O Supremo Tribunal Federal e a independência funcional dos membros do Ministério Público

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O Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral de questão constitucional suscitada no Recurso Extraordinário (RE) 590908, em que se discute a independência funcional de integrante de Ministério Público. No recurso, o Ministério Público de Alagoas alega que o Tribunal de Justiça estadual entendeu que uma promotora de Justiça estaria vinculada ao entendimento de seu antecessor, que teria pedido a impronúncia de um réu na fase de alegações finais na Justiça de primeiro grau. Alegando a existência de independência funcional dos promotores, o MP-AL pede que o Supremo reforme o entendimento do Tribunal estadual para que o réu seja pronunciado e posteriormente submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. A existência de repercussão geral foi reconhecida pelos ministros Dias Toffoli, Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio e Celso de Mello. Contra esse entendimento votaram o relator do RE, ministro Ricardo Lewandowski, do presidente da Suprema Corte, ministro Cezar Peluso, e do ministro Luiz Fux, que entendiam que a controvérsia não possui repercussão geral. Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, a causa versa sobre a existência de preclusão (perda) do direito do MP, que atua em mesma instância, de recorrer da decisão do TJ. O ministro afirma que, no caso, o promotor de Justiça que acompanhou a instrução da causa e fez o pedido de impronúncia do acusado foi substituído por uma promotora. Esta, após a prolação da sentença de impronúncia, entendeu que existiam indícios suficientes para a pronúncia e o julgamento do réu pelo Júri. Por isso, ela requereu a reforma da sentença. No entender do ministro Ricardo Lewandowski, “a discussão acerca da ocorrência de preclusão lógica, em face dos princípios da unidade e indivisibilidade do Ministério Público e da violação da independência funcional deste mesmo órgão, no caso, não ultrapassam o interesse subjetivo das partes”. No RE interposto no STF, o MP-AL alega ofensa ao parágrafo 1º do artigo 127 da Constituição Federal (CF), que prevê a independência funcional do MP. No entendimento do MP-AL, essa independência foi violada pelo acórdão (decisão colegiada) do TJ-AL. Segundo o MP-AL, admitir a ocorrência de preclusão lógica, por ser a promotora de justiça sucessora destituída de independência funcional, significaria negar a função fiscalizadora daquele órgão ministerial. Ainda segundo o MP, haveria a absurda situação em que o fiscal da lei (o integrante do MP), mesmo de posse de instrumentos processuais adequados, estaria obrigado a aquiescer com os pares que o antecederam, ainda que detectasse, no curso do processo, algo de atentatório à legalidade, quer por erro, culpa ou dolo. Ao pedir o reconhecimento da repercussão geral, o MP-AL sustenta que o tema possui relevância em razão do interesse público da matéria, pois o Tribunal de origem negou a independência funcional do MP, instituição que atua em todo o país. Fonte: STF.


Como se sabe existem dois princípios basilares do Ministério Público: a independência e a autonomia funcionais, ambos consagrados no art. 127, §§ 1º. e 2º. da Constituição Federal, advertindo-se, desde logo, que a “autonomia funcional atinge o Ministério Público enquanto instituição, e a cada um dos seus membros, enquanto agentes políticos.”[1]


Observa-se, por exemplo, que na hipótese do art. 28 do Código de Processo Penal, o Procurador-Geral de Justiça, discordando do pedido de arquivamento feito pelo Promotor de Justiça, oferece ele próprio a peça acusatória ou designa outro para fazê-lo, sendo-lhe vedado impor àquele primeiro o seu entendimento.


A propósito, vejamos esta hipótese trazida por Mazzilli:


Vez ou outra, geralmente no curso de inquérito policial e às vésperas da denúncia, o promotor se convence de que o crime se consumou em outra comarca; ou, em caso de tentativa, entende que o último ato de execução ocorreu em local sujeito à jurisdição de outra vara; ou, enfim, sustenta que o crime é de competência da Justiça Federal e não da local, ou vice-versa. Não surge maior problema se o Juiz acolhe a manifestação e se esta também encontra receptividade junto ao Promotor e ao Juiz da nova comarca, que aceitam a remessa. Entretanto, se o primeiro juiz, a quem foi requerida a remessa, entender que a competência é dele próprio surge um interessante conflito. Quem o resolve?


Nesses casos, é comum que o juiz mande os autos ao procurador-geral, que, discordando da tese do promotor em matéria de competência, não raro faz oferecer a denúncia, suprindo o ato ministerial omitido, tudo com analogia ao art. 28 do CPP.[2]


É de Tourinho Filho a seguinte afirmação: “Entende a doutrina que, antes de se iniciar a ação penal, não há falar-se em conflito de competência, mas sim de atribuições, aplicando-se para a sua solução a regra contida no art. 28 do estatuto processual penal, por analogia.”[3]


Ao comentar este artigo, em outra obra, o mesmo Tourinho assevera: “Vê-se, pela própria redação do art. 28, que o Procurador-Geral não pode fazer retornar os autos ao mesmo Promotor que pediu o arquivamento. É-lhe facultado designar outro. O mesmo, não. Seria violentar a consciência jurídica daquele Promotor, e, ademais, em face do entendimento já manifestado, estaria ele psicologicamente preso à idéia da inviabilidade da ação penal.[4]


Também comentando o art. 28, ensina Eduardo Espínola Filho:


Se, porém, achar o procurador geral que não socorre razão ao promotor, no pleitear o arquivamento, poderá, sem impor a esse o vexame de uma denúncia compulsória, contrária à sua convicção, oferecer, ele próprio, a denúncia, ou, para isso, designar outro órgão do Ministério Público.” (grifo nosso)[5]


O art. 28 contém esta regra exatamente para poupar o representante do Ministério Público do desconforto de ter a sua tese jurídica (espera-se que devidamente fundamentada, em conformidade com o art. 129, VIII, in fine da Constituição Federal) rechaçada pelo Procurador-Geral.


Bento de Faria já escrevia: “O Ministério Público, como fiel fiscal da lei, não poderia ficar constrangido a abdicar das suas convicções, quando devidamente justificadas. Do contrário seria um instrumento servil da vontade alheia.”[6]


Para ilustrar, leia-se este julgado citado por Espínola Filho:


Havendo divergência entre promotores no que concerne à classificação do delito, a solução não é o conflito de jurisdição que só poderá ser suscitado após o início do procedimento penal, ou seja, após a denúncia. Antes desta, haverá divergência de atribuições e a solução há-de ser dada pela Procuradoria Geral de Justiça. Esta conclusão se baseia na regra que o art. 28 do CPP oferece, a qual não se aplica somente em casos de arquivamento de inquérito. Por ela se resolvem, por analogia, todas as divergências que se manifestem entre juízes e promotores, em matéria de competência funcional destes, como todos os conflitos de atribuições que surjam.”[7]


Este nosso entendimento procura conciliar os interesses da Instituição, que induvidosamente é hierarquizada, com os princípios constitucionais garantidos aos seus membros, lembrando-nos da lição de Paulo Cláudio Tovo, segundo a qual “a independência do Ministério Público deve ser preservada como algo precioso à segurança de todos[8], inclusive, acrescentamos nós, a independência de cada um de seus integrantes.


Roberto Lyra já afirmava que “nem o Procurador-Geral, investido de ascendência hierárquica, tem o direito de violentar, por qualquer forma, a consciência do Promotor Público, impondo os seus pontos de vista e as suas opiniões, além do terreno técnico ou administrativo.”


Para este autor (que dedicou toda a sua vida ao estudo do Direito Criminal e ao Ministério Público, a ponto de ser chamado por Evandro Lins e Silva de o “Príncipe dos Promotores Públicos brasileiros”) “quanto ao elemento intrínseco, subjetivo, dos atos oficiais, na complexidade, na sutileza, na variedade de seus desdobramentos, como a apreciação da prova, para a denúncia, a pronúncia, o pedido de condenação, a apelação, a liberdade provisória ou a prisão preventiva, é na sua consciência livre e esclarecida, elevada a um plano inacessível a quaisquer injunções ou tendências, que o Promotor Público encontra inspiração”, concluindo “que a disciplina do Ministério Público está afeta ao Procurador-Geral. No entanto, esse não intervem na consciência do subordinado.”[9]


Esmeraldino Bandeira afirmava que o Promotor de Justiça na “sua palavra é absolutamente livre e independente, e em suas requisições não atende senão à sua consciência.”[10]


Ainda a propósito, certa vez um antigo Promotor de Justiça do Distrito Federal, Dr. Murillo Fontainha, ao recusar determinação do Procurador-Geral de oferecer denúncia em um caso, escreveu: “No exercício das suas elevadas funções, o Ministério Público ‘só recebe instruções da sua consciência e da lei’ (Sentença do saudoso Magistrado Raul Martins, D. Oficial de 10 de outubro de 1914, p. 10.844) e ‘as ordens que o Chefe do Ministério Público tem o direito de impor aos seus inferiores são ordens que não afetem à consciência dos mesmos. E o Promotor, que fugindo aos impulsos da sua convicção, deixar-se sugestionar pelas imposições extrínsecas, é um que homem ultraja à sua consciência e um Magistrado que prostitui a lei. Vê, pois, V. Exª., que nas funções em que entra a convicção do Promotor, como elemento principal, a ordem do Chefe do Ministério Público não pode ter o caráter de preceito imperativo obrigatório’ (Auto Fontes, Questões Criminais p. 75-6).” E continua adiante: “Todas essas explanações evidenciam que nas hipóteses em que o Ministério Público tem que opinar da sua conduta no caso que lhe for concluso, quer de oportunidade ou cabimento de recurso legal a interpor, quer de apreciação sobre elementos para denúncias ou arquivamento de processos, só deve receber instruções da sua íntima convicção, de sua consciência. Nessa esfera, as instruções do Chefe do Ministério Público não podem penetrar, porque é a própria lei em vigor que o diz quando terminantemente dispõe que incumbe aos Promotores Públicos oferecer denúncia quando se convençam da existência de crimes de sua competência.” (grifo nosso).[11]


Em resposta, eis o que decidiu o Procurador-Geral de Justiça:


Entende o Procurador-Geral que, na espécie, existem fartos elementos para instauração da ação penal, e, não podendo determinar ao Dr. 1º Promotor Público que ofereça denúncia, sujeitando-se às sanções legais, em caso de recusa, por haver cessado a sua competência no juízo da 4ª Vara Criminal, recomendo ao seu substituto ofereça denúncia contra aqueles indiciados.[12] (grifo nosso).


Jorge Americano, por sua vez, pontuava: “Dentro da esfera das suas atribuições, cada membro do Ministério Publico tem independência de movimentos para requerer diligência, para denunciar ou pedir arquivamento inicial de processos, para opinar, a favor ou contra o réu, para recorrer ou não, para expor certos argumentos, de preferência a outros.[13]


Encerremos, então, com mais esta lição de Lyra:


Decairia de sua própria independência moral o Promotor Publico se ficasse sujeito, em matéria opinativa, às injunções, quer dos juizes, quer dos chefes, esses funcionários da confiança do Governo. Ocorreria ainda o perigo de, indiretamente, submeter-se o Promotor Público ao arbítrio oficial no desempenho de uma tarefa de sutilíssima subjetividade.” (p. 176).


Esperemos, então, a decisão do Supremo Tribunal Federal. Oxalá privilegie a Constituição Federal, mesmo porque, como afirmou o Ministro Marco Aurélio, “por sermos guardiões maiores da Constituição Federal, não podemos aditá-la.” (Ação Penal nº. 396).



Notas:

[1] Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 3ª. ed., 1996, p. 94.

[2] Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 3ª. ed., 1996, p. 404.

[3] Processo Penal, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 24ª. ed., 2002, p. 615.

[4] Código de Processo Penal comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2001, p. 98.

[5] Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Vol. I, Rio de Janeiro: Borsoi, 5ª. ed., 1960, p. 362.

[6] Código de Processo Penal, Vol. I, Rio de Janeiro: Record, 2ª. ed., 1960, 120.

[7] Obra citada, Vol. II, p. 342.

[8] Apontamentos e Guia Prático sobre a Denúncia no Processo Penal Brasileiro, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 26.

[9] Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2ª. ed., 1989, p. 158.

[10] Apud Roberto Lyra, obra citada, p. 160.

[11] Apud Roberto Lyra, obra citada, p. 164.

[12] Idem, p. 165.

[13] Idem, p. 166.


Informações Sobre o Autor

Rômulo de Andrade Moreira

Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.