O Regime Jurídico do Nascituro

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a questão do regime jurídico do nascituro no que diz respeito a sua qualificação como sujeito de direito. Primeiramente, são abordadas as três correntes acerca do início da personalidade jurídica, quais sejam, a teoria natalista, a concepcionista e a condicionalista. Após, são feitas considerações sobre o tratamento da matéria no Direito Brasileiro, no Direito Peruano e no Direito Romano. Ao final, é concluído que o nascituro é sujeito de direito, mas com direitos patrimoniais submetidos a condição suspensiva, que é o nascimento. O trabalho é pautado notadamente pela metodologia dogmática, com utilização do estudo científico das fontes do Direito para alcançar os objetivos propostos, com destaque para a doutrina e o direito comparado pertinentes ao tema.

Palavras-chave:Nascituro. Regime Jurídico.

Abstract:The presentarticleaimstoanalyzethequestionofthe legal regime oftheunbornchild as regardstheirqualification as a subjectofright. First, isapproachedthethreechainsaboutthebeginningof legal personality.After, are madeconsiderationsaboutthetreatmentof material in theBrazilianright, in thePeruvianlawand Roman law. At theend, it isconcludedthattheunbornchildissubjectofright, butwithpropertyrightssubjecttotheconditionprecedent, thatisthebirth. The workisbasedonunquestionablenotablybydogmaticmethodology, withthe use ofscientificstudyofthesourcesoflawtoachievetheproposedobjectives, withemphasistothedoctrineandthecomparativelawrelevanttothetheme.

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Keywords:The unbornchild. Legal regime.

Sumário: Introdução. 1. O nascituro no Código Civil Brasileiro de 2002. 2. O nascituro no Código Civil Peruano de 1984. 3. Considerações ao Direito Romano. Conclusão.

Introdução

O direito, como instrumento que visa a possibilitar o convívio social, tem como razão de ser o homem. É do homem que emanam os valores norteadores das normas jurídicas e é a ele que tais normas se destinam. Encontrando-se o homem no centro do mundo jurídico, surgem dois conceitos a seu respeito indispensáveis de serem analisados e que, comumente, são tratados como sinônimos: pessoa e sujeito de direito.

Pessoa, como obviamente sugere o termo, é o ente dotado de personalidade. Esta, por sua vez, é definida como aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações (PEREIRA, 2008, p. 213). Trata-se, pois, de um conceito jurídico, não ontológico. O melhor raciocínio para tal compreensão é aquele por meio do qual se percebe o ser humano como fato do mundo natural, ao qual é conferida, pelo direito, a qualidade de pessoa.

Sendo, portanto, a pessoa ente capaz de direitos e obrigações, elemento subjetivo da relação jurídica, pode-se chegar à conclusão de que todo sujeito de direito é pessoa. No entanto, tal idéia deve ser melhor analisada, mormente quando se consideram disposições dos diferentes ordenamentos no que diz respeito ao início da personalidade e ao regime jurídico do nascituro.

Como opção política, a atribuição da personalidade ao ser humano assenta-se em três teorias, como asseveram FARIAS e ROSENVALD (2012, pp. 304-305):

"Organizando a compreensão da matéria e percebendo que a controvérsia traz como pano de fundo a discussão acerca do próprio início da personalidade jurídica, é possível observar que a doutrina se divide em três grandes teorias:

i) natalista, segunda a qual a personalidade civil somente se inicia com o nascimento com vida, inexistindo direitos para o nascituro antes de seu nascimento;

ii) da personalidade condicional, afirmando que desde a concepção o nascituro já possui direitos da personalidade, estando os direitos patrimoniais – decorrentes de herança, legado ou doação – condicionados ao nascimento com vida. Por isso, observando que os direitos patrimoniais estão condicionados, sustenta esta teoria que a própria personalidade jurídica está condicionada, apesar dos (sic) direitos da personalidade já serem reconhecidos desde a concepção;

iii) concepcionista, por meio da qual se afirma que o nascituro já titulariza, desde a concepção, os direitos da personalidade e, em razão disso, já dispõe de personalidade jurídica, apesar de seus direitos patrimoniais ficarem condicionados ao nascimento com vida. Ou seja, para os teóricos concepcionistas, se o nascituro já tem direitos da personalidade, é porque já dispõe da própria personalidade jurídica, mesmo que os direitos patrimoniais estejam condicionados".

Focalizando na questão do regime jurídico do nascituro, para melhor compreensão do tema, analisaremos disposições pertinentes no Código Civil Brasileiro (CCB), no Peruano e no Direito Romano, fazendo, no decorrer da apresentação, comparações entre os referidos ordenamentos.

1 O nascituro no Código Civil Brasileiro de 2002

Estabelece o art. 2º do CCB: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida (…)”. Pelo dispositivo, parece ter o legislador optado pela doutrina natalista. Porém, prosseguindo-se no referido texto, tem-se que: “(…) mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (grifamos).

Põe-se aqui um problema teórico de tempestuosa resolução: iniciando-se a personalidade somente com o nascimento, como se pode falar em direitos do nascituro se este não possui aptidão genérica para aquisição de direitos (personalidade)?

Segundo Caio Mário (2008, pp. 217-218), no projeto de Código Civil de Beviláqua, sustentava-se que, para proteção dos direitos do nascituro, necessário seria atribuir-lhe personalidade, uma vez que não se pode conceber direito sem sujeito, noção esta que aponta para a tese concepcionista. Vê-se aqui como se identifica o conceito de pessoa com o conceito de sujeito de direito.

Continua o renomado civilista afirmando que os direitos que são reconhecidos ao nascituro permanecem em estado potencial, e somente chegam a se constituir se o ser nascer com vida, não sendo o caso de se considerá-los como direitos condicionais pelo fato de não ser possível haver direito, ainda que condicional, se não há sujeito de direito. Constituindo-se o direito com o nascimento, retrotrai ao momento da concepção.

Todavia, há direitos do nascituro que não aguardam o nascimento para que sejam exercidos, como é o caso do direito à vida, à saúde, à integridade física, a alimentos, etc, não podendo, por conseguinte, falar-se em direito em potência ou mesmo direito condicional. Nesse sentido:

"De fato, é induvidoso o reconhecimento ao nascituro dos direitos necessários para que venha a nascer vivo (direitos da personalidade), enfim, dos direitos ligados à sua condição essencial para adquirir personalidade, tais como o direito de reclamar alimentos, à assistência pré-natal e à indenização por eventuais danos causados pela violação de sua imagem (…) ou de sua honra" (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 305).

O problema que aqui se instaura, ressalte-se, é o de ser possível atribuir direito a um ser sem personalidade, sendo que, por outro lado, não há direito sem sujeito.

Uma solução pertinente é colocada por Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2007, p. 157), segundo o qual a noção de sujeito de direito é mais abrangente que a de pessoa. Ao sujeito se atribuem normas que conferem direitos e deveres, e pode ser uma pessoa, natural ou jurídica, ou um patrimônio, ou o nascituro:

"Por fim, a noção de sujeito jurídico. Ela não se deixa explicar pelo conceito de papel social. É mais abrangente do que o de pessoa física ou jurídica. Toda pessoa física ou jurídica é um sujeito jurídico. A recíproca, porém, não é verdadeira. A herança jacente, os bens ainda em inventário, é (sic) sujeito de direito, mas não é pessoa (sic). O sujeito nada mais é do que o ponto geométrico de confluência de diversas normas. Esse ponto pode ser uma pessoa, física ou jurídica, mas também um patrimônio. A ela se atribuem, nele convergem normas que conferem direitos e deveres. Fala-se assim em sujeito ativo (de um direito subjetivo) e em sujeito passivo (de uma obrigação)".

Tal posicionamento será melhor abordado ao se analisarem as disposições do Código Civil Peruano de 1984.

2 O nascituro no Código Civil Peruano de 1984

“La persona humana es sujeto de derecho desde sunacimiento. La vida humana comienzaconlaconceptcion. El concebido es sujeto de derecho para todo cuantole favorece. La atribucion de derechospatrimonialesesta condicionada a que nazca vivo”. É o que estatui o Código Civil Peruano, no seu art. 1º, sob a ementa ‘Sujeto de Derecho’.

A primeira parte do dispositivo, tal qual o Código Brasileiro, tende para a tese natalista, atribuindo personalidade ao ser a partir do nascimento. Todavia, o legislador peruano andou melhor que o brasileiro ao claramente colocar o nascituro como sujeito de direito para tudo que lhe favorece, condicionando a atribuição de direitos patrimoniais o nascimento com vida.

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Segundo Luz Monge Talavera (2003, p. 195), no Código Peruano, sujeito de direito e pessoa não são sinônimos. "A distinção linguística entre os termos nos facilita resolver, a nível formal-normativo, a atribuição do caráter de sujeito de direito a diversas manifestações da vida humana não designadas ou conhecidas na doutrina ou legislação sob a designação de pessoa". Nota-se aqui uma solução similar à proposta por Tércio Sampaio, e que nos permite afirmar: o nascituro é sujeito de direito, porém sem personalidade.

Faremos, agora, comparações dos Códigos contemporâneos em exame com o Digesto Justiniano, a fim de se verificarem os diferentes regimes jurídicos atribuídos ao nascituro, e para se apurarem as nossas considerações até aqui feitas, uma vez que a raiz do nosso direito civil encontra-se no Direito Romano.

3 Considerações ao Direito Romano

Diferentes textos no Digesto Justiniano parecem apontar para respostas diversas ao tratarem do regime jurídico do nascituro. Vejamos.

“Ex hoc rescriptoevidentissimeapparet, senatusconsulta de liberisagnoscendilocum non habuisse, si mulierdissimularet se praegnatem, veletiamnegaret: necimmerito: partusenim, antequamedatur, mulierisportio est, velviscerum.” ([…] com base no rescrito, parece muito evidente não terem lugar os senatuconsultos sobre o reconhecimento de filhos, se a mulher esconder ou negar a gravidez; e não sem razão, pois, antes do parto, [o filho] é parte da mulher e de suas víceras […]) (Digesto, Lib. XXV, Tit. IV, 1, §1). Do texto, extrai-se que, somente após o parto, poderia o homem reivindicar a paternidade do filho, porquanto, antes disso, o nascituro era considerado como parte da mãe. Nota-se, na passagem, uma tendência a tese natalista, conferindo autonomia ao ser apenas após o nascimento. Não nos parece que as legislações contemporâneas em consideração guardem correspondência com este texto, sendo certo que estas se referem expressamente a direitos do nascituro.

Seguindo ainda o caminho da tese natalista, tem-se o contido no Digesto, Lib. I, Tit. V, 26: “Qui in útero sunt, in toto pene iureciviliintelliguntur in rerum natura esse.” (Aqueles que estão no útero consideram-se da natureza das coisas, segundo o direito civil). De acordo com o Jurisconsulto Gaio (Dig. Lib. I, V, 1), “todo direito que usamos ou se refere às pessoas, ou às coisas, ou às ações”. Ao se colocar o nascituro como da natureza das coisas, entendemos que ele é colocado no âmbito dos objetos de direito, que somente virá a ser sujeito de direito após o nascimento. Antes disso, a sua proteção se dá no interesse dos sujeitos de direito a ele próximos. Não se coaduna tal posicionamento com a legislação brasileira ou peruana.

Outra passagem contém o seguinte: “Infansconceptuspro nato habeturquoties de commodisejusagitur”. (A criança concebida será tratada como nascida todas as vezes que for de seu proveito). Tem-se, no trecho, uma aproximação da tese concepcionista ao se estabelecer uma ficção para proteção dos interesses do nascituro, considerando-o, para este fim, como um sujeito de direitos já nascido.

Pode-se, ainda, perceber, em sentença do Jurisconsulto Paulo (Digesto, Lib. I, Tit. V, 7), aproximação à tese concepcionista: “Qui in utero est, perinde ac si in rebus humanisesset, custoditur, quotiens de commodisipsiuspartusquaeritur: quamquam alii, antequamnascatur, nequaquamprosit.” (Quem estiver no útero será tratado como humano toda vez que se inquerir sobre os proveitos do próprio parto, embora de modo algum favoreça a outro antes de nascer).

O Código Peruano guarda relação com tal disposição, pois ambos consideram, para a proteção do ente concebido, como sendo ele detentor de direitos, portanto, sujeito de direitos.

A tese concepcionista, nos referidos dispositivos, está presente não por conferir personalidade ao nascituro, mas, justamente, por considerá-lo sujeito de direitos. A ressalva, no texto peruano, de que lhe são conferidos direitos apenas no que lhe favorece fez com que Luz Monge Talavera considerasse o nascituro como ‘sujeito de direito privilegiado’, permitindo subtrair-lhe obrigações que não lhe favoreçam (2003, p. 197).

Conclusão

As respostas dadas pela doutrina no que diz respeito ao regime jurídico do nascituro não são pacíficas. Ora se diz que, quanto ao ser concebido e não nascido, não se pode falar, propriamente, de direitos, mas de interesses protegidos, uma vez que não há sujeito de direito; ora se fala que saída não há senão atribuir-lhe personalidade desde a concepção.

Parece-nos acertada a posição de Tércio Sampaio. Ora, a ciência jurídica dever ter como postulado as normas do ordenamento jurídico. Destarte, dizer que não há direitos do nascituro, mas sim interesses ou meros direitos potenciais a serem protegidos, ainda que o texto legal expressamente se refira a ‘direitos do nascituro’ (art. 2º, CCB), não é uma resposta satisfatória. Se o dispositivo legal não atribui personalidade ao nascituro, mas lhe reconhece direitos, forçoso é concluir que se trata de sujeito de direitos sem personalidade.

Se o texto brasileiro não é tão direto nessa colocação, o Código Peruano é claro ao estabelecer que o nascituro é sujeito de direito para tudo que lhe favorece (art. 1º), posição semelhante àquela adotada pelo Jurisconsulto Paulo (Digesto, Lib. I, Tit. V, 7).

A diferenciação entre "nascituro sujeito de direito" e "pessoa sujeito de direito" é que, quanto àquele, os direitos patrimoniais permanecem como expectativas, e, quanto a esta, eles são exercíveis desde o nascimento com vida. E, ainda, não sendo o nascituro dotado de personalidade, por ele não se transmitem direitos. Desse modo, por um lado, direitos não patrimoniais são atribuídos ao ente concebido, como direito à vida, à saúde, a alimentos, etc, e, por outro lado, os direitos patrimoniais que lhe devam caber ficam sujeitos à condição suspensiva, dependentes do nascimento com vida.

No Código Peruano, tal afirmação é corroborada pelo art. 856, que ordena que o direito de herança do nascituro permaneça suspenso até seu nascimento, ficando um curador encarregado de cuidar dos bens que venham a lhe caber até que seja verificada a condição (nascer com vida).

No Código Brasileiro, tal ideia é observada no capítulo relativo à vocação hereditária. O art. 1799, inciso I, estatui que os filhos não concebidos podem ser indicados pelo testador para serem sucessores seus, mas a sucessão, segundo o §3º do art. 1800, só lhes é deferida se nascerem com vida.

Entendidos os direitos patrimoniais, quanto ao nascituro, como sujeitos à condição suspensiva[1], os reflexos patrimoniais decorrentes de violação de direitos não patrimoniais somente poderão ser exigidos depois do nascimento com vida (diversamente do que tem entendido parcela de nossa jurisprudência). É o caso de indenização por violação a sua imagem, ou a sua integridade física, ou outras espécies de danos morais.

Tal posicionamento, embora encontre bases no Direito Romano, como já exposto, se distancia da passagem do Digesto, Lib. I, Tit. V, 26, que não considera o nascituro como sujeito de direito, mas como da natureza das coisas, o que parece indicar um entendimento do nascituro como objeto de direito. Malgrado haja doutrinadores que assim entendem a posição jurídica do nascituro, não é essa a melhor resposta.

Desse modo, em relação aos tratamentos que os ordenamentos analisados dão ao nascituro, concluímos que a melhor resposta para a questão é a consideração da tese concepcionista para atribuição da condição de sujeito de direito ao ser humano, e da tese natalista para atribuição da personalidade, tanto no Direito Brasileiro, como no Peruano, à luz das disposições do Direito Romano. Em suma, entendemos que, diante das disposições legais, o nascituro é, então, sujeito de direito que adquire personalidade com o nascimento com vida.

Referências
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 10 ed. rev. ampl. atual. Salvador: JusPodivm, 2012, vol. 1.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão e Dominação. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2007.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil. 22 ed., rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2.008, vol. I.
TALAVERA, Luz Monge.Código Civil (Peruano) Comentado, Tomo I. Lima: Gaceta Jurídica, 2003.
 
Nota:
[1]A referência que se faz à condição suspensiva a que se submetem os direitos patrimoniais que tocam ao nascituro pode parecer imprópria devido ao disposto no art. 121 do Código Civil Brasileiro, que considera condição como cláusula que deriva exclusivamente da vontade das partes no negócio jurídico. Decerto, a condição a que nos referimos não decorre da liberalidade particular, mas é resultado de imposição legal. Todavia, não se pode olvidar que a aquisição do direito pelo ser concebido está subordinada a evento futuro e incerto, o seu nascimento, sendo, portando, plausível considerar que seja o caso de condição suspensiva, ainda que não inclusa no conceito técnico do art. 121.


Informações Sobre o Autor

Leônder Magalhães da Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduado lato sensu em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Analista Judiciário ma Justiça Federal da 1 Instância – Subseção Judiciária de Janaúba/MG


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