantia.


Os critérios que a elevam a patamar de direito fundamental podem ser entendidos como o da relevância, da elegibilidade, da consistência, da compatibilidade e da identificação. Em primeiro lugar, deve-se ter em conta que o elenco dos direitos fundamentais tem por escopo determinar o alcance social da norma estabelecida. Quanto mais reflexos na aldeia social, maior é o valor atribuído à norma.


Por outro lado, ainda que se tenha em mente atribuir-lhe graus de diferenciação entre um contexto legislativo e outro, a relevância da norma fundamental deve ser possível de se estabelecer como critério imponderável, norteador das demais normas infraconstitucionais.


A normativa constitucional brasileira seguiu, nesse diapasão, a legislação internacional – mormente a Carta das Nações Unidas. Não se ateve, assim, a simplesmente repetir o que continha a Carta, mas ampliou-lhe o alcance, atingindo um nível de consenso internacional, ao preocupar-se com a sua compatibilidade (ou, pelo menos, com a sua não incompatibilidade) com as normas dos demais Estados.


Era necessário, ainda, que os direitos e obrigações consubstanciados no princípio constitucional fossem facilmente precisos, pois a sua inidentificação tornaria impossível a consolidação e reconhecimento como norma fundamental.


Sob esse escopo, o que fez o constituinte foi apenas seguir a onda protecionista que volta os olhares da legislação ao homem, numa visão antropocêntrica antes relegada a segundo plano.


De fato, o princípio da dignidade humana tem como reconhecida extensão os direitos e garantias fundamentais que abrangem não só os direitos individuais, coletivos, sociais e políticos, como também os econômicos.


O respeito à dignidade da pessoa humana constitui-se, assim, em um dos pilares que sustentam a legitimação de atuação do Estado, coibindo qualquer ato que procure de alguma forma restringir essa atuação, em qualquer que seja a dimensão.


Ademais, não é de somenos reforçar que a posição das cláusulas constitucionais, protegidas sob o manto de “claúsula pétrea”, impõe que o intérprete atente, necessariamente, para o fato de que esta se reveste de caráter principiológico, e que seu entendimento é vinculativo. Qualquer que seja, assim, a aplicação do texto legal, deve-se sempre ter em mente o seu encontro aos fins colimados, sob pena de ser reconhecido como inconstitucional.


A moderna doutrina constitucional estabelece três níveis de normas garantidoras dos direitos fundamentais. A base desta construção encontra-se na ordem histórico-cronológica de reconhecimento constitucional.


Os direitos fundamentais de primeira geração são aqueles encontrados nos direitos individuais e políticos. Os de segunda geração estão consubstanciados nos institutos sociais, culturais e econômicos e os de terceira geração surgem na abrangência dos direitos difusos e coletivos.


Na esteira do tríduo do ideário francês , é possível estabelecer que os direitos fundamentais de primeira geração são todos aqueles cujo princípio norteador seja a liberdade. Para os direitos de segunda geração, o centro irradiador seria a igualdade e, para os de terceira geração, a fraternidade.


Num primeiro momento, houve a conscientização do direito individual, cujo documento símbolo é a Declaração Francesa (1789), reconhecida como o grande documento de declaração universal dos direitos do homem. Em regra, são integrados pelos direitos civis e políticos, dos quais são exemplos os direitos à vida, à intimidade, à inviolabilidade de domicílio e outros. São direitos que representavam um ideal de afastamento do Estado das relações individuais e sociais. O Estado deveria ser apenas um guardião das liberdades, permanecendo longe de qualquer interferência na esfera social e econômica. São chamadas de liberdades públicas negativas ou direitos negativos, pois exigem do Estado um comportamento de abstenção.


Em seguida, posta-se a necessária conscientização dos direitos sociais, e o documento símbolo deste movimento é a Constituição Alemã (1909), que acaba por sintetizar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (de 10 de dezembro de 1948). Os direitos fundamentais de segunda geração são consubstanciados nos direitos econômicos sociais e culturais, a serem conferidos pelo Estado. São, portanto, chamados de direitos positivos, pois reclamam a presença do Estado em ações voltadas à minoração dos problemas sociais, relacionados com o trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice e outros.


A sociedade experimenta, em seguida, a necessidade do reconhecimento dos chamados “direitos de solidariedade”, que abrangem os direitos coletivos e difusos, agora voltados à coletividade e não mais ao indivíduo, vencida a etapa do individualismo. Compreende-se, assim, a proteção ao meio ambiente, ao progresso, aos consumidores, à paz, à infância e à juventude e outras inúmeras questões surgidas a partir do desenvolvimento industrial e tecnológico.


Alguns doutrinadores reconhecem ser possível capitular ainda uma quarta categoria de direitos, ou seja, direitos da quarta geração, que viriam a ser o direito à liberdade sexual, à mutação de sexo, ao desenvolvimento tecnológico, etc. Esse posicionamento não reflete o pensamento majoritário, que entende que quanto mais “direitos fundamentais” forem criados, grandes são as chances de não ser mais possível reconhecer – a qualquer direito ou garantia – a sua fundamentalidade.


Apesar de toda essa evolução sistemática dos textos normativos, capazes de servirem de abrigo aos direitos fundamentais, com afastamento de qualquer outro que intimide o seu pleno exercício, não é possível olvidar-se de que as transformações experimentadas pela sociedade, por conta do desenvolvimento industrial e tecnológico, bem como as regras do mercado , podem abalar sensivelmente a defesa intransigente desses princípios constitucionais.


Ainda assim, a busca pelo reconhecimento das garantias individuais e coletivas, que possam ser efetivamente experimentadas pela sociedade, e que encontra oposição – segundo alguns autores – no imperioso e crescente desenvolvimento tecnológico e no sistema econômico atual, deve receber o tratamento diferenciado buscado pela própria norma.


É de se encontrar o equilíbrio normativo e social , sem ser necessário expor a grande dificuldade em graduar-se qual o expoente que deve receber maior atenção : o crescimento e o desenvolvimento social e o livre mercado, cujas regras nem sempre obedecem à primazia da norma constitucional, ou a garantia dos direitos constitucionalmente institucionalizados .


4. CONTORNOS DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA. UMA SOCIEDADE DE RISCO


O avanço real da tecnologia e a nova ordem econômica fazem nascer anseios por parte da sociedade por respostas concretas, que permitam que o avanço experimentado pela sociedade possa manter-se pari passu com as condições mínimas exigidas para a vida em sociedade.


O desenvolvimento tecnológico incrementa riscos. Quanto mais avança a tecnologia, maiores os riscos de violação e maiores as necessidades de proteção. A globalização, imposta como conditio sine qua non para o desenvolvimento dos países, incrementa riscos e gera incertezas.


Nos dizeres de BAUMAN (1999), “a globalização está na ordem do dia,(…) se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros”. Mas, a despeito disso, “a globalização tanto divide como une; divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo.”


E é nesse contexto de insegurança que hoje se apresenta que precisam ser discutidos os parâmetros até então certificados pela sociedade, para ser possível estabelecer novos critérios que permitam o reequilíbrio necessário.


SANTOS (2000) bem caracteriza esse momento social, ao definir que se está diante da quebra de paradigmas. Segundo KUHN (citado por BEHRENS), os paradigmas se constituem na constelação de crenças, valores e técnicas partilhados pelos membros de uma mesma comunidade. E a própria quebra de paradigmas já apresenta a sensação de insegurança, a despeito do que ensina BEHRENS (2007), “a superação de um paradigma … não o invalida, nem o torna errado ou nulo, mas evidencia que seus pressupostos e determinantes não correspondem mais às novas exigências históricas”.


Na sociedade pós-moderna, os riscos derivados do progresso tecnológico acabam sendo mais relevantes do que os perigos representados pela natureza. Conforme assinala PARDO (2009) , quando, por exemplo, a agricultura ou a produção de alimentos é dominada pela tecnologia da indústria alimentícia, que inclui a manipulação genética, aumenta de forma exponencial a necessidade de decisões a respeito de autorizações , comercialização, conservação e informação a consumidores que estende a necessidade de regulação jurídica; ou seja, onde se impõe a tecnologia, surge a necessidade de decisões que podem afetar interesses de pessoas e de grupos e, consequentemente, se torna necessária a regulação jurídica. Ao mesmo tempo em que o sistema jurídico não se opõe ao progresso técnico e científico, quando ele melhora as condições de vida das pessoas, no momento em que catástrofes se tornam inevitáveis, a regulação jurídica pode adotar posição preventiva diante da técnica e da ciência.


Esta luta parece inglória porque os pólos – nem sempre contrários – são integrados, de um lado, pelo desenvolvimento científico e econômico voltado, no mais das vezes, para a melhoria das condições sociais e, de outro lado, pelas incertezas que esse desenvolvimento traz, quebrando os limites até então certificados pela certeza jurídica.


Além do desenvolvimento tecnológico, também a expansão econômica, marcada pela nova ordem (pós-capitalismo), origina as incertezas hoje experimentadas pela sociedade. Conquanto seja o mercado também um lugar de relações sociais, deve ser possível assegurar que as suas atividades não confrontem os princípios de consecução de vida digna e de justiça social.


Os critérios de eficiência são reconhecidamente necessários ao desempenho econômico, mas não devem permear unicamente os seus objetivos consideráveis. A questão da sustentabilidade não deve se referir somente à viabilidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, mas deve atingir patamar inclusivo para subordinar o processo de produção aos escopos do Estado Democrático de Direito de promoção da cidadania e de vida digna.


A evolução do capitalismo e o avanço tecnológico geram, assim, a necessidade de criação de direitos que possam regrar de modo harmônico essa dicotomia, a fim de preservar – não só o ser humano – mas também o próprio sistema, que se não for regulado, pode se auto-destruir, já que tem como característica principal ser autopoiético.


Esta busca traz a necessária reflexão de que o direito (as normas jurídicas) não seriam, necessariamente, pacificadoras. A contrário, é necessário que antes seja pacificado o ambiente para, somente depois, a norma jurídica ser aplicada. Essa análise faz sentido à medida em que se tem o direito não como ante-social, mas pós-social. A construção ocorre antes na sociedade, para somente depois ser vinculada a texto normativo. Este, então, o nível de insegurança que a atual sociedade fragmentária, produto da era capitalista, deixa à mostra.


5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E OS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA NA CONSTITUIÇAO BRASILEIRA


A função dos princípios não é só a de indicar o caminho a ser seguido na interpretação legal. Além da função estrutural, reconhecidamente presente, os princípios aqui estudados têm a função de orientar a criação das regras, normatizando a conduta. Na classificação de Canotilho, citado por CASSAR (2009), estes princípios são “normas jurídicas impositivas de otimização, compatíveis com vários graus de concretização, que variam de acordo com as situações fáticas ou jurídicas”.


A Constituição Brasileira abriga, em diversos capítulos e artigos, as normas que possibilitam enfrentar a dicotomia antes referenciada. No que concerne ao princípio da dignidade humana, vê-se-o literalmente exposto no inciso III, do art. 1º. , estabelecido como princípio fundamental, tanto da República Federativa quanto do próprio Estado Democrático do Direito, assim descrito :


Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissociável dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos : (…)


III – a dignidade da pessoa humana..”


Também no artigo 5º. , em seu caput , as normas cogentes de direito à liberdade, igualdade, segurança e propriedade, bem como proibição de discriminação de qualquer natureza, são assecuratórias da implementação do princípio:


“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes..”


À proteção à maternidade, infância, adolescência, família e velhice, portanto, a proteção de todas as fases da vida humana, está consubstanciada no art. 203, novamente:


Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:


I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice.”


Na mesma carta, inserem-se os princípios da atividade econômica, cujos objetivos não são o de impedir o desenvolvimento econômico, pois que isto seria uma afronta à possibilidade de atingir os fins colimados (um contra-senso), mas o de regular a atividade econômica para que esta possibilite as realizações capazes de convalidar os interesses previstos na Magna Carta.


São chamados de “princípios gerais da atividade econômica” exatamente por que iniciam a exposição dos direitos relacionados , mas não os esgotam. É consabido que o mercado também tem suas próprias regras, e não há força constitucional capaz de abrandar estes efeitos. Foi o que se viu na recente crise econômica.


Para apresentar estes princípios, a Constituição Federal elencou-os em título próprio, a partir do art. 170, que dispõe:


Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:


I – soberania nacional;


II – propriedade privada;


III – função social da propriedade;


IV – livre concorrência;


V – defesa do consumidor;


VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;


VII – redução das desigualdades regionais e sociais;


VIII – busca do pleno emprego;


IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.


O parágrafo primeiro do mesmo artigo determina a preponderância do livre exercício da atividade econômica, liberando-a da autorização do poder público, com as ressalvas normais vigentes em praticamente todos os textos legais do país.


Para que o entendimento do alcance destas normas possa ser completo, é necessário concluir-se pela aplicação simultânea de outras regras impostas no mesmo texto legal.


Quanto ao princípio da livre iniciativa, por exemplo, sua previsão não se restringe apenas ao disposto no artigo aqui discutido ( 170), mas tem corolário também no contido no art. 1º., inciso IV, que dispõe :


Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissociável dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:


I – a soberania;


II – a cidadania;


III – a dignidade da pessoa humana;


IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.”


Como supedâneo destes princípios fundamentais até agora vistos, outros o seguem, somando-se ao conjunto principal de normas legais que buscam, antes de mais, permitir que sejam atingidos os fins colimados pelo Estado democrático, neles sendo inseridas a cidadania plena e a justiça social.


Ao referir como norma constitucional inafastável as condições para uma existência digna, o legislador constituinte não se serviu da utopia comum, que assola o ideário político, mas pretendeu buscar as condições que viessem a possibilitar um exercício pleno de bem estar social, instrumento indispensável à pacificação social.


Além de retratar a existência digna como corolário dos princípios norteadores da livre iniciativa, a mesma premissa é praticada no inciso III do art. 1º., já referido.


A justiça social, como instrumento de busca pela eficácia desses princípios, aparece agregada a outros nortes, como a questão da função social da propriedade (também inserta no inciso XXII do art. 5º. e nas disposições do art. 186).


Com todos estes parâmetros, ainda vê-se inserido na Carta Constitucional o princípio da livre concorrência (inciso IV, do art. 170), como meio propulsor da atividade econômica.


Nesse passo, é consabido, o legislador constituinte determinou que à legislação ordinária ficasse a responsabilidade de regular, de forma concreta, as relações de consumo, numa clara e evidente atitude protecionista ao personagem hipossuficiente. Essa vertente é inovadora, pois o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990) alterou não só alguns artigos do Código de Processo Civil, mas toda uma dogmática pré-existente, numa clara determinação de quebra de paradigmas.


Em contraponto, a interpretação legal não permitirá a total asseguração deste principio se os critérios utilizados não forem suficientes para responder às necessidades da sociedade. O problema estaria, então, em saber-se se a interpretação jurídica é um problema normativo ou um problema hermenêutico.


As dificuldades encontradas podem ser enquadradas sob duas ordens : a primeira, condizente com o conteúdo axiológico da norma propriamente dita e a segunda, de caráter de aplicabilidade da norma, seguindo-se os critérios de bem estar social.


Para que a interpretação seja coerente com a mens legislatoris (vontade do legislador; isto é, o que efetivamente se pretendeu com a norma), é fundamental que o intérprete tenha em mente as duas ordens (acima relacionadas) : o conteúdo axiológico e a aplicabilidade desta.


Tendo em vista que a interpretação deve investigar e revelar o real conteúdo e alcance da norma, deve-se utilizar da melhor hermenêutica constitucional, como ensina CANOTILHO, citado por CASSAR (2009) :


“interpretar uma norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos na Constituição com o fim de obter uma decisão de problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada.”


E é nesse cenário de avanços tecnológicos e de crises econômicas em que o problema da aplicação efetiva do princípio constitucional da dignidade humana repousa. O processo globalizador e globalizante deixa à mostra a hipossuficiência dos personagens que BAUMANN chama de “locais” – contrapondo-se às figuras dos “globais”- que são as pessoas que não dispõem das condições necessárias para participar, efetivamente, do processo de globalização . “A mobilidade galga ao mais alto nível dentre os valores cobiçados – e a liberdade de movimentos, uma mercadoria sempre escassa e distribuída de forma desigual, logo se torna o principal fator estratificador de nossos tardios tempos modernos ou pós-modernos”. É, em suma, a extraterritorialidade de alguns e a territorialidade forçada de outros.


6. CONSIDERAÇOES FINAIS


A dignidade humana é característica inerente a todas as pessoas e tem por objetivo colocá-los a salvo de qualquer ato discricionário, seja qual for o agente e protegê-los de ausência de condições mínimas de sobrevivência. É da própria essência do ser humano ser dotado dessa condição e qualidade. Estar desprovido desse manto protetor destitui o ser humano da capacidade de subsistência e da convivência social.


Essa a razão pela qual a dignidade da pessoa humana passa a ser considerada o princípio constitucional norteador das demais normas, porque deve ele se sobrepor a qualquer outro interesse – seja social ou econômico.


Apesar de toda essa evolução sistemática dos textos normativos, capazes de servirem de abrigo aos direitos fundamentais, com afastamento de qualquer outro que intimide o seu pleno exercício, não é possível olvidar-se de que as transformações experimentadas pela sociedade, por conta do desenvolvimento industrial e tecnológico, bem como as regras do mercado , podem abalar sensivelmente a defesa intransigente desses princípios constitucionais.


A evolução do capitalismo e o avanço tecnológico geram a necessidade de criação de direitos que possam regrar de modo harmônico essa dicotomia, a fim de preservar – não só o ser humano – mas também o próprio sistema, que se não for regulado, pode se auto-destruir.


Diante de tais considerações, é possível concluir que a ordem constitucional brasileira erigiu a dignidade humana como pressuposto fundamental, inafastável e norteador de todos os demais diplomas legais.


A interpretação desta norma e sua efetiva aplicabilidade devem permear, como efetivamente se vê, todo o regramento legal, inclusive no abrigo de normas internacionais, pois tem-se a dignidade humana como princípio fundamental na formação e manutenção da sociedade contemporânea .


Inserido neste contexto, o princípio da dignidade humana não afasta – entretanto, a aplicabilidade de outros princípios fundamentadores do Estado contemporâneo, notadamente aqueles que dizem respeito à atividade econômica.


A busca pelo desenvolvimento e o seu real incentivo também devem nortear os escopos legislativos, pois sem desenvolvimento, a sociedade não conseguirá atingir os seus objetivos e a norma legal quedará inerte.


Ainda que verificados riscos e incertezas, naturais num processo de desenvolvimento onde diversas questões são trazidas à discussão (no que o Direito nem sempre acompanha pari passu), deve ser possível conciliar-se estes objetivos e a (aparente) dicotomia torna-se então salutar, como instrumento para viabilizar a consecução de todos os princípios constitucionais, norteadores do Estado contemporâneo.


 


Referências bibliográficas

1.BAUMAN, Zygmunt. Globalização : as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

2.BEHRENS, Marilda Aparecida. O paradigma emergente e a prática pedagógica. Petrópolis, Editora Vozes, 2005.

3.__________________________. Paradigma da Complexidade. Metodologia de Projetos, contratos didáticos e portfólios. Petrópolis, Editora Vozes, 2006.

4.BRASIL. Constituição Federal. In VADE MECUM. Curitiba: Editora Juruá, edição especial, 2005.

5.CASSAR, Vólia Bomfim, Direito do Trabalho. Niterói : Editora Impetus, 3ª. Edição 2009.

6.DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Editora Saraiva, 11ª. Edição, 2005.

7.FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2006.

8.NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Comentado e legislação extravagante. São Paulo : Editora RT, 3ª. Edição, 2005.

9.PARDO, Jose Esteve. El desconcierto del leviatán. Política y derecho ante las incertidumbres de la ciencia. Madrid: Editora Marcial Pons, 2009.

10.SANTOS, Fernando Ferreira. Principio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=160> Acesso em:30.out. 2009.

11.SANTOS, Boaventura de Sousa. A CRÍTICA DA RAZÃO INDOLENTE. São Paulo, Editora Cortez, 2001.

12.SARLET, Ingo W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre : Livraria do Advogado Editora, 4ª. Edição, 2006.

13.SCHIAVI, Mauro. Proteção jurídica à dignidade da pessoa humana do trabalhador. Disponível em <http:www.lacier.com.br/artigos/proteção_juridica.doc. > Acesso em 20 out. 2009

14.UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ. Comissão de Normalização de Trabalhos Acadêmicos. Normas para elaboração de trabalhos acadêmicos. Curitiba: Editora UTFPR, 2009.


Informações Sobre o Autor

Nádia Regina de Carvalho Mikos

Advogada. Supervisora do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário Curitiba. Mestranda em Direito.