Neste momento, a nação tenta entender o significado do recebimento da denúncia do Procurador da República no STF. Fato bastante marcante é que todos os denunciados serão réus no processo por diversos crimes.
Em vista de o fato ser extremamente recente, não há muito além de especulações e conjecturas. Porém, alguns significados podem ser retirados dessa decisão.
Primeiramente, o óbvio: não se tratou de um julgamento definitivo a respeito do caso. Apenas iniciou-se o processo penal perante o STF. A duração do processo e a efetiva punição dos que forem culpados é história bem diversa. A tradição dessa corte não é punir os réus que têm foro privilegiado. Pelo contrário. Nos últimos 10 anos, não houve nenhuma condenação. Boa parte dos processos foi extinta pelo decurso do prazo prescricional. O ministro Marco Aurélio prevê que o processo deve durar até três anos, o que seria extremamente rápido, pela complexidade do caso, pelo número de réus e pela tradicional morosidade do Judiciário. Portanto, não estarão em julgamento apenas os 40 denunciados, mas também o próprio sistema que prevê foro privilegiado para determinadas autoridades.
Indubitavelmente, o simples recebimento da denúncia já é um fato histórico. Nunca, na história do STF, houve um julgamento com tantos réus, com um relatório tão extenso e que durasse tantos dias. Somente esses dados superlativos já o qualificam como um marco. Porém, fatos únicos como esse podem tornar-se mera curiosidade típica de almanaques. Mal comparando, pode-se considerar a atuação vitoriosa da tenista brasileira Maria Ester Bueno, em diversos campeonatos de tênis na década de 1960, como um fato histórico, pois suas marcas nunca foram ultrapassadas por outro brasileiro. Acontece que isso não mudou o curso dos acontecimentos no tênis brasileiro: continuamos a ser uma nação de raros talentos na modalidade. Assim, um hipotético historiador brasileiro, em 2057, poderia considerar o julgamento em questão como mera curiosidade ou, caso os culpados sejam punidos, como uma verdadeira virada na trajetória da corrupção no Brasil. Oxalá a segunda opção se concretize.
Uma confusão extremamente comum tem sido propagada: a de que existe necessidade de indícios para iniciar o processo e de provas para condenar os réus. Ora, indícios são provas, só que indiretas. Prova-se um fato que é relacionado ao fato investigado (cf. art. 239 do Código de Processo Penal). Já na prova direta, demonstra-se o fato investigado. Assim, em um processo penal por estupro, prova direta é o sêmen encontrado na vítima, e prova indireta (indício) é o fato de o réu ter sido visto com a vítima na hora do crime. Obviamente, uma prova direta vale mais que uma indireta, em que é preciso construir um raciocínio lógico de um fato a outro. Porém, a jurisprudência já admite a condenação baseada apenas em indícios. Veja-se a seguinte ementa: “O indício vale como qualquer outra prova e é impossível o estabelecimento de regras práticas para apreciação do quadro indiciário. Em cada caso concreto, incumbe ao Juiz sopesar como prova, à luz do art. 239 do CPP. Uma coleção de indícios, coerentes e concatenados, pode gerar a certeza reclamada para a condenação” (Tacrimsp, Ap. 1.108.809/6, II C, Rel. Juiz Renato Nalini, j. 28.6.98). A diferença entre o ato que recebe a denúncia e aquele que condena em definitivo o réu é simplesmente o grau de credibilidade: recebe-se a denúncia porque a acusação é provável, ou seja, há mais chances de o réu ser culpado do que de ser inocente. Condena-se o réu de modo definitivo porque existe a certeza, dentro das limitações humanas, de que o crime foi cometido por ele. Portanto, é risível qualquer argumento de ausência de provas. Elas existem, e em grande quantidade. O que deve ser discutido agora é se são suficientes ou não para condenar os réus.
O julgamento foi assustador. Terrível pela clareza irrepreensível dos ministros do STF, e especialmente, pela formidável atuação do relator, Joaquim Barbosa. Provas e provas de crimes apareciam de modo contínuo durante os cinco dias de julgamento. O fato realmente assustador é que os réus, até poucos anos atrás, ocupavam vários dos principais cargos da Administração Pública Federal. Nunca, na historia brasileira, foi descoberto um esquema tão complexo de corrupção e que envolvesse tantas autoridades proeminentes. Nestes dias, parecemos com um daqueles países extremamente periféricos, dos quais só se ouvem falar histórias pitorescas. Mais ainda: tornou-se bem palpável a hipótese de estarmos sendo governados por uma organização criminosa. O nível de organização (estrutura hierárquica, divisão de funções, etc.), os lucros elevados, o entranhamento na máquina governamental, a ocupação em atividades lícitas e ilícitas são todas características dessa espécie de organização e que estão presentes no chamado “Mensalão”. Poderíamos argumentar que não há certeza disso, o que só virá com a condenação judicial definitiva. E estaríamos corretos. Porém, será que estaríamos dispostos a sermos governados por um partido formado por várias pessoas em sua cúpula que provavelmente cometeram crimes? Será que o princípio da presunção de inocência deve ser levado tão longe tratando-se de patrimônio público? Para tornar a questão mais concreta, vamos utilizar uma analogia prosaica: quem tem fundamentadas suspeitas de que está sendo furtado pela empregada doméstica, deve mantê-la no emprego até que a Justiça se pronuncie de modo definitivo sobre sua culpa? São perguntas a serem respondidas pelos eleitores nas próximas eleições.
A decisão do STF é rica em significados. Além dos tratados aqui, pode-se citar a atuação da imprensa, a independência do Judiciário e a crise de legitimidade dos Poderes Executivo e Legislativo. Todos eles são e serão detidamente analisados pela imprensa e pelos especialistas. A questão crucial é o que o Estado brasileiro fará com isso: pode simplesmente desprezar o acontecido e manter as velhas práticas políticas e talvez até piorá-las, como tem demonstrado o “caso Renan”. Ou pode ser um passo importante em nosso lentíssimo processo de transformação de uma civilização digna desse nome. Refletir sobre isso, hoje, pode não ser mais que um mero procedimento especulativo, mas, quem sabe, o hipotético historiador de 2057 possa ver que, em agosto de 2007, que muitas coisas começaram a mudar…
Informações Sobre o Autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar
Procurador do banco Central em Brasília e professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista