Resumo: O presente artigo pretende analisar a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância (ou bagatela), nos crimes contra a flora. O principal enfoque é, diante do atual estágio da ciência e diante do Princípio da Precaução, é possível falar em bagatela quando a flora (ou um ecossistema específico) é atingida? Para completa explanação do tema, houve a abordagem, mesmo que de forma sumária, do conceito de crime, do princípio da insignificância e, sobretudo, da natureza do referido princípio. Trata-se de causa de exclusão da ilicitude, exclusão da culpabilidade, ou apenas um princípio geral de direito? Diante da natureza do princípio da insignificância, houve a abordagem do momento em que o referido princípio deve ser aplicado.
Palavras-Chave: Direito Penal. Princípio da Insignificância ou Bagatela. Crimes Contra o Meio Ambiente. Exclusão. Tipicidade. Ilicitude. Culpabilidade.
Abstract: This article intends to analyze the principle of insignificance, especially the application of this principle for Environmental Crimes. For a full explanation, the analysis of crime, principle of insignificance, vagueness doctrine and wrongfully concepts was carried out, as well as the main aspect of the principle of insignificance and the nature of this principle. This article also intends to analyze when the principle of insignificance is used, and which is the competent authority to apply. There is, also, an explanation of the limits of the principle of insignificance. Finally, the analysis of Environmental Crimes concepts, especially Federal Law 9.605/98, was carried out.
Keywords: Crime. Environmental Crimes. Principle of Insignificance. Vagueness doctrine. Wrongfully. Culpability. Exculpatory.
Sumário: Introdução; 1 Do Direito Ambiental; 2 Dos Princípios do Direito Ambiental; 3 Do Direito Penal; 4 Do Crime; 5 Do Fato Típico; 6 Dos Crimes Ambientais; 7 Do Princípio da Insignificância (ou Bagatela); 8 Da Aplicação do Princípio da Insignificância nos Crimes contra a Flora; 9 Conclusão; 10 Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende abordar uma relevante questão na prática dos operadores do direito, especialmente dos operadores voltados ao direito penal e ambiental. Trata-se da aplicação do princípio da insignificância (ou bagatela) nos crimes contra a flora.
A legislação penal pretende garantir os bens jurídicos mais relevantes para a sociedade e o indivíduo.
Contudo, a aplicação da legislação penal vigente revela que, em alguns casos concretos, a literalidade da lei pode gerar falta de proporcionalidade entre a conduta praticada e a sanção cominada, o que, em última análise, gera ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Assim, foi elaborada a tese no sentido de que somente é aplicada a legislação penal quando, no caso concreto, houver um mínimo de violação ao bem jurídico tutelado, afastando sua aplicação quando o dano for inexistente ou irrisório.
Concebido com foco nos crimes patrimoniais (furto de um clips de papel, por exemplo), o princípio da insignificância ganhou terreno e surgiram defensores de sua aplicação nos crimes contra a saúde pública e até mesmo nos crimes contra o meio ambiente.
Esse é o foco principal do presente artigo. É possível aplicar o princípio da insignificância nos crimes contra a flora? Nesse ponto, nasce o principal enfoque do presente artigo: diante do atual estágio da ciência, bem como diante do Princípio da Precaução, é possível certificar, com segurança, a inexistência de dano para a flora ou a um determinado ecossistema?
Houve uma sumária explanação sobre o conceito de crime, bem como sobre o princípio da insignificância. A natureza jurídica do princípio, seus requisitos e o momento de sua aplicação também foram abordados.
1 DO DIREITO AMBIENTAL
A Constituição Federal, no artigo 225, estabelece a viga mestre do direito ambiental nacional:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
§ 2º – Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3º – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º – A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5º – São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
§ 6º – As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.”
Sobre o referido artigo do texto magno, Antônio Herman Benjamin afirma:
“Na perspectiva ética, a norma constitucional, por refletir a marca da transição e do compromisso, incorporou aspectos estritamente antropocêntricos (proteção de favor das ‘presentes e futuras gerações’, p. ex., mencionada no artigo 225, caput) e outros com clara filiação biocêntrica (p. ex. a noção de ‘preservação’, no caput do artigo 225). Esse caráter híbrido, em vez de prejudicar sua aplicação e efetividade, salpica de fertilidade e fascínio o labor exegético. […]
Em outras palavras, o constituinte desenhou um regime de direitos de filiação antropocêntrica temporalmente mitigada (com titularidade conferida também às gerações futuras) atrelado, de modo surpreendente, a um feixe de obrigações com beneficiários que vão além, muito além, da reduzida esfera daquilo que se chama de humanidade. Se é certo que não se chega, pela via direta, a atribuir direitos à natureza, o legislador constitucional não hesitou em nela reconhecer valor intrínseco, estatuindo deveres a serem cobrados dos sujeitos-humanos em favor dos elementos bióticos e abióticos que compõem as bases da vida, de uma forma ou de outra, o paradigma do homem como prius é irreversivelmente trincado”[1].
Frederico Augusto Di Trindade Amado afirma:
“A definição legal do meio ambiente se encontra insculpida no artigo 3º, I, da Lei 6.938/1981, que pontifica que o meio ambiente é ‘o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas’ […] a definição de Direito Ambiental também não é simples, gozando da mesma dificuldade da conceituação do meio ambiente. É possível defini-lo como ramo do direito público composto por princípios e regras que regulam as condutas humanas que afetem, potencialmente ou efetivamente, direita ou indiretamente, o meio ambiente, quer o natural, o cultural ou artificial”[2].
Nesse ponto é importante destacar que o direito ambiental brasileiro tem início antes da Constituição Federal de 1988. Frederico Augusto Di Trindade Amado afirma:
“Nesse sentido, em especial a partir dos anos 60 do século passado, os países começaram a editar normas jurídicas mais rígidas para a proteção do meio ambiente. No Brasil, pode-se citar, por exemplo, a promulgação do novo Código Florestal, editado por meio da Lei 4.771/1965, assim como a Lei 6.938/81, que aprovou a Política Nacional do Meio Ambiente.
Mundialmente, o marco foi a Conferência de Estocolmo (Suécia), ocorrida em 1972, promovida pela ONU, com a participação de 113 países, onde se deu um alerta mundial sobre os riscos à existência humana trazidos pela degradação excessiva, em que pese à postura retrógada do Brasil à época, que buscava o desenvolvimento econômico de todo modo, pois de maneira irresponsável se pregava a preferência por um desenvolvimento econômico a qualquer custo ambiental (‘riqueza suja’) do que uma ‘pobreza limpa’”[3].
Diante da importância do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, o constituinte original insere verdadeira ordem ao legislador ordinário, determinando a edição de norma penal para punir a violação ao meio ambiente.
Atualmente, a principal norma que estabelece sanções penais por violações ao meio ambiente é a Lei 9.605/98, que será objeto de estudo mais aprofundado.
2 DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL
Paulo Bonavides, citando Ricardo Guastini, faz as seguintes considerações sobre os princípios de direito:
“De início, salienta que o vocábulo ‘princípio’ é utilizado para referir-se a normas ou disposições normativas dotadas de um alto grau de generalidade. Assim, de acordo com o autor, os princípios não são formulados em razão de uma situação em particular, mas em razão de uma gama imensurável de situações de fato. Em segundo lugar, o vocábulo se refere a normas ou disposições normativas dotadas de um alto grau de indeterminação. E é justamente por esta razão que demandam, para sua operabilidade, certo labor interpretativo, sem o qual não seriam oponíveis em casos concretos. Terceiro, o vocábulo é empregado quando os autores pretendem se referir a normas conferidas de um forte caráter programático. Logo, os princípios também exprimem esquemas genéricos, simples programas a serem desenvolvidos ulteriormente pela atividade dos legisladores ordinários, bem como objetivos do ordenamento e diretrizes de seu funcionamento. Em quarto lugar, os juristas comumente se utilizam do termo para designarem normas infligidas de altiva posição na hierarquia das fontes de Direito. Em quinto lugar, utiliza-se do vocábulo para se referir a normas dotadas de uma função importante e fundamental no sistema jurídico, seja em um sistema amplamente considerado (todo o ordenamento) ou em um subsistema qualquer (Direito Civil, Penal, Processual). Por último, mas não menos importante, […] o termo ‘princípio’ é empregado para designar normas dirigidas aos órgãos de aplicação do Direito, cuja específica função é fazer a escolha dos dispositivos ou normas aplicáveis aos casos concretos. […]
Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém”[4].
É possível afirmar que os princípios de direito (tanto implícitos quanto explícitos) são normas do ordenamento jurídico. O que diferencia os princípios das demais normas jurídicas é o valor axiológico.
Humberto Ávila nos traz importante estudo sobre as diferenças entre princípios e as demais normas jurídicas:
“As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”[5].
Os princípios são fundamentais para interpretação e aplicação do direito. Funcionam como verdadeiros vetores para as demais normas jurídicas, bem como fornecem balizas para atuação do legislador ordinário. Qualquer interpretação ou norma jurídica que viole um princípio, deve ser banida do ordenamento.
Apesar de inexistir hierarquia formal entre os princípios e as demais normas, é plenamente possível afirmar que os princípios ocupam, no aspecto axiológico, o mais elevado grau hierárquico.
Após a conceituação dos Princípios de Direito e da demonstração da importância para todo o ordenamento jurídico, é preciso analisar os princípios do direito ambiental.
Há princípios comuns a todos os ramos do direito (devido processo legal, por exemplo), bem como princípios referentes somente a determinado ramo do direito (princípio da bagatela no direito penal, por exemplo).
Frederico Augusto Di Trindade Amado formula importante observação sobre os princípios em direito ambiental:
“No que concerne aos princípios ambientais, digna de nota é a previsão expressa de inúmeros deles na Lei 11.428/2006, que regula o Bioma Mata Atlântica: função socioambiental da propriedade, da equidade intergeracional, da prevenção, da precaução, do usuário-pagador, da transparência das informações e atos, da gestão democrática, da celeridade procedimental, da gratuidade dos serviços administrativos prestados ao pequeno produtor rural e às populações tradicionais e do respeito ao direito de propriedade.
Outrossim, uma série de princípios ambientais vem listada no artigo 3º, da Lei 12.187/2009, que aprovou a Política Nacional sobre Mudança do Clima: princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, este último, no âmbito internacional.[…]
Em Direito Ambiental, não há uniformidade doutrinária na identificação dos seus princípios específicos, bem como o conteúdo jurídico de muitos deles”[6].
Pois bem, no que tange ao escopo do presente artigo, dois princípios merecem destaque e definição.
O princípio da prevenção tem natureza constitucional. A preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, bem como a adoção de políticas e atividades que evitem o dano ambiental, são aspectos fundamentais da Constituição Federal.
Frederico Augusto Di Trindade Amado faz a seguinte explanação sobre o princípio da prevenção:
“Por este princípio, implicitamente consagrado no artigo 225, da CFRB, e presente em resoluções do CONAMA, já se tem base científica para prever os danos ambientais decorrentes de determinada atividade lesiva ao meio ambiente, devendo-se impor ao empreendedor condicionantes no licenciamento ambiental para mitigar ou elidir os prejuízos. Ele se volta a atividades de vasto conhecimento humano (risco certo, conhecido e concreto), em que já se definiram a extensão e a natureza dos danos ambientais, trabalhando com boa margem de segurança. Em Direito Ambiental, deve-se sempre que possível buscar a prevenção, pois remediar normalmente não é possível, dada à natureza irreversível dos danos ambientais, em regra. Exemplo de sua aplicação é a exigência de estudo ambiental para o licenciamento de atividade apta a causar degradação ambiental”[7].
Como se verifica da explanação acima, o princípio da prevenção tem por escopo a preservação do meio ambiente, pretendendo evitar a ocorrência de danos. Note-se que o princípio da prevenção tem incidência em áreas nas quais a ciência possui domínio do fenômeno envolvido.
Assim, diante de conhecida atividade de risco (risco conhecido) o princípio da prevenção impõe a adoção de medidas para que a atividade desenvolvida não gere danos.
Outro princípio de direito ambiental que merece destaque é o princípio da precaução. Uma análise menos detida poderia indicar que os princípios da prevenção e precaução teriam o mesmo conteúdo jurídico. Contudo, essa afirmação não está correta.
Frederico Augusto Di Trindade Amado faz a seguinte explanação sobre o princípio da precaução:
“De origem alemã, não tem previsão literal na CRFB, mas pode-se afirmar que foi implicitamente consagrado no seu artigo 225, conforme reconhecido pelo Ministro Carlos Britto, no julgamento do ACO 876 MC-AGR, pelo STF. É previsto na Declaração do Rio (ECO/1992), no Princípio 15: ‘de modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para precaver a degradação ambiental’. Ressalte-se que a Declaração do Rio de 1992 não tem natureza jurídica de tratado internacional para o Brasil, sendo uma espécie de compromisso mundial ético, tal qual a Declaração da ONU de 1948. Ou seja, se determinado empreendimento puder causar danos ambientais sérios ou irreversíveis, contudo inexiste certeza científica razoável fundada em juízo de probabilidade não remoto da sua potencial ocorrência, o empreendedor deverá ser compelido a adotar medidas de precaução para elidir ou reduzir os riscos ambientais para a população.
Outrossim, em casos extremos (perigo ambiental), será recomendável que o Poder Público não libere a atividade supostamente impactante até que haja uma evolução científica a fim de melhor analisar a natureza e a extensão dos potenciais males ambientais, pois é possível que não seja prudente arriscar. Assim, a incerteza científica milita em favor do meio ambiente e da saúde (in dubio pro natura ou salute). A precaução caracteriza-se pela ação antecipada diante do risco desconhecido. Enquanto a prevenção trabalha com o risco certo, a precaução vai além e se preocupa com o risco incerto. Prevenção se dá em relação ao perigo concreto, ao passo que a precaução envolve perigo abstrato ou potencial”[8].
Os Princípios da Prevenção e da Precaução buscam o mesmo fim, a preservação do meio ambiente. O princípio da prevenção incide quando há risco certo, vale dizer, quando a atividade expõe o meio ambiente a risco certo e conhecido. Incide quando a ciência tem pleno conhecimento e controle dos mecanismos ambientais envolvidos.
O princípio da precaução opera diante da incerteza científica. Isto é, quando se trata de mecanismo ambiental não plenamente dominado pelo homem (mudança climática, por exemplo), todas as medidas devem ser adotadas para evitar a ocorrência de qualquer dano ao meio ambiente.
Diante de incerteza científica, deve ser adotada uma postura de precaução, operando medidas para preservar o meio ambiente de danos que podem ocorrer e que, diante do atual nível de conhecimento científico, não podem ser plenamente excluídos.
Para o escopo do presente trabalho, a compreensão do conceito e âmbito de aplicação do princípio da precaução é premissa fundamental.
3 DO DIREITO PENAL
O escopo do presente artigo não permite realizar um estudo profundo e completo sobre o conceito de Direito Penal. Contudo, algumas considerações sobre esse ramo do direito são fundamentais para a compreensão do tema em análise, especialmente o conceito material.
Luiz Regis Prado formula um conceito bastante completo e preciso sobre o direto penal:
“O direito penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas consequências jurídicas – penas ou medidas de segurança (conceito formal). Enquanto sistema normativo, é integrado por normas jurídicas (mandatos, proibições e permissões) que criam o injusto penal, suas respectivas consequências e formas de exclusão. De outro lado, refere-se, também, a comportamentos considerados altamente reprováveis ou danosos ao organismo social, que afetam gravemente bens jurídicos indispensáveis à sua própria conservação e progresso (conceito material). A função primordial desse ramo da ordem jurídica radica na proteção de bens jurídicos – penais -bens do Direito- essenciais ao indivíduo e à comunidade. Para cumprir tal desiderato, em um Estado Democrático de Direito, o legislador seleciona os bens especialmente relevantes para a vida social e, por isso mesmo, merecedores da tutela penal. A noção do bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano. O Direito Penal é visto como uma ordem de paz pública e de tutela das relações sociais, cuja missão é proteger a convivência humana, assegurando, por meio da coação estatal, a inquebrantabilidade da ordem jurídica. Para sancionar as condutas lesivas ou perigosas a bens jurídicos fundamentais, a lei penal se utiliza de peculiares formas de reação – penas e medidas de segurança. Nesse particular aspecto, cabe salientar que, mais que um instrumento de controle social normativo – primário e formalizado -, assinala-se à lei penal uma função de proteção e garantia. Entretanto, tem sido destacado, com razão, que o direito penal está se convertendo, cada vez mais, em um instrumento de direção ou orientação social, sobretudo em matéria de tutela de bens jurídicos transindividuais”[9].
Da lição acima exposta, o mais importante, no momento, é a fixação do conceito material de direito penal. Isto é, somente há que se falar em norma de direito penal, quando determinadas ações afetem gravemente bens jurídicos indispensáveis à sociedade e indivíduos.
Mas qual seria o critério técnico jurídico capaz de delimitar os bens jurídicos indispensáveis à sociedade e indivíduos, bem como as ações que merecem a reprovação penal?
A simples existência da norma penal elegendo ações ilícitas e cominando sanções não é suficiente para a legitimação do Direito Penal. O conceito formal é necessário (veiculação do tipo e pena por meio de lei ordinária); porém, não é suficiente.
A solução técnica estaria na Constituição Federal, no princípio da dignidade da pessoa humana. Ao legislador ordinário é permitido estabelecer quais ações e bens jurídicos relevantes para fins de aplicação do direito penal, sendo certo que a atividade legislativa ordinária encontra limite no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Fernando Capez formula lição que fundamenta os argumentos aqui delineados:
“Significa, portanto, não apenas aquele que impõe a submissão de todos ao império da mesma lei, mas onde as leis possuam conteúdo e adequação social, descrevendo como infrações penais somente os fatos que realmente colocam em perigo bens jurídicos fundamentais para a sociedade. Sem esse conteúdo, a norma se configurará atentatória aos princípios básicos da dignidade humana. A norma penal, portanto, em um Estado Democrático de Direito não é somente aquela que formalmente descreve um fato como infração penal, pouco importando se ela ofende ou não o sentimento social de justiça; ao contrário, sob pena de colidir com a Constituição, o tipo incriminador deverá obrigatoriamente selecionar, dentre todos os comportamentos humanos, somente aqueles que realmente possuem real lesividade social. […]
Cabe ao operador do Direito exercer controle técnico de verificação da constitucionalidade de todo tipo penal e de toda adequação típica, de acordo com o seu conteúdo. Afrontoso à dignidade humana, deverá ser expurgado do ordenamento jurídico. […]
A dignidade humana, assim, orienta o legislador no momento de criar um novo delito e o operador no instante em que vai realizar a atividade de adequação típica. […]
É imperativo do Estado Democrático de Direito a investigação ontológica do tipo incriminador. Crime não é apenas aquilo que o legislador diz sê-lo (conceito formal), uma vez que nenhuma conduta pode, materialmente, ser considerada criminosa se, de algum modo, não colocar em perigo valores fundamentais da sociedade”[10].
Assim, a norma somente pode ser considerada norma de direito penal se, além do aspecto formal, revelar conduta materialmente lesiva a bens jurídicos relevantes da sociedade e do indivíduo, bem como não ofender ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
4 DO CRIME
A definição de crime não é tarefa simples e o exaurimento do tema não se dará no presente artigo, diante do escopo central.
O ordenamento jurídico nos fornece o conceito legal de crime, na Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei 3.914/41):
“Art 1º. Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas alternativas ou cumulativamente.”
Diante do referido texto legal, foram elaboradas diversas classificações. Uma delas foi analisada no item supra, mesmo que de forma indireta. A explanação sobre a definição de Direito Penal tratou do conceito material.
O mesmo raciocínio aplica-se à definição de crime. Crime, no sentido material, é toda ação ou omissão humana (ato de vontade, isto é, conduta) que lesa ou expõe a lesão (de forma abstrata ou concreta) bens jurídicos relevantes para a sociedade ou ao indivíduo. Note-se que esse conceito apresenta a mesma essência do conceito material de Direito Penal.
O conceito formal de crime envolve, somente, a subsunção da conduta à norma legal. Ou seja, circunscreve-se à coincidência do ato voluntário (incluída a omissão) à descrição legal, que implicará a imputação da pena cominada.
Fernando Capez, com o poder da síntese, define crime formal:
“O conceito de crime resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando seu conteúdo”[11].
Ressalte-se, contudo, que o conceito formal de crime não pode ser utilizado isoladamente. Vale dizer, a definição de crime somente estará completa, com a aplicação simultânea do conceito formal e do conceito material, sob pena de, ao se adotar somente o conceito formal, gerar inconstitucionalidade.
Fernando Capez, mais uma vez, ressalta a necessidade de coordenação do conceito material e do conceito formal de crime: “Considerar a existência de um crime sem levar em conta a sua essência ou lesividade material afronta o princípio constitucional da dignidade humana[12]”.
Por fim, resta o conceito analítico que, para o presente artigo, apresenta a maior relevância, na medida em que estabelece os elementos estruturais do crime. O estudo desses elementos é fundamental para compreensão do princípio da insignificância e, sobretudo, o momento de sua aplicação.
Diante da precisão técnica, mais uma vez, utiliza-se as palavras de Fernando Capez:
“É aquele que busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais do crime. A finalidade desse enfoque é proporcionar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador ou intérprete desenvolva o seu raciocínio em etapas. Sob esse ângulo, crime é todo fato típico e ilícito. Dessa maneira, em primeiro lugar deve ser observada a tipicidade da conduta. Em caso positivo, e só neste caso, verifica-se se a mesma é ilícita ou não. Sendo o fato típico e ilícito, já surge a infração penal. A partir daí, é só verificar se o autor foi ou não culpado pela sua prática, isto é, se deve ou não sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu. Para a existência da infração penal, portanto, é preciso que o fato seja típico e ilícito”[13].
A explanação nos revela que o crime é formado pelo fato típico e ilicitude. Trata-se do conceito bipartido de crime, adotado também pelo Código Penal Brasileiro, segundo entendimento de Fernando Capez, cuja orientação é seguida no presente artigo.
É preciso afirmar que este tema gera muita divergência. Basileu Garcia sustentava que os elementos do crime eram: fato típico, ilicitude, culpabilidade e punibilidade.
A posição de Basileu Garcia restou minoritária, pois a punibilidade é consequência da prática do crime e não seu requisito. Vale dizer, o crime existe independente da punibilidade. Logo, a posição do mestre resta somente para fins acadêmicos.
Mas existe uma terceira orientação. Nelson Hungria, Aníbal Bruno, E. Magalhães Noronha e Luiz Regis Prado adotam a posição tripartida. Crime é formado pelo fato típico, ilicitude e culpabilidade.
A discussão sobre qual teoria do crime foi adotada pelo Código Penal Brasileiro, apesar de possuir ricos argumentos, não influencia diretamente no presente artigo.
O foco do presente artigo é o princípio da insignificância. Assim, como será demonstrado, o ponto de ligação entre esse princípio e o conceito de crime se dá no fato típico. A culpabilidade, ponto de divergência entre a teoria bipartida e tripartida, não influencia no princípio da insignificância.
Assim, para o presente artigo, são suficientes as considerações sobre o conceito de crime desenvolvidas até o momento. Porém, é preciso elaborar com mais profundidade o conceito de fato típico.
5 DO FATO TÍPICO
Conforme exposto no item supra, o fato típico é, pela classificação analítica, elemento do conceito de crime. Luiz Regis Prado conceitua fato típico e faz importante diferenciação entre fato típico e tipicidade:
“Assim, stricto sensu, o tipo penal consiste na descrição da conduta contrária à proibição ou ao mandato, a que se refere a cominação penal. O tipo é a descrição abstrata de um fato real que a lei proíbe (tipo incriminador). Como efeito, para que uma ação ou omissão constituam delito, devem estar compreendidas num tipo de injusto do Código Penal ou de uma lei especial. Essa necessidade é derivada do princípio da legalidade, e implica a função de garantia do tipo. Desse modo, o tipo legal vem a ser o modelo, imagem ou esquema conceitual da ação ou da omissão vedada, dolosa ou culposa. É a expressão concreta dos específicos bens jurídicos amparados pela lei penal. O tipo – como tipo de injusto – compreende todos os elementos e/ou circunstâncias que fundamentam o injusto penal específico de uma figura delitiva (= de uma conduta). Serve de base à ilicitude particular de uma ação ou omissão típica. Tipo de injusto é a ação ou omissão típica e ilícita. Está implícita a valoração da conduta típica como ilícita ou antijurídica. Ao tipo penal cabe delimitar um injusto específico penal, como injusto qualificado em especial medida, e, ao mesmo tempo, um injusto penal específico, diante do injusto genérico. De seu turno, a tipicidade é a subsunção ou adequação do fato ao modelo previsto no tipo legal. É um predicado, um atributo da ação, que a considera típica (juízo de tipicidade positivo) ou atípica (juízo de tipicidade negativo). Daí ser a ação típica um substantivo, isto é, a ação já qualificada ou predicada como típica (subsumida ao tipo legal). A tipicidade é a base do injusto penal. Mais tecnicamente, averba-se que a tipicidade penal se apresenta como resultado de uma concreção da norma mediante a lei penal, e ainda que é a tipicidade penal que atribui a um injusto o caráter específico de injusto penal ou punível. Com a tipicidade, delimita-se, portanto, o âmbito do jurídico-penalmente relevante – o âmbito do punível -, em que se estabelecem as fronteiras e os contornos da intervenção penal”[14].
Verifica-se, portanto, que o tipo penal veicula o núcleo material, ou seja, a conduta (ação ou omissão), que, se praticada, implica a imputação da pena cominada.
É o fato humano (conduta – ação ou omissão), que se enquadra com perfeição aos elementos descritos no tipo penal.
Por exemplo, o artigo 121 do Código Penal estabelece: “Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos”. O fato típico é consubstanciado pelo verbo matar. Essa é a conduta eleita pelo legislador como capaz de imputar a aplicação da pena.
Importante destacar, desde já, um aspecto importante quanto ao fato típico. Conforme explicitado por Luiz Regis Prado, o fato típico tem profunda função de garantia, na medida em que deve descrever, com precisão, a conduta que imputa a pena cominada. Dessa forma, somente com a perfeita subsunção do fato à norma (tipicidade) é que haverá a incidência da norma penal.
Neste contexto, não se pode falar em interpretação ampliativa da norma penal incriminadora. Não cabe analogia para aumentar o âmbito de incidência da norma penal incriminadora. Afinal, entendimento contrário, violaria o princípio da legalidade e o princípio da anterioridade, que estabelecem que o fato típico deve ser anterior à conduta e estar previsto em lei.
Os elementos apresentados até o momento são suficientes para a análise do escopo principal do artigo. Contudo, ainda é preciso uma última observação sobre o fato típico.
Nos crimes materiais (que demandam a realização de resultado naturalístico para sua consumação), o fato típico é decomposto nos seguintes elementos: (i) conduta, (ii) resultado naturalístico, (iii) relação de causalidade e (iv) tipicidade.
Os elementos mais relevantes (conduta e tipicidade), já foram abordados no presente item. Por sua vez, o resultado naturalístico é a modificação do mundo exterior causada pela conduta do agente. O nexo de causalidade é a implicação entre a conduta praticada e o resultado gerado.
Como exemplo de crime material podemos, mais uma vez, citar o artigo 121 do Código Penal, na qual a conduta do agente gera a morte de um ser humano.
Nos crimes formais e de mera conduta, o fato típico é decomposto nos seguintes elementos: (i) conduta e (ii) tipicidade. Não há que se falar em resultado naturalístico e nexo de causalidade. Isso porque, nos crimes formais, o resultado naturalístico, apesar de possível, não é exigido pela norma penal para consumação. Por sua vez, nos crimes de mera conduta, o resultado naturalístico é impossível.
Após essa explanação podemos adentrar ao princípio da insignificância ou bagatela.
6 DOS CRIMES AMBIENTAIS
A leitura do artigo 225 da Constituição Federal revela que há comando do constituinte originário para que o legislador ordinário estabeleça sanções penais em caso de violação ao meio ambiente (potencial ou efetiva).
Há, no Brasil, diversas normas que estabelecem sanções penais por violações ao meio ambiente. Cabe destacar a Lei 9.605/98.
É evidente que o presente artigo não pretende fazer um estudo exaustivo da Lei 9.605/98. Na verdade, para os fins do presente artigo, é necessário, somente, alertar o leitor sobre os dispositivos inseridos na lei em comento, bem como destacar os crimes contra a flora.
O destaque aos crimes quanto à flora se justifica pela complexidade da incidência do princípio da bagatela nos referidos crimes. A Lei 9.605/98 estabelece os crimes contra a flora nos artigos 38 a 53. Dentre eles, cabe destaque para os seguintes tipos penais:
“Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:
Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade.
Art. 38-A. Destruir ou danificar vegetação primária ou secundária, em estágio avançado ou médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção: (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade. (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).
Art. 39. Cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente:
Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Art. 40. Causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização:
§ 1o Entende-se por Unidades de Conservação de Proteção Integral as Estações Ecológicas, as Reservas Biológicas, os Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios de Vida Silvestre. (Redação dada pela Lei nº 9.985, de 18.7.2000)
§ 2o A ocorrência de dano afetando espécies ameaçadas de extinção no interior das Unidades de Conservação de Proteção Integral será considerada circunstância agravante para a fixação da pena. (Redação dada pela Lei nº 9.985, de 18.7.2000)
§ 3º Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade.”
Os referidos dispositivos legais demandariam, para sua completa análise, um amplo estudo sobre o fato típico, circunstâncias objetivas, materialidade, dentre outros aspectos que podem ser extraídos do conceito analítico de crime.
No que tange ao presente artigo, é importante destacar o objeto material dos crimes em questão.
O artigo 38 tem por objeto material as florestas de proteção permanente, mesmo que em formação. O artigo 38-A fala em vegetação primária ou secundária, em estágio avançado ou médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica. O artigo 39 tem, por objeto material, árvores em florestas consideradas de preservação permanente e o artigo 40 tem como objeto material as Unidades de Conservação e áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização.
As áreas mencionadas no Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, são as áreas localizadas em um raio de 10 km das Unidades de Conservação.
Pode-se concluir que o foco dos referidos tipos penais é a preservação da flora e dos ecossistemas específicos, como a Mata Atlântica e as Unidades de Conservação.
7 DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA (OU BAGATELA)
Conforme visto nos itens supra, só é possível falar em crime quando existir a efetiva violação ao bem jurídico tutelado e que esse bem seja relevante para o indivíduo ou sociedade. Trata-se, como visto, da consagração do conceito material de crime.
A violação de bem jurídico relevante é fundamental para a elaboração, pelo legislador ordinário, do tipo penal.
Mas não é só. Quando da subsunção do fato à norma, é necessário que a conduta praticada tenha, no caso concreto, violado o bem jurídico tutelado.
Diante dessas premissas, houve o questionamento sobre a incidência do direito penal perante condutas que, apesar de abstratamente corresponderem ao tipo penal, não apresentam, no caso concreto, efetiva violação ao bem jurídico.
É nesse contexto que nasce o princípio da insignificância penal (ou bagatela). Cleber Masson faz explanação que sintetiza o princípio da bagatela e seus principais aspectos:
“O princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela surgiu no Direito Civil, derivado do brocado de minimus no curat praetor. Em outras palavras, o Direito Penal não deve se ocupar de assuntos irrelevantes, incapazes de lesar o bem jurídico legalmente tutelado. Na década de 70 do século passado, foi incorporada ao Direito Penal pelos estudos de Claus Roxin. Este princípio, calcado em valores de política criminal, funciona como causa de exclusão da tipicidade, desempenhando uma interpretação restritiva do tipo penal. Para o Supremo Tribunal Federal, a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação desse princípio. […]
Com a caracterização desse princípio, opera-se tão somente a tipicidade formal, isto é, adequação entre o fato praticado pelo agente e a lei penal incriminadora. Não há, entretanto, tipicidade material, compreendida como o juízo de subsunção capaz de lesar ou ao menos colocar em perigo o bem jurídico penalmente tutelado. […]
Em síntese, o princípio da insignificância tem força suficiente para descaracterizar, no plano material, a própria tipicidade penal, autorizando inclusive a concessão de ofício de habeas corpus pelo Poder Judiciário. […]
O princípio da insignificância tem aplicação a qualquer espécie de delito como que ele seja compatível, e não apenas aos crimes contra o patrimônio”[15].
É preciso destacar que o princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade. Ou seja, quando da incidência do referido princípio, não há que se falar em fato típico.
Note-se que, com suporte no entendimento do STF, destacado por Cleber Masson, é possível afirmar que os requisitos objetivos para aplicação do princípio em tela são: a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica.
Todos os requisitos possuem uma premissa comum, a ausência de violação (ou irrisória violação) ao bem jurídico. Exemplo clássico é o furto de um clips para papel.
Se o princípio da insignificância funciona como causa de exclusão da tipicidade, é de rigor a conclusão de que somente requisitos objetivos são necessários para sua aplicação. Ou seja, por se tratar de princípio com aplicação ligada ao fato típico, circunstâncias não relacionadas à materialidade (reincidência, profissão do agente, etc.) não podem ser consideradas para afastar a aplicação do princípio.
Admitir raciocínio distinto é considerar que a ocorrência do fato típico e a incidência da norma penal dependem das características pessoais do agente acusado; o que não se coaduna com a estrutura de crime acima demonstrada e com os princípios básicos do Direito Constitucional vigente (Princípio Republicano, Princípio da Igualdade e Princípio da Dignidade da Pessoa Humana)[16].
Portanto, a melhor técnica aponta para a irrelevância dos fatos pessoais do agente para fins de aplicação do princípio da insignificância. Logo, não se pode negar a incidência do princípio da insignificância diante, por exemplo, da reincidência do agente.
Contudo, cabe destacar que esse não é o entendimento que prevalece no STF, conforme se constata do voto do Ministro Gilmar Mendes, em recente julgado:
“Da leitura do trecho acima transcrito, verifica-se que os pacientes tiveram suas penas agravadas por serem reincidentes na prática de crime contra o patrimônio. No ponto, registro que, na Turma, tenho-me posicionado, juntamente com Sua Excelência o Ministro Celso de Mello, no sentido da possibilidade de aplicação do princípio da bagatela em casos a envolver reincidentes. Nesse sentido, cito os HC 112.400/RS de minha relatoria, DJe 8.8.2012, e 116.218/MG, Relator originário Min. Gilmar Mendes, Redator p/ o acórdão Min. Teori Zavaski. É que, para aplicação do princípio em comento, somente aspectos de ordem objetiva do fato devem ser analisados. E não poderia ser diferente. Isso porque, levando em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o paciente possuir antecedentes criminais. Partindo-se do raciocínio de que crime é fato típico, antijurídico ou, para outros, fato típico, antijurídico e culpável, é certo que, uma vez excluído o fato típico, não há que se falar em crime. É por isso que reputo mais coerente a linha de entendimento segundo a qual, para incidência do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa, o fato em si, não os atributos inerentes ao agente, sob pena de, ao proceder-se à análise subjetiva, dar-se prioridade ao contestado e ultraprassado direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato. No entanto, as turmas do STF já se posicionaram no sentido de afastar a aplicação do princípio da insignificância aos acusados reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada: HC 97.007/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe 31.03.2011; HC 101.998/MG, rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 22.03.2011; HC 103.359/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 6.8.2010, e HC 112.597/PR, rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 10.12.2012. Desse modo, ressalvo minha posição pessoal, mas, em homenagem ao princípio do colegiado, adoto a orientação no sentido de afastar o princípio da insignificância quando os autos sinalizam a reiteração delitiva, o que se verifica na espécie. Nesses termos meu voto é no sentido de denegar a ordem”[17].
Portanto, diante do entendimento do STF, para aplicação do princípio da insignificância, é preciso considerar, além dos aspectos objetivos já aventados, os aspectos pessoais do agente, tais como a ausência de reincidência e ausência de habitualidade criminal.
Outro aspecto fundamental para o presente artigo é o seguinte: se o princípio da insignificância funciona como exclusão da tipicidade do crime, quem pode reconhecer sua aplicação e em que momento deve ser aplicado?
Se o princípio da insignificância exclui o fato típico e o próprio crime, por consequência lógica, qualquer aplicador do direito (delegado de polícia, consultoria jurídica da administração, etc.) pode, ao analisar o caso concreto, reconhecer a aplicação do princípio.
Cite-se o exemplo do furto de um clips de papel. Nesse caso, é evidente a total incidência do princípio da insignificância e a ausência de materialidade da conduta. Logo, se não há crime, é perfeitamente plausível que a autoridade policial (delegado de polícia, por exemplo), ao tomar conhecimento do fato, registre a ocorrência e elabore portaria para não instauração de inquérito policial, na medida em que evidente a ausência de crime.
A conclusão acima exposta, apesar de mais adequada, não encontra respaldo na jurisprudência. Prevalece o entendimento de que somente o Poder Judiciário pode aplicar o princípio da insignificância. Cleber Masson, apesar de ter posicionamento consoante ao aqui exposto, afirma:
“A quem compete valorar a incidência do princípio da insignificância? Em outros termos, a autoridade policial pode deixar de efetuar a prisão em flagrante, por reputar presente a criminalidade de bagatela? O Superior Tribunal de Justiça entende que somente o Poder Judiciário é dotado de poderes para efetuar o reconhecimento do princípio da insignificância. Destarte, a autoridade policial está obrigada a efetuar a prisão em flagrante, cabendo-lhe submeter imediatamente a questão à autoridade judiciária competente. Como já se decidiu, no momento em que toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso concreto. Com o devido respeito, ousamos discordar dessa linha de pensamento, por uma simples razão: o princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial. Não se pode conceber, exemplificativamente, a obrigatoriedade da prisão em flagrante no tocante à conduta de subtrair um único pãozinho, avaliado em poucos centavos, do balcão de uma padaria, sob pena de banalização do Direito Penal e do esquecimento de outros relevantes princípios, tais como o da intervenção mínima, da subsidiariedade, da proporcionalidade e da lesividade. Para nós, o mais correto é agir com prudência no caso concreto, acolhendo o princípio da insignificância quando a situação fática efetivamente comportar sua incidência”[18].
No sentido da exclusividade do Poder Judiciário na apreciação do princípio da insignificância, vale o destaque do seguinte julgado do STJ:
“Logo, a declaração de atipicidade do crime de furto por esta Corte não retira a legalidade da ordem de prisão efetuada pelos policiais militares, pois, no momento da prisão em flagrante do paciente, havia a presunção de cometimento do crime contra o patrimônio. Cumpre asseverar que a observância do princípio da insignificância no caso concreto é realizada a posterior, pelo Poder Judiciário, analisando as circunstâncias peculiares de cada caso”[19].
Apesar do princípio da insignificância ser uma causa de exclusão da tipicidade e, consequentemente, afastar a existência de crime, a jurisprudência afirma que somente a autoridade judiciária pode apreciar a aplicação do referido princípio.
8 DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES CONTRA A FLORA
Nos itens supra, foi abordado, mesmo que de forma sumária, os conceitos de crime e os crimes contra o meio ambiente. De forma mais específica, foram destacados alguns crimes contra a flora. Destacou-se a materialidade dos referidos crimes, com destaque para a preservação de ecossistemas específicos (por exemplo, a Mata Atlântica).
A questão que se pretende responder é a seguinte: é possível a aplicação do princípio da bagatela (insignificância) nos crimes contra a flora, especialmente naqueles que visam proteger determinados ecossistemas, como a Mata Atlântica.
Vladimir e Gilberto Passos de Freitas assim se manifestam sobre a aplicação do princípio da bagatela nos crimes contra o meio ambiente:
“Tratando especificamente da proteção ambiental, a primeira indagação que deve ser feita é se existe lesão que possa ser considerada insignificante. A resposta a tal pergunta deve ser positiva, mas com cautela. Não basta que a pouca valia esteja no juízo subjetivo do juiz. É preciso que fique demonstrada no caso concreto. É dizer, o magistrado, para rejeitar a denúncia ou absolver o acusado, deverá explicitar, no caso concreto, porque a infração não tem significado”[20].
A doutrina acima citada parte da premissa que é possível a incidência do princípio da insignificância nos crimes contra o meio ambiente, desde que provada, no caso concreto, a inexistência de dano.
Quanto ao tema, cabe explorar o julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 439-1/SP. No caso em comento, o Ministério Público de São Paulo denunciou o falecido deputado federal Clodovil Hernandes por crime ambiental (artigo 40 da Lei 9.605/98).
A denúncia afirmava que Clodovil Hernandes havia causado dano ambiental na Unidade de Conservação da Serra do Mar, ao desmatar (asfaltamento) de vegetação de capoeira em estágio inicial. A extensão do dano foi fixada em 652 metros.
Após manifestação do Procurador Geral da República, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu a aplicação do princípio da insignificância e absolveu o réu. Interessante notar que a manifestação do Procurador Geral da República foi pela aplicação do princípio da insignificância.
Os votos exarados no julgado destacam o reduzido impacto econômico para recuperação do meio ambiente (R$130,00 – aproximadamente), o que fundamentaria a aplicação do princípio da insignificância. O referido feito transitou em julgado.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar processo penal envolvendo o artigo 40 da Lei 9.605/98, também reconheceu a aplicação do princípio bagatela:
“PENAL. DANO AO MEIO AMBIENTE (ART. 40 DA LEI N. 9.605/98). CONSTRUÇÃO DE CASA DE ADOBE. DELITO INSTANTÂNEO DE EFEITOS PERMANENTES. CONDUTA ANTERIOR À LEI INCRIMINADORA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CRIME. INEXISTÊNCIA. DOLO DE DANO. AUSÊNCIA. MORADIA. DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL. ÁREA CONSTRUÍDA. 22 (VINTE E DOIS) METROS QUADRADOS. INSIGNIFICÂNCIA. PROCESSO PENAL. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA.
1. A construção de casa de adobe em área de preservação ambiental constitui dano direto instantâneo de efeitos permanentes. Precedentes.
2. Não há crime sem lei anterior que o defina (art. 1º do Código Penal.
3. Conduta anterior à vigência da Lei n. 9.605/1998.
4. A construção de casa para servir de moradia ao acusado e sua família não configura dolo de dano ao meio ambiente, pois traduz necessidade e direito fundamental ao chão e ao teto (art. 6º da Constituição Federal.
5. O direito penal não é a prima ratio; o dano causado ao meio ambiente decorrente da edificação de casa com 22 (vinte e dois) metros quadrados não ultrapassa os limites do crime de bagatela e pode ser resolvido por meio de instrumentos previstos em outros ramos do Direito Civil.
6. Ordem concedida para cassar o acórdão e restaurar a sentença absolutória”[21].
É possível concluir que, atualmente, prevalece o entendimento de que o princípio da insignificância é aplicável aos crimes ambientais. Portanto, comprovado o dano ambiental insignificante ou nulo, não há que se falar em crime.
O entendimento atual não parece ser a melhor solução. A Constituição Federal (artigo 225) veicula o princípio implícito da precaução. Conforme item supra, o princípio da precaução incide para proteção do meio ambiente, quando inexiste certeza científica da existência de dano ao meio ambiente.
Portanto, em caso de dúvida quanto à potencialidade lesiva ao meio ambiente, devem ser adotadas todas as medidas necessárias para evitar potenciais danos ao meio ambiente.
No que tange aos crimes contra o meio ambiente (especialmente a flora), o princípio da bagatela (insignificância) somente pode incidir se não estiver em conflito com o princípio constitucional da precaução.
Somente seria possível a incidência do princípio da bagatela nos crimes ambientais quando existir certeza científica de que nenhum dano ambiental foi gerado, ou o referido dano é irrisório. Somente assim é possível conciliar o princípio da bagatela, com o princípio da precaução.
A lição doutrinária acima transcrita e os julgados dos Tribunais Superiores adotam essa premissa, ou seja, somente reconhecem a incidência do princípio da bagatela nos crimes ambientais quando existir certeza de que nenhum dano ambiental foi gerado.
Ocorre que, especialmente no caso dos crimes contra a flora, não é possível existir certeza quanto à inexistência de dano ao meio ambiente. Assim, diante da inexistência de certeza e da necessidade de respeito ao Princípio da Precaução, é de rigor a impossibilidade de aplicação do princípio da bagatela.
Isso porque, ao tratar de crime ambiental, o valor monetário envolvido (custo para reparação do dano ambiental) é dado de menor importância. É preciso verificar, em termos científicos, se houve algum dano ao meio ambiente, por menor que possa ser.
Um exemplo é útil para ilustrar a questão em comento. É possível, em tese, aplicar o princípio da insignificância diante do desmatamento de pequena área de Mata Atlântica (como ocorreu na Ação Penal 439-1/SP – Supremo Tribunal Federal).
Porém, diante de casos concretos, é impossível a aplicação do princípio da insignificância, na medida em que é impossível certificar a inexistência de dano ambiental. É impossível afirmar, com certeza, que, apesar da pequena dimensão, não houve nenhum dano ambiental. É plenamente possível que espécies microscópicas sejam extintas, com relevante prejuízo a todo ecossistema.
A Instituição IN BIO VERITAS (http://www.inbioveritas.net/pt-br) foi criada exatamente com o objetivo de ampliar o conhecimento científico sobre a Mata Atlântica. O pesquisador Ricardo Britez, responsável pelo projeto, afirma, em entrevista disponível no site da Instituição: “A ideia surgiu do contato com outros pesquisadores, pois percebemos a lacuna de conhecimento sobre a Mata Atlântica e a necessidade de articular melhor as competências de cada um”.
É possível afirmar, com segurança, que não existe pleno conhecimento científico que permita analisar se a agressão à flora, apesar de envolver pequena extensão territorial, não gera qualquer dano.
Assim, diante da falta de certeza científica e em respeito ao princípio da precaução é de rigor o afastamento do princípio da insignificância nos crimes contra a flora.
9 CONCLUSÃO
O artigo 225 da Constituição Federal estabelece normas para proteção ao meio ambiente. Diante da importância do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, o constituinte original insere verdadeira ordem ao legislador ordinário, determinando a edição de normal penal para punir a violação ao meio ambiente.
Atualmente, a principal norma que estabelece sanções penais por violações ao meio ambiente é a Lei 9.605/98. Além do comando para a criação de normas penais voltadas à proteção ao meio ambiente, o texto magno veicula diversos Princípios para proteção ao meio ambiente.
Os princípios são fundamentais para interpretação e aplicação do direito. Funcionam como verdadeiros vetores das demais normas jurídicas, bem como fornecem balizas para atuação do legislador ordinário. Qualquer interpretação ou norma jurídica que viole um princípio, deve ser banida do ordenamento.
Apesar de inexistir hierarquia formal entre os princípios e as demais normas, é plenamente possível afirmar que os princípios ocupam, no aspecto axiológico, o mais elevado grau hierárquico.
Há dois princípios específicos do direito ambiental que mereceram destaque e definição mais detalhada. Trata-se do Princípio da Prevenção e do Princípio da Precaução.
O princípio da prevenção tem por escopo a preservação do meio ambiente, pretendendo evitar a ocorrência de danos. O referido princípio incide em áreas nas quais a ciência possui domínio do fenômeno envolvido. Vale dizer, onde os fenômenos ambientais são plenamente conhecidos pelo homem.
Assim, diante de conhecida atividade de risco (risco conhecido) o princípio da prevenção impõe a adoção de medidas para que a atividade desenvolvida não gere danos.
O princípio da precaução opera diante da incerteza científica. Isto é, quando se trata de mecanismo ambiental não plenamente dominado pelo homem (mudança climática, por exemplo), todas as medidas devem ser adotadas para evitar a ocorrência de qualquer dano ao meio ambiente.
O direito penal, no aspecto formal, pode ser conceituado como o ramo do direito formado por normas legais (lei ordinária), que estabelece as condutas proibidas, bem como as respectivas penas.
No aspecto material, o direito penal é o conjunto de normas legais que pretende garantir os mais importantes valores para a sociedade e para o indivíduo. Nesse aspecto, a norma legal somente pode atingir condutas que, efetivamente, afetem os bens jurídicos tutelados.
Cabe ao legislador ordinário determinar quais valores devem ser tutelados e quais condutas devem ser punidas. Essa atividade encontra limite na Constituição Federal, mediante a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Crime é, no aspecto formal, a conduta descrita pelo legislador em lei ordinária, ao qual é cominada determinada pena. No aspecto material, crime é toda ação ou omissão humana (conduta) que lesa ou expõe a lesão (de forma abstrata ou concreta) bens jurídicos relevantes para a sociedade ou para o indivíduo.
O conceito analítico de crime estabelece os elementos do crime e possui duas principais classificações. O conceito bipartido e o conceito tripartido. Para o conceito bipartido, crime é fato típico e ilícito. Para o conceito tripartido, crime é fato típico, ilícito e culpável.
O fato típico veicula o núcleo material, ou seja, a conduta (ação ou omissão), que, se praticada, implica a imputação da pena cominada. Possui, nos crimes materiais, os seguintes elementos: (i) conduta, (ii) resultado naturalístico, (iii) relação de causalidade e (iv) tipicidade. Nos crimes formais e de mera conduta, os elementos são os seguintes: (i) conduta e (ii) tipicidade.
Há, no Brasil, diversas normas que estabelecem sanções penais por violações ao meio ambiente. Contudo, mereceu análise mais detida a Lei 9.605/98, especialmente os crimes contra a flora.
O destaque aos crimes contra a flora se justifica pela complexidade da incidência do princípio da bagatela nos crimes em questão. A Lei 9.605/98 estabelece os crimes contra a flora nos artigos 38 a 53.
A leitura dos referidos dispositivos legais demonstra que o objeto material comum a todos é a preservação da flora e dos ecossistemas específicos, como a Mata Atlântica e as Unidades de Conservação.
O princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade material. Os requisitos objetivos para aplicação do princípio em tela são: a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica. Todos os requisitos possuem uma premissa comum, a ausência de violação (ou irrisória violação) ao bem jurídico.
Os tribunais superiores, para incidência do referido princípio, determinam, ainda, a observância de requisitos relativos ao agente (subjetivos), tais como a ausência de reincidência e inexistência de habitualidade criminosa.
Apesar de ser considerado como causa de exclusão da tipicidade, os tribunais superiores não admitem a aplicação do princípio da insignificância por qualquer autoridade administrativa (incluindo delegado de polícia). Portanto, somente o Judiciário pode determinar a aplicação do princípio da insignificância.
Conforme lição doutrinária e precedente do Supremo Tribunal Federal (Ação Penal 439-1/SP – transitada em julgado), é possível a aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra o meio ambiente.
O entendimento atual não parece ser a melhor solução. A Constituição Federal (artigo 225) veicula o princípio implícito da precaução. Portanto, em caso de dúvida quanto à potencialidade lesiva ao meio ambiente, devem ser adotadas todas as medidas necessárias para evitar potenciais danos ao meio ambiente.
Dessa forma, somente seria possível a incidência do princípio da bagatela nos crimes ambientais quando existir certeza de que nenhum dano ambiental foi gerado, ou que o referido dano é irrisório.
Ocorre que, especialmente no caso dos crimes contra a flora, não é possível existir certeza quanto à inexistência de dano ao meio ambiente. Assim, diante da inexistência de certeza e da necessidade de respeito ao Princípio da Precaução, é de rigor a impossibilidade de aplicação do princípio da bagatela.
Isso porque, ao tratar de crime ambiental, o valor monetário envolvido (custo para reparação do dano ambiental) é dado de menor importância. É preciso verificar, em termos científicos, se houve algum dano ao meio ambiente, por menor que possa ser.
Atualmente, especialmente no bioma mata atlântica, é impossível afirmar, com certeza, que, apesar de eventual pequena dimensão territorial, a inexistência de dano ambiental. É plenamente possível que, sem o conhecimento do homem, espécies microscópicas sejam extintas, com relevante prejuízo a todo ecossistema.
Assim, diante da falta de certeza científica e em respeito ao princípio da precaução, é de rigor o afastamento do princípio da insignificância nos crimes contra a flora.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Carita Correra
Procurador Federal, Bacharel em Direito pela PUC-SP, Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP