Sumário: Resumo 1 – boa-fé 1.1 – noção geral 2 – o princípio da boa-fé e sua consagração pela ciência jurídica 2.1 – direito romano 2.2 – contribuições canônica e germânica 3 – o princípio geral da boa-fé 3.1 – conceito 3.2 – funções 3.3 – pertinência com o princípio da moralidade administrativa 4 – princípio geral da boa-fé no direito administrativo 4.1 – aplicação 4.2 – importância 5 – o procedimento administrativo e a boa-fé 6 – a lei nº 9.784 de 29-01-1999 à luz da boa-fé Bibliografia.
Introdução
O presente trabalho é uma contribuição ao estudo do princípio da boa-fé objetiva no direito público brasileiro, em especial na seara do Direito Administrativo. Escolheu-se apreciar o enfocado princípio sob a égide da Lei que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.
1 – Boa-fé
1.1 – Noção Geral
A boa-fé, a cujas exigências tem de ajustar sua atuação todos os membros da comunidade, somente pode predicar-se em suas recíprocas relações, da atitude de um em relação com outro. Significa – diz LACRUZ – que este outro, segundo a estimação habitual da gente, pode esperar determinada conduta de um, ou determinadas conseqüências de sua conduta, ou que não há de ter outras distintas ou prejudiciais[1].
A boa-fé incorpora o valor ético da confiança. Representa uma das vias mais fecundas de interrupção do conteúdo ético-social na ordem jurídica, e, concretamente, o valor de confiança. Serve de causa para a integração do Ordenamento conforme a umas regras ético-materiais, a idéia de fidelidade e de crédito, ou de crença e confiança. A boa-fé supõe uma regra de conduta ou comportamento civiliter, uma conduta normal, reta e honesta, a conduta de um homem corrente, de um homem médio. Não faz referência ao comportamento geral da pessoa, senão a sua posição em uma concreta relação jurídica, bem em seu nascimento, no exercício dos direitos ou no cumprimento das obrigações em que se concretiza. A boa-fé – diz DROMI – significa que o homem crê e confia que uma declaração de vontade surtirá em um caso concreto seus efeitos usuais, os mesmos efeitos que ordinária e normalmente produziu em casos análogos[2]. Não se trata, ou, melhor, não se trata tão-somente, da confiança na atitude que cabe esperar da pessoa concreta com a que se está em relação. Senão da conduta que caberia esperar, por suposto em uma concreta relação jurídica, de uma pessoa corrente, normal, nem boa nem má. Isto tem especial transcendência quando essa outra pessoa com a qual se está em relação é uma Administração Pública, ou, mais concretamente, a pessoa física que em uma concreta relação é a titular do órgão administrativo competente. Pois, se a boa-fé fora à confiança na conduta que caberia esperar dela, em função do que é atitude corrente e normal dos entes públicos, nada bom poderia esperar o administrado e apenas teria aplicação o princípio. Contudo, se o que o princípio supõe é a exigência de uma conduta civiliter, normal, séria e honesta, seu campo de aplicação será pouco menos que ilimitado, e contribuirá decisivamente a trocar substancialmente o que é normal no labor administrativo[3].
A boa-fé é valorada no direito administrativo, ora como padrão de conduta, a exigir dos sujeitos do vínculo jurídico atuação conforme à lealdade e à honestidade (boa-fé objetiva), ora como uma crença, errônea e escusável, de uma determinada situação (boa-fé subjetiva).
A primeira hipótese alcança maior influência no terreno aplicativo, sendo de grande valia no concernente aos atos e contratos administrativos, procedimento administrativo, serviços públicos, atividade reguladora e na responsabilidade estatal na intervenção sobre a ordem econômica. Diferentemente, a boa-fé em sua vertente psicológica é suscetível de um mais restrito emprego, sendo de valia quanto às sanções administrativas e em algumas relações entre o Estado e seus servidores. Apesar de pacificada pela opinio doctorum, não se pode desprezar o acerto da observação lançada por FERNANDO SAINZ MORENO, ao confirmar ensinamento de HERNÁNDEZ GIL, no sentido de que a boa-fé, quaisquer que sejam os pressupostos com base nos quais é aplicada, expressa sempre uma unidade ética e normativa de significado. Desse modo, embora seja certo que existam diferenças nas maneiras de utilizar e considerar a boa-fé, segundo se trate da sua face subjetiva ou objetiva, é de assinalar-se que, em ambas, faz-se presente uma acepção geral, consubstanciada na sua dimensão ordenadora.
Essa visão unificadora é compartilhada por DELIA MATILDE FERREIRA RUBIO, para quem a boa-fé é una, muito embora constitua princípio geral marcado de conteúdo ético, do qual se originam múltiplas conseqüências e funções. Tal pensar usufrui de acerto, porquanto tanto na vertente objetiva (boa-fé conduta) quanto na subjetiva (boa-fé crença) há a incorporação de um valor. Doutro lado, na esteira da ensinança da mencionada autora, a boa-fé objetiva, ao representar pauta de conduta, condiz com um comportamento exigido in abstracto, enquanto a boa-fé subjetiva leva em consideração uma atuação concreta. Prova disso é que não se pode cogitar de boa.-fé em uma conduta que, malgrado exteriorizar-se de forma reta e honesta, vem acompanhada de má-fé subjetiva. A tudo isso se deve agregar que, a exemplo de outros institutos jurídicos, as noções de boa-fé crença e boa-fé conduta não são estanques, mantendo, ao contrário, notável entrelaçamento. Daí que se pode afirmar, como faz MOACIR ADIERS, embora este manifeste repulsa à corrente unitária, a presença da condição de princípio tanto na boa-fé conduta quanto na boa-fé crença, haja vista em ambas permear fundamento ético, conducente a sancionar a má-fé. Feitas essas considerações, cabe descortinar-se quais as funções que a boa-fé poderá alcançar quando manejada perante os institutos do direito administrativo. Para tanto, não vislumbro incompatibilidade no transplante da operatividade funcional desenvolvida no direito privado. Absolutamente. Apenas se torna indispensável que tal se faça com as adaptações necessárias, ditadas em virtude das peculiaridades do liame jurídico administrativo. Não totalmente desprendido do direito privado, FERNANDO SAINZ MORENO propõe, sem pretensão exaustiva, duas funções para o princípio da boa-fé no direito administrativo, consistentes na qualidade de limitar o exercício de direitos subjetivos, ou de poderes jurídicos (norma ordenadora de conduta), juntamente com a sua utilização como norte exegético. Ideal que a tais relevantes papéis se acresçam o mister informador, com o objetivo de contribuir para que seja traçada a fisiononia dos demais institutos integrantes do sistema jurídicoadministrativo, sem, para tanto, perder-se de vista o de integração, voltado para suprir a falta de normas necessárias à solução dos casos concretos. Desse conjunto, ressai, no cotidiano, o valor da boa-fé quando espraia suas atenções perante as relações entre a Administração Pública e os administrados[4].
Na acepção de Maria Cristina Cereser Pezzella[5] a boa-fé apresenta-se sob dois enfoques: o subjetivo e o objetivo. A boa-fé subjetiva é a consciência ou a convicção de se ter um comportamento conforme ao direito ou conforme à ignorância do sujeito acerca da existência do direito do outro. Já a boa-fé objetiva permite a concreção de normas impondo que os sujeitos de uma relação se conduzam de forma honesta, leal e correta.
A doutrina publicista recepcionou a diferenciação. Acorrendo-se, a DOMINIQUE LAGASSE, Edílson Pereira Nobre Júnior destaca que “a boa-fé subjetiva, que significa a ausência de má-fé, de intenção dolosa ou mentirosa, a ausência de consciência (defeituosa) do caráter errôneo ou ilegal de um comportamento; a boa-fé objetiva, que é ´o comportamento do homem normalmente eqüitativo e razoável, que age tendo em conta os interesses legítimos da outra parte` e que tende a impor novas regras de comportamento, com vistas a obter soluções ´melhores, mais eqüitativas, mais leais e mais racionais` que aquelas obtidas pela aplicação das regras jurídicas existentes. Ela consiste em esperar que a outra parte se comporte lealmente”[6].
Na opinião respeitada de Vera Regina Loureiro Winter[7], há que se distinguir as concepções jurídicas da boa-fé, uma subjetiva que diz respeito a dados internos, fundamentalmente psicológicos, atinentes ao sujeito, da objetiva, relacionada a elementos externos, normas de conduta que determinam como este mesmo sujeito deve agir. Assim, está de boa-fé quem ignora a real situação jurídica e em outro ângulo, está de boa-fé quem tem motivos para confiar na contraparte. Esta última, como princípio é a que interessa, pois a boa-fé contratual é a objetiva. Todavia embora em ambas haja um elemento comum – a tutela da confiança – cabe a distinção entre a boa-fé subjetiva e a objetiva. Na boa-fé subjetiva ou boa-fé crença ocorre um estado de ignorância sobre características da situação jurídica apresentada capaz de conduzir à lesão de direitos de outrem, ou seja, uma pessoa acredita ser titular de um direito que na realidade não tem, pois só existe na aparência que gera um estado de confiança subjetiva, permitindo ao titular alimentar expectativas que crê legítimas.
Na sua análise sobre a importância da boa-fé nas relações civilistas, cita que o Code Napoléon estabelecia no art. 1.134, al. 3ª que “as convenções devem ser executadas de boa-fé” o que foi seguido em 1900 pelo BGB (burgerliches gesetzbuch) no §242, denominado “parágrafo régio”, dispondo que “o devedor está obrigado a executar a prestação como exige a boa-fé” e pelo Código Civil suíço, vigente desde 1912, que estabelece em seu art. 2º que “cada um deve exercer os seus direitos e cumprir as suas obrigações segundo as regras da boa-fé”. É inconteste que a boa-fé trata-se de princípio fundamental que embasa todo ordenamento civilista, como a necessidade de pautar condutas, inclusive acrescidos atualmente em dispositivos expressos do Código de Defesa do Consumidor, arts. 4º, III e 51, IV, ocorrendo, assim, uma verdadeira “universalização da boa-fé”, no dizer de MENEZES CORDEIRO (Da boa-fé no direito civil). A relação entre a boa-fé e justiça contratual é tão estreita que GHESTIN não só considera uma única realidade como também entende que o princípio da boa-fé é corolário da justiça contratual, afirmando que “este princípio aparece, de resto, como o complemento do princípio da justiça” (Já GHESTIN, Les obligations: le contrat, cit, p. 613 e 140, apud NORONHA, FERNANDO, em: Os direitos dos contratos e seus princípios fundamentais, São Paulo: Saraiva, 1994). Assim, enquanto a maioria dos autores inclui as preocupações com a justiça contratual dentro da boa-fé, GHESTIN inverte os termos e considera a boa-fé como corolário da justiça.
Neste sentido, vários preceitos do Código Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002): arts. 1.561 (efeitos do casamento putativo), 1.201 e 1.202 (posse de boa-fé), 1.214 (efeitos da posse), 1.238, 1.242 e 1.261 (aquisição pelo usucapião), 1.268 (tradição feita a adquirente de boa-fé), 309 (pagamento a credor putativo), 879 (alienação de imóvel indevidamente recebido) e 686 e 689 (desconhecimento da revogação ou da extinção do mandato).
Discute-se se para caracterizar a boa-fé subjetiva basta a mera ignorância do interessado na real situação que tem diante de si (concepção psicológica) ou se é exigível que o estado de ignorância seja desculpável (entendimento ético), aliás, predominante. Na primeira concepção a boa-fé contrapõe-se à má-fé: ou a pessoa ignora os fatos reais e está de boa-fé ou não ignora e está de má-fé. Já na concepção ética, é necessário que a ignorância seja desculpável para a lesão de direito alheio, ou seja, o negligente e o impulsivo não podem ficar em situação mais vantajosa ou igual ao do avisado ou prudente, pois quem erra indesculpavelmente não poderá ficar na mesma situação de quem erra sem culpa. Esta concepção ética, predominante já era defendida por OCTÁVIO GUIMARÃES, (Da Boa-Fé, 1953) que, reportando-se a WINDSCHEID (“a boa-fé é a crença de não lesar”) afirmava que “boa-fé é a representação que se origina de um erro escusável de um engano relevado; há de ser certamente expressão de um ato sério e ponderado. Ora, só erra escusadamente quem se atém ao fato e o examina e perquire; quem procede com diligência e cuidado. Quem errar por leviandade, ou, em suma, por culpa, erra sem escusa; e o ato que daí ressair não tem o apoio da lei ou não produz efeitos jurídicos. Assim como nos atos dolosos só é protegido quem se enganou por artifícios capazes de iludir, assim também a boa-fé só é considerada e produz efeitos civis, quando originar-se de erro escusável ou sem culpa”. Também ALÍPIO SILVEIRA (A boa-fé no código civil) afirma que a boa-fé não é o “erro ou ignorância da verdadeira situação jurídica que são os pressupostos da convicção ou crença da legalidade ou validade do ato ou da conduta humana”.
Por outro lado, complementa Vera Regina Loureiro Winter[8] se a boa-fé subjetiva é um estado, a objetiva ou boa-fé como regra de conduta é um dever – dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade para não frustrar a confiança legítima da outra parte. Boa-fé lealdade ou a boa-fé confiança são expressões que realçam a finalidade do princípio, ou seja, a tutela das legítimas expectativas da contraparte, para garantia da estabilidade e segurança das transações. Embora tanto a boa-fé subjetiva, como a objetiva, possuam a idéia de tutelar a confiança, na primeira se resguarda a confiança de quem acredita em uma situação aparente, já na objetiva a de quem acreditou que a outra parte procederia de acordo com os padrões de conduta exigíveis. Se em ambas há um elemento subjetivo, só na boa-fé objetiva existe um segundo elemento, que é o dever de conduta de outrem.
É nesse sentido objetivo que se fala em boa-fé ou em má-fé, no Código Civil Brasileiro (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002) nos arts. 161 (estão de má-fé terceiros que, com o propósito de prejudicar credores, adquiram imóvel de devedor insolvente), 164 (presumem-se de boa-fé os negócios ordinários praticados por devedor insolvente), 363 (novação por substituição do devedor, se feita de má-fé, não impede ação contra o primitivo devedor), 295 (cessão a título gratuito de má-fé) e 765 e 766 caput (deveres, no contrato de seguro, de agir de acordo com a “mais estrita boa-fé e veracidade”).
A boa-fé objetiva é referida no Código de Processo Civil, no art. 14, II quando impõe às partes e aos seus procuradores o dever de proceder com lealdade e boa-fé. No Código de Defesa do Consumidor, art. 4º, III (boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores) e 51, IV (abusivas as cláusulas contratuais incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade).
Finalmente cabe destacar três características da boa-fé objetiva: a existência de uma vinculação especial uma determinada confiança entre as pessoas intervenientes, padrões de conduta socialmente recomendáveis, como bônus pater famílias e finalmente um estado de confiança no negócio celebrado por ambas as partes.
2 – O princípio da boa-fé e sua consagração pela ciência jurídica
2.1- Direito Romano
O princípio da boa-fé guarda origens bastante remotas. Leciona Edílson Pereira Nobre Júnior[9] que no direito romano há referência de sua aplicação no ius gentium, direito comum a todos os habitantes do Mediterrâneo, fundado sobre o bonum et aequum e a boa-fé para reger as relações entre os cidadãos e os peregrinos. Certo é dizer que tudo começara com a fides (lealdade à palavra empenhada) que, desde os tempos iniciais da formação jurídica romana, forneceu a noção a pautar as vinculações sociais e morais dos cidadãos. A fides representara o fundamento natural das relações humanas em Roma, dela emanando a concepção de confiança, a alcançar reminiscências nos dias atuais, tanto que, longuíssimo tempo após o desaparecimento da tradição religiosa, o aperto de mãos ainda denota sinal de segurança mútua.
Por sua vez, o preclaro catedrático adverte que “operava a fides como instrumento para obrigar o magistrado a cumprir o que prometera através do que escrevera, importando em obrigação de coerência. Da mesma maneira, excluía a aplicação retrooperante das normas, quaisquer que fossem as suas origens, velando para que o legislador também mantivesse a palavra dada, de sorte a poderem ´os cidadãos confiar no ordenamento jurídico, tal como ele se apresentava num determinado momento, e prever as conseqüências de suas ações`”.[10]
O certo é que com a evolução jurídica Romana, verificou-se a substituição do fundamento de validade das relações jurídicas contratuais que, outrora apegado à forma (ius civile), desloca-se em direção ao consentimento, à lealdade à palavra dada, ou seja, à fides de agora em diante a aparecer com a qualificação de fides bona. Já com a fides bona tem-se um conceito jurídico, consistente no comportamento esperado de um homem normal em um caso específico, manuseado pelos juristas, a contar do século III a.C., na elaboração e compreensão dos institutos do direito privado, sobretudo no campo obrigacional.
Em suma, Edílson Pereira Nobre Júnior[11] afirma que, deduz-se não mais bastar somente a mantença da palavra ofertada, pressupondo-se também a adoção, pelas partes, de posturas que correspondessem aos costumes dos homens de bem e aos usos do comércio. Passaram a dominar a cena as obrigações de boa-fé, aparelhadas pelos bonae fidei iudicia, em cuja fórmula se atribuía ao juiz a faculdade de fixar o montante da condenação com base na eqüidade, na vontade presumida das partes e demais circunstâncias do ajuste celebrado. As Institutas de Justiniano conferiu mais certeza às ações que eram de boa-fé das que assim não se qualificavam quando descreveu, através de uma divisão pormenorizada, as que seriam de boa-fé e outras que seriam de direito estrito, cada uma com características e diferenciações próprias, que perderam sua força com o passar do tempo.
Finalmente, o aludido professor enfatiza que a noção de fides bona não se limitara ao campo negocial, tendo sofrido diluição, atingindo horizontalmente o plano dos direitos reais, com especificidade para o usucapião. Com a usucapio partiu-se para qualificar a posse suscetível de proteção, requerendo-se a boa-fé do seu titular, ou seja, o seu desconhecimento da real situação de quem lhe transferiu o objeto possuído. Fazendo-se uma comparação, pode-se dizer que, diferentemente da fides bona do direito das obrigações, a boa-fé aqui não se expressava como dever de um certo comportamento, exprimindo, ao invés, a convicção de que o ato de determinado sujeito não estaria a lesar direito de terceiro. Essa bipartição de sentido respalda, na atualidade, a distinção entre boa-fé objetiva e subjetiva[12].
2.2 – Contribuições canônica e germânica
Em sua consagrada obra, Edílson Pereira Nobre Júnior[13] com referência nas lições canônicas, no que interessa a boa-fé, afirma que estas repercutiram no campo das obrigações, no usucapião e no direito matrimonial. A concepção eclesiástica conferia à boa-fé o condão de impor deveres positivos, vinculando a parte a realizar, em prol do outro contratante, o que é justo, bem assim deveres negativos, com vistas a exigir que a atuação no contrato estivesse imune de dolo, de fraude e de coação. No plano subjetivo, na seara possessória, apoiava-se na crença de que o possuidor agia com a convicção de que não estava cometendo pecado.
Destaca ainda o referido doutrinador o impacto que os valores da civilização germânica, ordenados na Idade Média e nos princípios da Idade Moderna, acarretaram quanto à noção de boa-fé, originalmente desenvolvida pelos romanos. O ponto de partida para uma boa-fé germânica, no plano lingüístico, da utilização, a contar do século XIV da era cristã, adveio da fórmula par Treu und Glauben. Consideradas tais palavras isoladamente, tem-se que Treu evoca, como tradução, lealdade, enquanto que Glauben dá idéia de crença. Conjugadas, foram empregadas como “confiança e boa-fé, em sentido psicológico, como confiança e credibilidade e como credibilidade e bitola de comportamento”. No decorrer da história, segundo o qual a convicção germânica passou a sofrer a ação de uma entidade tipicamente medieval, qual seja o juramento de honra (…), malgrado a sua não relevante significação jurídica à época, servira para fincar o conteúdo de um princípio do cumprimento exato das promessas efetuadas, transformando a boa-fé germânica em padrão de conduta, balizada duplamente pela “obrigação de cumprir exactamente os deveres emergentes do contrato – a lealdade ao contrato – e a necessidade jurídica de ter em conta, no exercício de direitos, os interesses da outra parte”[14].
3 – O princípio geral da boa-fé
3.1 – Conceito
O princípio da Boa–Fé[15], como visto alhures, é oriundo da palavra “bona fides”, boa-fé, boa confiança, é a convicção de que as partes envolvidas estão agindo de acordo com a lei, na omissão ou prática de determinado ato. Por sua vez, é um dever processual consagrado no art. 14, inciso II do Código de Processo Civil.
Inegavelmente, dentro da ciência jurídica a boa-fé é um importante princípio, que serve também como fundamento para a manutenção do ato viciado por alguma irregularidade, sendo, pois, um elemento externo ao ato, na medida em que se encontra no pensamento do agente, na intenção com a qual ele fez ou deixou de fazer alguma coisa.
Na prática, é impossível definir o pensamento, mas é possível aferir a boa ou má-fé, pelas circunstâncias do caso concreto.Princípio pelo qual as partes se obrigam a proceder com lealdade, probidade e dignidade durante o processo. Não se trata de uma recomendação meramente ética, sem eficácia coercitiva, pois a lei considerou seriamente tal premissa.
O basilar princípio da boa-fé, segundo as palavras de CARLOS ROBERTO GONÇALVES, “guarda relação com o princípio de direito sobre o qual ninguém pode beneficiar da própria torpeza”. O certo é que a boa-fé está na base da ciência do direito, especialmente no aspecto informador e de interpretação do Direito. Dessa forma, o princípio da boa-fé é de grande importância na sua função de informador do ordenamento jurídico e bem por isso, por seu variado emprego nesse ordenamento, é difícil a formulação de um conceito geral da boa-fé. Em nosso sistema, a todo passo há referência à boa-fé como um instituto indispensável nos negócios jurídicos. E já agora, modernamente, as referências se bipartem: boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva.[16]
Ao princípio da boa-fé empresta-se ainda outro significado. Para traduzir o interesse social de segurança das relações jurídicas, diz-se, como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas.
A respeito, Jesús González Pérez[17] assim discorre: “El principio general de la buena fé seguiría siendo um principio general del Derecho. Y, precisamente por constituir la base misma del Ordenamiento, no es concebible una norma legal que lo contravenga. La contradicción, como dice el profesor DE CASTRO, sólo concebible en momentos de crisis del Estado, origina la condenación del Ordenamiento jurídico y terminaría con un reajustamiento del mismo, al desaparecer las causas que la produjeran. (…) El hecho de su consagración en una norma legal no suponía que con anterioridad no existiera, ni que por tal consagración legislativa hubiera perdido tal carácter. Pues si los principios generales del Derecho, por su propia naturaleza, existen con independencia de su consagración en una norma jurídica positiva, como tales subsistirán cuando en un Ordenamiento jurídico se recogen en un precepto positivo, con objeto de que no quepa duda su pleno reconocimiento”.
Por derradeiro, as relações jurídico-privadas também devem conformar-se com as regras gerais da boa fé. Na opinião de BAPTISTA MACHADO[18] (Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, p. 232), depois de referir “o significado profundo do princípio da boa fé (do fides servare) nas relações entre os homens” e de afirmar que “o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo” e que “a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem”, acrescenta: poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens. Mais ainda: esse poder confiar é logo condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica).
2 – Funções
Primeiramente, é de se destacar que os princípios jurídicos constituem a base do ordenamento jurídico, nas palavras de Jesus González Pérez, com amparo em DE CASTRO, afirma ser a parte permanente e eterna do Direito e também a mutante e mutável que determina a evolução jurídica; são as idéias fundamentais e informadoras da organização jurídica da Nação. (…) Os princípios jurídicos têm pleno valor de fonte jurídica; formam parte do ordenamento jurídico.[19]
Por sua vez, Edílson Pereira Nobre Júnior vislumbra nos princípios a tríplice função de: a) fundamento da ordem jurídica; b) orientação do labor interpretativo; c) integração da insuficiência da lei.[20]
Na mesma linha argumentativa expõe Jesús González Pérez[21], com apoio no ensinamento de DIEZ-PICAZO DE CASTRO: “El principio de la buena fé, al igual que los demás, principios jurídicos, operará com el alcance y fuerza que le reconoce el artículo 1 del Código civil, es decir: sirve de base y fundamento a toda el Ordenamiento jurídico; es una de las grandes directrices hermenéuticas y de aplicación; y, a falta de toda otra norma, será la última fuente del Derecho. Cumplirá una triple función de fundamento, interpretación e integración, así como de límite de los derechos subjetivos”.
Dentro deste panorama, no que diz respeito à função interpretativa do princípio geral da boa-fé, Vera Regina Loureiro Winter[22] advoga que “constituindo os princípios, a parte permanente e eterna do Direito e também a variação que determina o evoluir, cabe a eles a interpretação das normas que integram o ordenamento jurídico. Mais especificamente ao princípio da boa-fé, os autores têm destacado o caráter informador do mesmo, ainda que não consagrado de modo explícito, servindo à interpretação e integração das normas com uma função informadora que as embasa, de forma harmônica. De outra parte, a realidade administrativa apresenta dois mundos distintos, diferenciados e rigidamente separados: a Administração Pública e os administrados. E, justamente por esta alternância, o princípio da boa-fé constitui causa para a integração que se faz necessária, contribuindo para humanizar tais relações, ´pois o Direito nunca deve ser manejado contrário ao seu fundamento ético que deve ser o fator informante e espiritualizador` (De los mozos la buena fé, en el Titulo Preliminar, p. 457). Ou seja se a Administração Pública não pode exercer seu poder defraudando a confiança devida a quem com ela se relaciona, tampouco o administrado pode atuar contra àquelas exigências éticas. Assim, a aplicação deste princípio permitirá ao administrado recobrar a confiança que a Administração não vai exigir-lhe mais do que o estritamente necessário para a realização dos fins públicos almejados; por outra parte, comportará a confiança da Administração em que o administrado que com ela se relaciona adotar um comportamento leal na constituição das relações no exercício de seus direitos e no cumprimento de suas obrigações frente à própria Administração e frente a outros administrados. Como afirmou SAINZ MORENO (La buena fe, p. 311) ´a boa-fé da Administração frente ao cidadão consiste na confiança de que este, não só não vai ser desleal com o comportamento honesto do administrador público, senão que tampouco vai utilizar a Administração Pública para obter em seu benefício soluções contrárias à boa-fé de outro cidadão`”.
Em especial, quanto às funções de integração e de limitação dos direitos subjetivos presentes no Princípio Geral da Boa-Fé, Jesús González Pérez[23] assevera que tal princípio “(…) ha prestado una inestimable función de integración del Ordenamiento jurídico privado. Y puede prestarla en Derecho administrativo, no ya como norma limitadora del ejercicio de actividades discrecionales, sino para llenar los vacíos de las normas legales, y completar los supuestos ciertamente numerosos en que, tanto en la regulación del nacimiento de las relaciones, como en la del ejercicio de los derechos o cumplimiento de las obligaciones en que la norma olvida las exigencias de la buena fe. (…) Puede señalarse, también, entre las funciones de los principios generales del Derecho, la de imponer una dirección al comportamiento de los hombres en sus relaciones com los demás”.
Adianta J. J. Gomes Canotilho que os princípios são multifuncionais, podendo ora desempenhar uma função argumentativa, atuando como cânone hermenêutico, ora servir de instrumento de revelação de normas não expressas nos enunciados legislativos[24].
A boa-fé constitui um dos princípios gerais do Direito, ensina Jesús González Pérez[25], que como tal, existia com independência de sua consagração em uma norma jurídica positiva. É um princípio geral do direito, não um princípio lógico. A precisão resulta necessária, porque quando a doutrina coloca a determinação dos princípios jurídicos como tarefa básica e pressuposto de toda ciência jurídica, não sempre emprega o término em um mesmo sentido.
3.3 – Pertinência com o princípio da moralidade administrativa
De início, como bem afirma o professor Manoel de Oliveira Sobrinho[26], na abordagem do princípio da moralidade, “a relação moral é uma constante administrativa. Subordina, no exercício dos atos, qualquer manifestação estatal. Dá a cada ato a licitude que se espera nas práticas administrativas. Oferece comportamento que venha legitimar a vontade pública voltada para a igualdade das decisões cogentes. (…) A questão in fine é de conduta procedimental adequando motivos, meios e fins às leis ou às normas, tudo dentro de limites que não afetem direitos quer individuais ou quer sociais. Excessos na feitura de atos ou nas decisões, causa distúrbios que a ordem jurídica repele. As implicações, quaisquer sejam, sofrem o exame da moralidade”.
Por sua vez, a doutrina pátria sinaliza no sentido de que a boa-fé constitui elemento do princípio moralidade administrativa. Nesse talão, é o entendimento de Marcelo Figueiredo[27], amparado na lição de LUCIA VALLE FIGUEIREDO, para quem “os princípios da boa-fé, da lealdade administrativa, da proibição do enriquecimento sem causa da Administração, são princípios implícitos (contidos) no princípio da moralidade administrativa”. Pontifica que, nas relações de direito público o tema reaparece, paulatinamente, com a teoria do abuso de poder, não podendo o Estado estar alheio aos aludidos princípios, uma vez que o cidadão, o indivíduo assim poderá contar com que o Estado aja com lealdade, com boa-fé.
Ademais, destaca a balizada opinião de LUCIA VALLE FIGUEIREDO que também parte do princípio da boa-fé, como princípio conatural ao princípio da moralidade administrativa, ensinando que tanto no campo do direito administrativo como no direito tributário há necessidade de boa-fé, honestidade, moralidade, lealdade, sobretudo nas relações entre a Administração e seus administrados. Nesse sentido, Marcelo Figueiredo[28] expõe relevante ensinamento de LUCIA VALLE FIGUEIREDO (O princípio da moralidade e o direito tributário), para quem “O princípio da boa-fé encontra agasalho expresso até mesmo no texto constitucional em seu art. 231, §6º, como também em diversas leis regedoras da atividade administrativa. Exemplos podem ser colacionados na Lei de Licitações, na de Concessões e Permissões de Serviço Público etc., além de em diversas passagens do Código Civil. Na verdade, a boa-fé é conatural, implícita, ao princípio da moralidade administrativa. Não poderá a Administração agir de má-fé e, ao mesmo tempo, estar a respeitar o princípio da moralidade. De outro turno, não poderá a Administração desrespeitar a boa-fé do administrado, não lhe dar importância, ignorá-la. Mesmo no direito administrativo colacionam-se exemplos ilustrativos do princípio, quer seja na impossibilidade de a Administração invalidar atos administrativos, que geraram direitos, sobretudo quando seus beneficiários estiverem de boa-fé, quer seja na anulação de contratos administrativos, indenizando-se aqueles que de boa-fé trabalharam para a Administração, portanto em pleno respeito, também, à vedação do enriquecimento sem causa, outro princípio geral latente a todo o ordenamento jurídico”.
Desta feita, pode-se objetivamente afirmar que o princípio da boa-fé é princípio geral de Direito. Com a proclamação do princípio da moralidade administrativa na Constituição, aludido princípio passa a ser exigível com mais força e eficácia, já que conatural (LUCIA VAILE FIGUEIREDO) ao princípio da moralidade administrativa. Recebeu como que um “reforço” jurídico para sua integral aplicação e entendimento no mundo jurídico.
No mesmo sentido, assegura Francisco Chaves dos Anjos Neto[29] que externa opinião no sentido de atestar que “a moralidade, mais do que juridicizada, em verdade restou institucionalizada por força de seu novo perfil delineado na Constituição Federal de 1988”. No seu turno, citando a tese de doutorado de MARCELO FIGUEIREDO, especificamente sobre o princípio da moralidade, quando, a certa altura, analisa as suas três fases, discorre que a primeira é fruto do labor de HAURIOU e RIPERT (A moralidade é elemento interno da legalidade); a segunda, sempre influenciada pela primeira, vislumbra a necessidade de sindicar com maior cuidado e profundidade os motivos de fato discricionariamente considerados pela Administração Pública, bem como as finalidades dos atos administrativos exercidos pelo agente, e; a terceira ´fase` ou abordagem da matéria já enfoca o tema da ´moralidade administrativa` com nova perspectiva, ou seja, verifica-se que há um desejo do ´governo honesto`. A moralidade, antes exclusiva da ou ´na` ´administração`, já é chamada como direito público subjetivo, já adquire foros expressos de juridicidade, torna-se princípio constitucional. Nesse sentido, fala-se em ética no Estado, em ética nos governos, em ética nos sistemas jurídicos – em sua, em ´direito ético`”.[30]
Cita ainda Marcelo Figueiredo a consagrada doutrina de Jesús González Pérez, trazendo sentença do Tribunal Constitucional espanhol, “o fundamental está na proteção da confiança, já que o contrário é atacar a boa-fé, que certamente se fundamenta em uma coerência de comportamento nas relações humanas e negociais”. Reitera que são, além disso, os espanhóis, que se dedicaram profundamente ao tema, que alertam da impossibilidade de procurar uma definição precisa e clara a propósito da “boa-fé”, da “lealdade”. Isto porque “não é possível reduzir sua aplicação a casos tipificados”. É tema que propicia muito mais “a intuição que se possa definir a priori”. Ademais, Marcelo Figueiredo põe, em relevo a opinião dada por ORLANDO GOMES para quem lealdade e confiança significam a boa-fé, e a qual assevera que para traduzir o interesse social de segurança nas relações jurídicas as partes devem agir com boa-fé. Finaliza salientando, em notas de rodapé, o brilhante ensinamento de SAINZ MORENO (El principio general de la buena fé em el derecho administrativo, p. 45) para quem entende que o princípio da boa-fé protege um bem, o valor ético da confiança juridicamente válida em face de qualquer lesão objetiva que possa sofrer o agente, haja ou não sido dolosa ou maliciosamente causada. Um ato é contrário à boa-fé quando produz lesão, qualquer que seja a intenção de quem o causou.
O magistério de Márcia Noll Barboza[31] aduz que “a autonomia do princípio da moralidade administrativa é uma autonomia fraca. Por isso e por tudo o mais que afirmamos, cremos ser inútil e até mesmo arbitrário perseguir uma autonomia forte. Sendo um truísmo hoje, após a contribuição da filosofia da linguagem, que as palavras não detêm um significado verdadeiro, não há como ´descobrir` na moralidade um conteúdo mais estreito. Nesse rumo é que considera equivocada a tentativa de cingir o conteúdo da moralidade administrativa à boa-fé. Certo que a idéia inicial sobre a moralidade administrativa partiu de Hauriou e que, na primeira referência a essa idéia, em 1903, o autor traçou um paralelo entre a noção de boa administração e a de boa-fé, esta última recém acolhida, então, pelo Código Civil alemão (1900). Não parece, todavia, que Hauriou vislumbrasse identificação entre o conteúdo dessas noções; observava, isto sim, coincidência entre os enfoques que ambas permitiam sobre os atos jurídicos. Deveras, enquanto a boa-fé do direito alemão possibilitava um enfoque objetivo dos vícios subjetivos dos atos jurídicos, também a boa administração propiciava um enfoque objetivo dos vícios subjetivos do ato jurídico administrativo. Mas os conteúdos dessas noções – boa administração e boa-fé – não coincidiam porquanto diversos eram os critérios de sindicabilidade (da moralidade) do ato jurídico do direito privado e dó ato jurídico administrativo. Com efeito, se é verdade que as duas noções apontavam para critérios como lealdade, honestidade e confiança, não menos verdadeiro é que tais critérios assumiam matizes distintos nos direitos público e privado. Para além dessa proximidade inicial, que alguns pretendem reveladora, inexistem elementos analíticos que possam conduzir a uma identificação entre a moralidade administrativa e a boa-fé, mesmo que entendida esta em sua dimensão objetiva. É claro que o que hoje se entende por princípio geral da boa-fé tem aplicação no regime jurídico administrativo, como diversos autores já têm demonstrado. E, no nosso sistema, pode-se afirmar que tal princípio constitui um subprincípio do princípio da moralidade administrativa ou, por outra, que este gera para o administrador um dever de boa-fé. Mas o princípio da moralidade, com a forma e o significado que assume em nosso País, é mais amplo que o princípio da boa-fé”.
Por fim, na compreensão de Vera Regina Loureiro Winter[32]: “os valores de lealdade e moralidade são especialmente necessários nas relações da Administração com os administrados, tanto é que a nossa atual Constituição Federal enfatiza-os ao expressá-los como princípios da Administração Pública, (art. 37, II). A Administração Pública e o administrado devem adotar um comportamento leal em todas as fases da constituição das relações, em direitos e deveres, e inclusive quando da extinção, fazendo-a suportar os efeitos. Portanto, ´o princípio da confiança ou da boa-fé recíproca nas relações de administração apresenta tal relevo que merece tratamento à parte, não obstante ser manifesto resultado da junção dos princípios da moralidade e da segurança das relações jurídicas (…) estatui (o citado princípio) o poder-dever de o administrador público zelar pela estabilidade decorrente de uma relação timbrada de autêntica fidúcia mútua, no plano institucional` (JUAREZ FREITAS, O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais, Malheiros, p.75)”.
4 – Princípio geral da boa-fé no direito administrativo
4.1 – Aplicação
Para o catedrático espanhol Karl Larenz[33]: “a salvaguarda da boa-fé e a manutenção da confiança formam a base de todo o tráfego jurídico e em particular de toda a vinculação jurídica individual. Por isso não se pode limitá-lo às relações obrigacionais, mas aplicá-lo sempre que exista qualquer vinculação jurídica, ou seja, tanto no Direito Privado, como no Direito Público”.
Na investigação se o princípio da boa-fé possui incidência nos quadrantes do direito público material, o professor Edílson Pereira Nobre Júnior[34] discorre que há de se atentar para alguns fatores a projetar uma possível incompatibilidade do postulado na seara juspublicística, mais precisamente no direito administrativo. Destacando lição de FERNANDO SAINZ MORENO, discorre que este sumariou três óbices assestados ao trânsito da boa-fé, sendo eles: a) a diferença qualitativa das partes na relação jurídico-administrativa; b) a circunstância de que toda a movimentação administrativa está submetida ao princípio da legalidade; c) a natureza diversa dos interesses em jogo no relacionamento Administração e particular.
Não obstante o ora exposto, lembra o citado doutrinador que por serem as posições doutrinárias nesse talão não coincidentes de forma precisa, “servem para demonstrar o caráter relativo da supremacia no liame Administração versus cidadão, afastando, portanto, o estorvo oposto à boa-fé”.[35] Nesse sentido, feliz é a concepção trazida por CARLO MARZUOLI, na citação de Edílson Pereira Nobre Júnior[36], quando adianta que “a boa-fé, mesmo se ela é uma característica das relações entre particulares, exprime uma regra de honestidade aplicável para todos, no direito privado como no direito público. A mais forte razão à aplicação desse princípio é justamente necessária quando a Administração age em posição de supremacia, a fim de conter esta última nos limites da razão, da eqüidade e da justiça”.[37] Isto posto, salienta este que, aquele deixa claro que atualmente predomina o sentimento da perfeita compatibilidade entre direito administrativo e boa-fé objetiva, sendo esta um princípio constitucional não escrito.
De início cabe pontuar a lição de Jesús González Pérez[38], quando de sua análise do princípio geral da boa-fé frente às hipóteses típicas de sua aplicação, para quem: “La aplicación del principio no puede ser más general. Todas las personas – y también la Administración pública – deben comportarse de buena fé em sus relaciones, em todas sus relaciones y en todas las fases de la vida de las relaciones: nacimiento, desenvolvimiento y extinción”.
Quanto ao óbice de que toda a movimentação administrativa está submetida ao princípio da legalidade e por isso a necessidade de se afastar a boa-fé do direito administrativo, bem conclui Edílson Pereira Nobre Júnior[39] que tal convicção não merece prosperar, quando assim dispõe que “a uma, porque se desloca do pressuposto, sobremodo errôneo, de que não são admissíveis princípios implícitos, extraídos de outras normas. Em seguida, padecem de defeito visível quando propendem à conformação do postulado da legalidade sob um encerro demasiado restrito”. Consolida tal defesa na lição de FABIO MERUSI, que é categórico ao assinalar que “a Administração Pública deve desenvolver sua atividade não somente em atenção a normas legislativas expressas, mas também com base nos princípios gerais do ordenamento. Tudo isso porque o interesse público não se circunscreve àquele tipificado na lei formal, mas abarca, da mesma forma, o indicado pelos princípios gerais, nestes inserindo-se, de modo particular, o da boa-fé”.
Nesse sentido também se alinha Jesús González Pérez[40], quando, complementando o raciocínio anterior, assevera que: “(…) si la Administración pública está sometida al principio general de buena fe, al igual que las personas que com ella se relacionan, el principio de legalidad, que no excluye la aplicación de aquél como quedo demonstrado, puede delimitarla, excluyendo supuestos típicos de manifestación del mismo o, al menos, obligando a uma matización que no es necesaria cuando se trata del administrado”.
Já Vera Regina Loureiro Winter[41] alega que “a desigualdade das partes se deve a uma necessidade imposta pelo próprio serviço prestado a interesses gerais que não só não excluem o princípio da boa-fé, mas ao contrário, exigem sua maior vigência; já o princípio da legalidade não só quando atua de modo discricionário traz ínsita a boa-fé, (talvez até mesmo com maior amplitude), mas também, no agir motivado; por último, o caráter público dos interesses em jogo não implica oposição ou desvinculação aos privados, pois ´não existem interesses impessoais distintos dos que interessam particularmente aos cidadãos, uma vez que estão tão intimamente inter-relacionados, pois qualquer interesse público também o é privado` (SAINZ MORENO, La buena fe en las relaciones de la administración con los administrados, RAP nº 89, p. 312)”.
No mais, o professor Edílson Pereira Nobre Júnior[42] diz em sua obra que “a circunstância de, tradicionalmente, a boa-fé vir sendo consagrada pelo direito privado não a torna incompatível com o direito administrativo. (…) No particular da boa-fé, a justificativa para a sua recepção no seio do direito administrativo advém da sua qualidade de princípio geral do direito, de forma a ser possível o reconhecimento de que não se contém nos lindes do direito civil”.
Outra não é a lição de Aldo Sandulli[43], que em definição lapidar estabelece que “o princípio da boa-fé, ou da tutela da confiança, é um princípio de formação jurisprudencial (mas desde tempo imemorial codificado no nosso ordenamento), que interessa transversalmente a todos os ramos do direito e que encontra a sua própria origem na experiência romanista, relativa aos contratos ´bonae fidei`”. Ademais, impõe que o relacionamento recíproco entre a administração pública e os particulares decorra de acordo com as normas da boa fé. A boa fé, por oposição à má fé, é uma referência orientadora, que deve estar presente em todas as relações jurídicas e em vários ramos do direito público e privado, tendo particular incidência, no que se refere a este último ramo do direito, o princípio da boa fé contratual[44].
A aplicação do princípio da boa-fé, por outra parte, ensina o mencionado professor Jesús González Pérez[45], ajudará a confiança da Administração em que o administrado que com ela se relaciona vai adotar um comportamento leal na fase de constituição das relações, no exercício de seus direitos e no cumprimento de sua obrigações frente à própria Administração e frente a outros administrados. Como disse SAINZ MORENO: “la buena fé de la Administración frente al ciudadano consiste en la confianza de que este, no solo no va a ser desleal com el comportamiento honesto de la Administración, sino que tampoco va a utilizar a la Administración para obtener em su beneficio resoluciones contrarias a la buena fé de outro ciudadano”.
Na seara administrativa lusitana, a referência da Carta Ética[46], que estabelece dez princípios éticos da Administração Pública, encontra-se o Princípio da Colaboração e da Boa-Fé, estabelecendo que “os funcionários no exercício da sua actividade devem colaborar com os cidadãos, segundo o princípio da boa fé, tendo em vista a realização do interesse da comunidade e fomentar a sua participação na realização da actividade administrativa”.
4.2 – Importância
Sobre a relevância do princípio da boa-fé Vera Regina Loureiro Winter[47] leciona que vasta é a doutrina sobre o princípio da boa-fé, como dever imposto às partes de agirem em conformidade com padrões de correção e lealdade.
Na sua conceituada obra, Jesús Gonzalez Perez[48] aborda a importância da Boa-Fé no Direito Administrativo, trazendo-nos à colação a seguinte opinião: “El de la buena fé aparece como uno de los princípios generales que sirvem de fundamento al Ordenamiento, informan la labor interpretativa y constituyen decisivo instrumento de integración (…) De aqui la especial importância en el Derecho administrativo de un principio que constituye cauce para la integración de todo el Ordenamiento conforme a la Idea de creencia y confianza. (…) el principio puede contribuir a humanizar las relaciones entre administradores y administrados. Y asimismo constituirá un decisivo instrumento para restablecer la confianza entre estos dos mundos que hoy se nos aparecen como irreconciliables”.
Por sua vez, consigna que a aplicação do princípio da boa-fé permitirá ao administrado recobrar a confiança em que a Administração não irá exigir-lhe mais do que estritamente seja necessário para a realização dos fins públicos que em cada caso concreto persiga. E em que não lhe vai ser exigido no lugar, no momento nem na forma mais inadequados, em atenção a suas circunstâncias pessoais e sociais, e às próprias necessidades públicas. Confiança, legítima confiança de que não se lhe vai impor uma prestação quando somente superando dificuldades extraordinárias poderá ser cumprida. Nem em um lugar em que, razoavelmente, não cabia esperar. Nem antes de que o exigiam os interesses públicos nem quando já não era concebível o exercício da potestade administrativa. Confiança, em fim, em que no procedimento para ditar o ato que dará lugar às relações entre Administração e administrado, não vai adotar uma conduta confusa e equívoca que mais tarde permita iludir ou tergiversar suas obrigações. E em que os atos vão ser respeitados em tanto não exijam sua anulação os interesses públicos.[49]
5 – O procedimento administrativo e a boa-fé
Na abordagem de um conceito elaborado do procedimento administrativo, convém enfatizar primeiramente a noção da função administrativa e processualidade. Nessa seara, o professor Edílson Pereira Nobre Júnior[50] assim expõe com propriedade, afirmando que “atualmente, o termo processo, compreendido como uma seqüência coordenada de atos, destinados à concretização de um fim específico, tem dominado, com constância, a esfera do funcionamento estatal. Desse modo, é que se fala em processo quando se quer aludir à elaboração, pelo Estado, das normas jurídicas (processo legislativo), ou quando se visa destacar a aplicação daquelas pelos órgãos estatais (processos judicial e administrativo)”. Ilustra que, outrora a junção entre Administração e processo não obtinha considerável aceitação pelos estudiosos, fortes na crença de que este mais se afeiçoava à atividade judiciária, sendo que presença da processualidade no âmbito administrativo é recente, iniciando-se a partir das transformações impingidas à moldura do Estado, forjada pelo vingar das idéias liberais.
A boa-fé no âmbito do procedimento administrativo significa que a administração pública deve ter perante os particulares uma actuação de lealdade, não optando por comportamentos obscuros ou contraditórios, fornecendo todas as informações abertamente, ou seja, não fazendo “jogo escuro”. Igual conduta se impõe aos administrados[51].
Assegura-nos Edílson Pereira Nobre Júnior [52] que foi nos primórdios do século XX é que se ampliou o leque de ação do Estado que passou ativamente a intervir nos planos econômico e social, provocando conseqüentemente o redimensionamento da Administração. Nesta ocasião, o intuito primeiro é que a Administração bem desempenhasse às novas tarefas lhe acometidas. Afirma ainda que um dos efeitos sensíveis dessa nova realidade, na qual se insere a Administração com preocupações sociais, é a menor densidade do espaço que separa a posição do indivíduo daquela ocupada pelo Estado, fato que vem evidenciar num obscurecimento parcial do modelo tradicional, graças a uma crescente participação e colaboração dos administrados na atividade administrativa.
Do exposto, conclui o referido catedrático: “(…) É nesse cenário que se cria o ambiente propício à irrupção da disciplina de decisões administrativas sob a regência de mecanismos procedimentais. Por outro lado, isso partiu também da irrecusável verificação prática de que a grande maioria das posturas adotadas pela Administração não são editadas de imediato, sem a natural antecedência e fases preparatórias. (…) O importante é saber que a nova forma de Estado que se avizinha, (…) não afasta a idéia de procedimentalização da atuação administrativa, antes reforçando-a consideravelmente”. Neste diapasão, sintetiza, estribado em MASSIMO SEVERO GIANNINI, “(…) a atividade administrativa das administrações contemporâneas se desenvolve mediante procedimentos administrativos: este constitui um princípio do direito administrativo contemporâneo”.
Sobre a aplicação da boa-fé no direito processual administrativo, Jesús González Pérez[53] afirma que “(…) es incuestionable la aplicación del principio em el processo administrativo. Em el proceso administrativo, como em los demás, deben respetarse las regras de la buena fé”.
Quando do estudo do procedimento administrativo, Edílson Pereira Nobre Júnior[54] brinda-nos com oportuna conceituação e análise dos seus aspectos funcionais. Demarca que a expressão procedimento é tida como preferencial no estrangeiro, onde teve a sua sedimentação desde as primeiras décadas do século XX, ficando, pois, reservado o termo “processo” à atividade jurisdicional. Destaca como signatários deste entendimento os seguintes países: Estados Unidos, Espanha, Itália, Portugal, Argentina e Uruguai. Nesse sentido, com estribo na lição de MASSIMO SEVERO GIANNINI pontua que o processo não só é o procedimento concernente à atividade do poder jurisdicional, como é também a forma da jurisdição e das outras funções assinadas ao juiz; o procedimento administrativo atém-se ao poder administrativo, e à forma da atividade administrativa.
Dessa forma, no campo das definições, vale frisar o comando do artigo 1 ° do Código do Procedimento Administrativo Português, que assim preceitua: “1- Entende-se por procedimento administrativo a sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública ou à sua execução. 2 – Entende-se por processo administrativo o conjunto de documentos em que se traduzem os actos e formalidades que integram o procedimento administrativo”.
Por sua vez, o legislador brasileiro manifestou declarada opção pelo termo processo, quer em sede constitucional (arts. 5°, LV, 37, XXI, e 41, § 1°, CF), quer no plano legal (art. 1° da Lei 9.784, de 29-01-99).
A respeito, ainda no que tange ao Código do Procedimento Administrativo Português, o seu Capítulo I – “Princípios Gerais”, assim estabelece no seu artigo sexto o Princípio da justiça e da imparcialidade, definindo que “no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação”. Sendo que, no artigo 6º – “A” – trata do Princípio da boa fé, assim preceituado: “1- No exercício da actividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé; 2- No cumprimento do disposto nos números anteriores, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas, e, em especial: a) A confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa; b) O objectivo a alcançar com a actuação empreendida”.[55]
Na fundamentação de um dos processos administrativos que tramitou no Ministério da Justiça em Portugal ficou consignado no mérito do processo que, “o principio da boa fé assume-se como um dos princípios gerais que servem de fundamento ao ordenamento jurídico. Tal principio apresenta-se como um dos limites da actividade discricionária da Administração. Um dos corolários do principio da boa-fé consiste no principio da protecção da confiança legitima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança. Por outro lado, mesmo em sede do principio da boa-fé, a Administração terá sempre de valorar os condicionantes que entretanto, se tenham produzido, sendo que a mudança do circunstancialismo em que se tivesse baseado numa anterior conduta, poderá legitimar à luz da vinculação ao principio da legalidade e da prossecução actualizada do interesse público, uma alteração aos critérios anteriormente assumidos não estando, assim, a Administração impedida de avaliar a nova situação que, porventura, se tivesse desenvolvido, por forma a melhore acautelar os interesses que lhe incumbisse defender”[56].
Sob o enfoque interno, Edílson Pereira Nobre Júnior[57] assim assevera: “Muito embora tenha sido essa a postura legislativa nacional, nossa escolha é pelo termo procedimento, haja vista este, na conformidade da doutrina, jurisprudência e legislação que o engendrou, ser o mais apropriado para designar a atividade dos órgãos administrativos, apartando-a da inerente à função judicial. A expressão procedimento administrativo, como nos mostra MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, embora prefira o vocábulo processo, enseja uma pluralidade de significações. Dessarte, vai-se desde o sentido vulgar de conjunto de papéis e documentos, passando por acepções jurídicas mais estritas, como aquela que evoca a sinonímia com o processo administrativo disciplinar, até entendimentos mais amplos, de forma a abranger conjunto de atos coordenados para a solução de uma controvérsia, ou preparatórios de uma decisão final”.
A tônica do procedimento administrativo traz à lume conceitos mais abrangentes e que melhor se conformam com a sua importância, sobretudo tratada na doutrina alienígena. Senão vejamos as definições de PIETRO DI VIRGA[58] e ROBERTO DROMI[59] onde se pode abarcar conceituações que se completam. Assim, para o primeiro “o procedimento consiste em uma seqüência de atos tendo natureza e funções diversas, mas pré-ordenados, não obstante a sua heterogeneidade, e a sua relativa autonomia, à emanação de uma providência central ou conclusiva (por ex., procedimento expropriatório, procedimento disciplinar, procedimento de concurso)”; para o segundo “o procedimento administrativo regra o exercício das prerrogativas públicas, dos direitos subjetivos e liberdades públicas”.
6 – A lei Nº 9.784 de 29-01-1999 à luz da boa-fé
Preliminarmente, compete destacar que a Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999 veio dispor sobre normas básicas para o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, com vistas à proteção dos direitos dos administrados e o melhor cumprimento dos fins da Administração. Com vigência imediata a comentada lei teve sua publicação em 1º de fevereiro de 1999.
Em ditoso comentário à Lei n. 9.784/99, o professor Edílson Pereira Nobre Júnior[60] vislumbra que a marca da boa-fé encontra-se na nossa prática procedimental administrativa, servindo de parâmetro a Lei 9.784, de 29-01-99, diploma ao qual coube regular o processo (mais corretamente, procedimento) administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Em cometida abordagem, enumera que o aludido diploma é “composto de 70 artigos e contém, nos seus dezoito capítulos, importantíssimas noções sobre: a) o seu âmbito de aplicação; b) princípios informadores do procedimento administrativo; c) direitos e deveres dos administrados; d) instauração do procedimento; e) competência, impedimentos c suspeição; f) formas, tempo e lugar dos atos do processo; g) comunicação dos atos processuais e prazos; h) atos de instrução; i) dever de decidir e de motivação; j) desistência e outros casos de extinção do procedimento; I) anulação, revogação e convalidação; m) recursos administrativos e revisão; n) sanções administrativas. O âmbito espacial de aplicação da Lei 9.784/99 circunscreve-se à Administração Federal Direta e Indireta, obrigando igualmente os órgãos do Legislativo e Judiciário quando no exercício atípico de função administrativa. De notar, porém, como o seu art. 69 prevê, que não se dirige aos procedimentos administrativos regidos por lei específica. Daí que tal diploma não se aplica, a não ser supletivamente, aos procedimentos disciplinares dos servidores públicos estatutários, de licitação e que envolvam relações jurídicas entre a Administração e o cidadão na condição de contribuinte, porquanto regidos por leis próprias. Idem aos procedimentos de que se ocupam as leis que disciplinam a atividade das agências reguladoras”.
Por sua vez, o advogado Eury Pereira Luna Filho[61], na sua obra virtual intitulada: “A Nova Lei do Processo Administrativo”, afirma que “traz esse diploma federal (…) particular interesse, porquanto terá influência nos diversos procedimentos administrativos hoje regulados em legislações especiais de aplicação mais ou menos restrita, a exemplo do Regime Jurídico, em suas disposições relativas ao procedimento administrativo disciplinar; do processo administrativo fiscal (PAF), sistematizando o procedimento de consulta fiscal e defesa do contribuinte; dos dispositivos sobre recursos administrativos previstos pela Lei de licitações; do Código Nacional de Trânsito, quando trata das sanções e penalidades administrativas a que estão sujeitos os condutores de veículos automotores, além de outros diplomas reguladores de procedimentos administrativos para postulação, obtenção, garantia e defesa de direitos e interesses de particulares, junto aos órgãos da administração, como Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Imobiliários, Instituto Nacional da Propriedade Industrial, PROCONs, órgãos da administração ambiental, e do patrimônio histórico, artístico e cultural, para citar alguns”.
Em sua análise do Capítulo I da lei em tela, Eury Pereira Luna Filho[62] confirma a enumeração não exaustiva dos princípios a que deverá obedecer a Administração Pública, no caput do artigo 2º, além de alguns dos critérios a serem seguidos nos processos administrativos, alinhados no Parágrafo único, desse mesmo artigo, destacando também não se apresentou exaustivo o elenco de princípios retores da Administração Pública Direta e Indireta, a que faz menção o artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988, enumerando apenas os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Outrossim, lembra comentando que a Lei geral do processo administrativo elenca os princípios da legalidade, da finalidade, da motivação, da razoabilidade, da proporcionalidade, da moralidade, da ampla defesa, do contraditório, da segurança jurídica, do interesse público, e da eficiência, enquanto princípios retores da Administração Pública (Artigo 2º), e que o parágrafo único do mencionado artigo elenca, por sua vez, critérios a serem observados, pela Administração, no processo, e casos há em que tais critérios espelham aqueles princípios, ou contém paráfrases de princípios já mencionados no caput do artigo 2º.
A respeito do critério da atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, Eury Pereira Luna Filho[63] salienta que, neste mister, há confusão com o que sejam atributos pessoais e normas para conduta do agente estatal, que se inserem mais adequadamente no rol de deveres funcionais ou éticos do servidor, ressaltando que isso já fora observado no Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (Decreto nº. 1.171, de 22 de junho de 1994). Quanto à boa-fé, assevera “que se trata de um princípio de conduta processual interpartes. Quando venha erigida a princípio norteador da ação administrativa, subsume-se aos princípios da moralidade e ao da primazia da verdade, tanto quanto ao da proporcionalidade quanto ao da imparcialidade da ação do administrador. A moralidade, a veracidade, a proporcionalidade, a razoabilidade e a imparcialidade, de que devem revestir-se os atos administrativos, tornam a exigência da conduta de boa-fé desnecessária, por serem critérios objetivos, aferíveis pela exteriorização da prática administrativa”.
Por fim, observa o preclaro causídico que a norma portuguesa (Código do Procedimento Administrativo), admite, no artigo 6º – “A”, o princípio da boa-fé, que aproximou dos princípios da justiça e da imparcialidade (Artigo 6º.) Refere, entretanto, como “as regras da boa-fé” e explicita devam ser ponderados “a) A confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa; b) O objectivo a alcançar com a actuação empreendida”.
Ademais, é bom pontuar que, como mencionado algures, a Lei em apreço encontra paralelo no Código do Procedimento Administrativo português (Decreto-Lei nº. 6/96, de 31 de janeiro de 1996).
Oportuno se mostra o comentário de Edílson Pereira Nobre Júnior[64] quando discorre que a boa-fé, ao guardar presença implícita no multifacetado conteúdo dos princípios gerais da razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, segurança jurídica, cujo respeito é indispensável, ex vi do art. 2°, caput, da Lei 9.784/99, manifesta-se através da previsão genérica contida no seu art. 2°, parágrafo único, IV, ao timbrar em exigir que a dinâmica da função administrativa preserve “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”. Conclui que os atos administrativos (empregada a expressão em prisma amplo, de modo a abranger não só o ato administrativo em sentido estrito, mas os contratos administrativos, os regulamentos e, de um modo geral, as posturas levadas a cabo pela Administração) hão de constituir comportamentos tisnados de honestidade.
Em análise detalhada da Lei 9.784/99, é possível encontrar pertinentes projeções específicas da boa-fé. De início, em relação ao já retratado art. 2°, parágrafo único, XIII, parte final, do mencionado diploma, logo após a afirmação de que a exegese da norma administrativa há de ser feita da forma que melhor garanta o interesse público, consta à advertência de que é vedada a aplicação retroativa da nova interpretação. Sustentando a confiança legítima, autêntica emanação da boa-fé, como bússola do procedimento administrativo, por imposição do Estado de Direito, Edílson Pereira Nobre Júnior[65] expõe a balizada opinião do espanhol FRANCISCO LÓPEZ MENUDO (Los princípios generales Del procedimento administrativo. In: El procedimiento administrativo em el derecho comparado, Javier Barnes Vasquez (Coor.). Madri: Civitas, 1993, p.137), que pertinentemente se adequa ao cenário nacional. Este noticia que “a boa-fé, provendo lugar proeminente dentro dos princípios gerais não constitucionalizados de ampla incidência no procedimento, segundo, com insistência, proclamou o Tribunal Supremo, mostra a sua cada vez mais pujante conexão com a proteção da confiança (Sentencias de 01 de fevereiro, 08, 15 e 29 de junho e de 05 de outubro, todas de 1990)”.
Dentro deste contexto analítico do art. 2°, XIII, da Lei brasileira nº 9.784/99, há de ser feita lembrança à máxima que interdita venire contra factum proprium, a qual, configurando derivação importante do princípio da boa-fé, que em grossas linhas, obsta que alguém faça valer um direito em contradição com conduta anterior, traduzindo-se, por assim dizer, obrigação de coerência comportamental, implicando o encargo aos órgãos estatais de observar no futuro a conduta que os atos anteriormente praticados pela parte faziam prever.
Neste diapasão, Vera Regina Loureiro Winter[66] adverte que “ainda como uma categoria de exercício abusivo de direitos, cabe o exame sucinto de venire contra factum proprium, quando ´postula dois comportamentos da mesma pessoa lícitos em si e diferidos no tempo` sendo o primeiro o factum proprium que é depois contrariado pelo segundo”. Enumera como exemplo típico, o do contrato de locação com determinada cláusula, verbi gratia, o prazo do pagamento do aluguel, que não é observado durante determinado período, sem reação do locador: “este não poderá, inopinadamente, vir pedir o despejo com fundamento na infração da cláusula”.
A respeito ainda do venire contra factum proprium, Edílson Pereira Nobre Júnior[67] complementa: “Ostenta pertinência, sem ensanchas a qualquer incerteza, na atuação dos agentes públicos no procedimento administrativo”, como bem assevera.
Nesse turno, o preclaro doutrinador em comento destaca, em sua renomada obra[68], dois precedentes jurisprudenciais envolvendo atividade contraditória do Poder Público. O primeiro é retratado por deliberação do Supremo Tribunal Administrativo português no Acórdão n° 30.437, rechaçando a conduta de agente municipal que, a despeito de haver assinado prazo para que o administrado procedesse à demolição de determinada obra, realizou tal ato no início de tal intervalo temporal, colhendo-se de trechos da ementa a seguinte observação: “(…) IV – O princípio da boa fé, em conexão com a doutrina dos actos próprios, impõe que a Administração respeite as expectativas criadas a um interessado no cumprimento de um prazo por ela mesmo estabelecido para ele proceder à demolição de obras executadas em desconformidade com a lei”. Em segundo lugar, é compulsado acórdão do Superior Tribunal de Justiça, proferido no REsp 47.015 – SP, 2º T., mv. DJU de 09-12-97, p. 64655, a pretexto de desatar pretensão de particular, tendente a obter indenização por apossamento administrativo de lotes de terra cujos títulos dominiais lhe foram outorgados, em razão de compra e venda, pelo então titular da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo. Assevera, enfim, que o relator Min. Adhemar Maciel, acompanhando o acórdão recorrido, assentou ser incabível à Administração questionar, em detrimento da boa-fé do demandante, a validade de venda realizada há várias décadas, principalmente quando a hipotética irregularidade do negócio decorrera de suposto equívoco a cargo de Secretário de Estado, sendo que, caso contrário, desrespeitada ter-se-ia a vedação de se investir contra conduta que realizara anteriormente.
Por outro lado, no enfoque relativo à obrigação do administrado em ater-se às balizas de lealdade durante as suas postulações perante a Administração, Edílson Pereira Nobre Júnior[69] salienta que o art. 4°, I a III da Lei 9.784/99 trata da questão quando preceitua que: “Art. 4° – São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo: I – expor os fatos conforme a verdade; II – proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; III – não agir de modo temerário”.
Pela leitura do dispositivo legal em apreço fica patente a imposição aos particulares de não aduzir fatos que saibam inverídicos, nem pretensões cuja ilegalidade seja manifesta, quer em face de sua flagrante contradição a texto normativo, quer pela sua colisão com a jurisprudência predominante, uma vez que a boa-fé, como cânon dirigente do procedimento administrativo, requer a ausência do propósito de enganar do interessado.
No mais, é perceptível que o procedimento administrativo muitas vezes não ostente o caráter contencioso, que é mais afeito ao processo judicial, todavia é curioso observar que a Lei 9.784/99 cuidou de trasladar algumas imposições às partes, constantes do artigo 18 do Código de Processo Civil, que trata da condenação judicial do litigante de má-fé.
O certo é que deveres de tal monta, na consideração do professor Edílson Pereira Nobre Júnior[70], não constituem novidade da legislação brasileira, que com o art. 60° do Código do Procedimento Administrativo de Portugal, bem ilustra o conteúdo dos deveres gerais, sendo eles: “1 – Os interessados têm o dever de não formular pretensões ilegais, não articular factos contrários à verdade, nem requerer diligências meramente dilatórias; 2 – Os interessados têm também o dever de prestar a sua colaboração para o conveniente esclarecimento dos factos e a descoberta da verdade”.
Outrossim, enfatiza que o citado dispositivo deu azo à seguinte observação de DIOGO DE FREITAS DO AMARAL e outros: “A intenção do preceito é a de impor uma colaboração séria e de boa fé entre a Administração e os interessados. Estes não devem assumir atitudes que prejudiquem a marcha do procedimento ou a decisão”.[71]
Ainda na abordagem da boa-fé, Edílson Pereira Nobre Júnior[72] assegura que na prerrogativa do administrado de ser escutado, toda vez que a Administração pretenda suprimir ou restringir direito subjetivo, nota-se aí o influxo da boa-fé. Dela cuida o art. 3°, II, da Lei 9.784/99, sancionando o direito fundamental contido no art. 5°, LV, da Constituição Federal, consagrador do princípio do devido processo, universalmente reconhecido, abrangendo não somente a esfera judicial, mas, igualmente, a administrativa. Assim, é que delineando os contornos do due process no âmbito administrativo, a Lei 9.784/99 veio assegurar ao administrado, os seguintes direitos de: “ser cientificado da tramitação dos procedimentos em que possui a qualidade de interessado, fazendo jus a vista dos autos, com a obtenção de cópias dos documentos neles contidos e o conhecimento das decisões proferidas (artigo 3°, 11); formular alegações e produzir provas (documentais, testemunhais, periciais, etc.) antes da decisão, salvo em situações de risco iminente, cuja ocorrência seja devidamente motivada (artigos. 3°, III, 38 e 45); fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, exceto quando legalmente obrigatória a representação (artigo 3°, IV); ter os pleitos de seu interesse deduzidos perante agentes públicos imparciais (artigos 18 a 21); ser previamente intimado da realização de prova ou diligência ordenada, bem como de obter certidões ou cópias dos dados e documentos integrantes dos autos (artigos 41 e 46); não ter contra si produzida prova obtida por meio ilícito (artigo 30)”.
Por sua vez, e de se observar também que a boa-fé projeta-se no procedimento mediante a colaboração recíproca entre Administração e particulares, a fim de propiciar uma mais satisfatória tomada de decisões pela primeira.
O certo é que a Lei 9.784/99 aperfeiçoou a tônica de co-participação do administrado nas decisões administrativas, tendo o art. 4°, “IV, do referido diploma, reputado o dever do administrado de prestar as informações que lhe forem solicitadas e de colaborar para o esclarecimento dos fatos. Dentro deste prisma, pela leitura do artigo 37, abstrai-se o dever da Administração em providenciar a vinda aos autos de documentos quando os interessados declarem que se referem a fatos ou dados, registrados na repartição responsável pela condução do procedimento, ou em outro órgão.
Enfim, a colaboração entre a Administração e os particulares foi realçada do ordenamento jurídico alienígena pelo art. 7° do Código do Procedimento Administrativo de Portugal.
Segundo pontua Edílson Pereira Nobre Júnior[73], da mesma forma, frauda o princípio da boa-fé “a insistência da Administração em de negar pleitos do administrado, quando estes estão sintonizados com a interpretação sufragada, em matéria constitucional, pelo Pretório Excelso, através de seu plenário, ou de ambas as suas turmas. Idem se persistir no desprezo de direitos, cujo reconhecimento é aceito, sem discussão, pelo Superior Tribunal de Justiça, no exercício da tarefa de cústode-mor da lei federal”.
Reitera ainda o citado professor em sua consagrada obra[74], com apoio na doutrina espanhola, que “a atitude da Administração Pública de postergar, no seu cotidiano, as recomendações de jurisprudência, tranqüila, uniforme e torrencial, expõe-se à censura de JUAREZ DE FREITAS: ´Sem dúvida, o princípio da moralidade exige que a Administração Pública atue de sorte a se fazer paradigmática no respeito às instituições e aos cidadãos, não podendo ser a primeira a dar o tenebroso exemplo de litigância de má-fé ou de maneirista descaso em relação ao sentido máximo do plexo normativo, emprestado pelo Poder Judiciário. O contrário de tal respeito pode significar, ao menos, o virtual manejo excessivo da imensa gama país, ao enorme o ajuizamento de defesa se patenteia de recursos, utilizados para não honrar os improteláveis compromissos que a lealdade e a boa-fé impõem, tanto no processo administrativo quanto fora dele`”.
Por sua vez, já o espanhol José Gonzalez Perez[75], atento ao texto constitucional espanhol de 1978, expõe que “os precedentes iterativos hão de lograr cumprimento não apenas nas hipóteses singulares, nas quais operou-se o trânsito em julgado, mas, igualmente, devem servir de base à solução, na via administrativa, de pedidos semelhantes, pena de maltrato à boa-fé”. Noutro ponto, assim salienta: “o princípio da boa-fé que, sem sombra de dúvidas, limita a autotutela administrativa, abomina a sua utilização prematura, quando ainda não o exigir o interesse público”.
FIGUEIREDO, Marcelo. O Controle da Moralidade na Constituição. Malheiros: São Paulo, 1999
Informações Sobre o Autor
Sílvio Ernane Moura de Sousa
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, Pós-graduado em Processo Civil pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, Mestrando em Direito Público pela Universidade de Franca – UNIFRAN-SP, autor em parceria da Obra Jurídica: “Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Comentada – Jurisprudência e Prática”, ex-procurador do Município de Araguari-MG e servidor público concursado diante o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – TJMG.