Pacífico na doutrina o entendimento do caráter tertius genus do licenciamento ambiental. Afirma-se isto, em contraposição da tradicional “licença” administrativa em que o ato de concessão de licença é totalmente vinculado. Há tão somente que o interessado apresente os requisitos e exigências da administração para que a licença seja concedida. Logo, a tradicional licença administrativa é um ato vinculado, unilateral e declaratório da administração.
O licenciamento ambiental diferencia-se bastante da licença tradicional. O licenciamento ambiental é ato discricionário da administração, discricionariedade esta não analisada em um único momento e sim em todo complexo procedimento para concessão de uma licença ambiental. Das lições tiradas da obra do mestre Celso Fiorillo: “O licenciamento ambiental, por sua vez, é o complexo de etapas que compõe o procedimento administrativo, o qual objetiva a concessão de licença ambiental.”.[1]
Quanto à diferenciação entre a licença administrativa tradicional e a licença ambiental, o Professor Paulo Affonso Leme Machado esclarece que: “O emprego na legislação e na doutrina do termo ‘licenciamento’ ambiental não traduz necessariamente a utilização da expressão jurídica licença, em seu rigor técnico”[2], em relação ao ato administrativo vinculado da licença administrativa e o ato administrativo discricionário do licenciamento ambiental, esclarece o professor que: “Não há na licença ambiental o caráter de ato administrativo definitivo; e, portanto, tranqüilidade, pode-se afirmar que o conceito de licença, tal como o conhecemos no direito administrativo brasileiro, não está presente na expressão licença ambiental”[3].
Tomando como exemplo o órgão administrativo CETESB em São Paulo, verifica-se plenamente os aspectos supracitados, ou seja, o licenciamento como um complexo procedimento administrativo com fim da autorização, ato discricionário. Em regra, seguindo a Resolução Conama nº 237/97 e a própria Lei Estadual (SP) nº 9.509/97 a licença ambiental, em seu caráter de autorização consistiria no complexo:
I. Licença Prévia – Validade máxima pela CETESB 02 anos;
II. Licença de Instalação[4] – Validade máxima pela CETESB 03 anos;
III. Licença de Operação[5] – Validade máxima pela CETESB 05 anos.
O aspecto da discricionariedade da licença ambiental torna-se explícito sob vários fatores. Inicialmente a possibilidade de desconstituição do ato por própria conveniência da administração, o caráter temporário destas licenças e suas obrigatórias revisões, concessão de licença mesmo com um EIA/RIMA não favorável e, principalmente, a responsabilidade da administração solidária e objetiva juntamente com o empreendedor por um possível dano ao meio ambiente.
A responsabilidade ambiental sob o âmbito civil no presente caso torna-se uma das mais preocupantes, exatamente pela adoção da legislação ambiental da responsabilidade objetiva conforme preceitua o art. 14, §1º da Lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente). Além da inquetionável aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, e, por óbvio a Lei da Ação Civil Pública, Lei 7.347/85, as quais, além de ratificar a responsabilidade objetiva deixam claramente permissivo à solidariedade.
A idéia de uma teoria objetivista há muito já era tratada; sua adoção no ordenamento pátrio é que é recente. Ousaria afirmar que maior destaque e efetivação no nosso ordenamento se dá propriamente com a Lei Ambiental nº 6.938/81. Tal necessidade de uma adoção de responsabilidade objetiva surge no final do século XIX, influenciada pela escola positivista penal do Direito Francês. Serpa Lopes nos atenta que: “o início desse surto contrário à noção de culpa funda-se no fato de ser ela considerada insuficiente para dar cobertura a todos os casos de dano e para atender ao princípio social da reparação do dano em todas as circunstâncias em que ele venha se produzir”[6].
Nas lições do mesmo autor o fato se deve a dois fatores:
1. Estreiteza da cobertura da culpa, ocasionando inúmeros casos evidentes sem soluções;
2. Mudanças dos dogmas individualistas para uma socialização do Direito.
Seriam fundamentos para esta mudança, trazida por esta tendência objetivista, duas teorias: teoria do risco criado e teoria do risco-proveito.
Fundada no princípio ubi emolumentum ibi onus a Teoria do Risco Proveito considerava que aqueles que tivessem proveito numa empresa deveriam se onerar com possível obrigação de indenizar. Esta relação se dava entre os patrões e empregados, atinentes a possíveis acidentes de trabalho, onde ao contratar os patrões já consideravam em contrato tais probabilidades. Há necessidade de reproduzir ipsis litteris a definição do Prof. Serpa Lopes:
“Risco-proveito. É uma corrente fundada no princípio ubi emolumentum ibi onus. Consideram os seus partidários nada haver de mais justo do que aquele que obtém o proveito de uma empresa, o patrão se onerar com a obrigação de indenizar os que forem vítimas de acidentes durante o trabalho. O patrão, ao celebrar o contrato de trabalho, pode já incluir nas suas estimativas a provável responsabilidade por qualquer acidente que o seu operário possa sofrer, durante horas de serviço. Trata-se de uma concepção hoje considerada e prevista no Direito positivo”[7].
Devem se destacar alguns aspectos importantes neste tipo de risco. Inicialmente que o risco acumulado pelo patrão se restringe ao acidente ocorrido naquela empresa, naquele horário, decorrente daquela atividade laborativa. O patrão inclusive, considerando o serviço prestado pelo empregado, pode prever em contrato os prováveis acidentes. Logo, qualquer acidente decorrente daquele específico labor, no horário de trabalho, estaria inserido no risco daquela empresa. Esta responsabilidade não abarca todo e qualquer dano, mas sim os decorrentes do exercício laborativo específico.
Já a Teoria do Risco Criado teria uma abrangência maior, ou seja, não se limitaria apenas aos acidentes inerentes à atividade laborativa, mas todos os possíveis danos decorrentes de toda a atividade. ‘Pelo próprio fato de agir, o homem frui todas as vantagens de sua atividade, criando riscos de prejuízos para os outros de que resulta o justo ônus dos encargos’[8]. Mais uma vez torna-se obrigatório expor a definição do mestre Serpa Lopes:
“Risco criado. Mais larga é a concepção do risco criado que tem uma amplitude maior que a do risco-proveito. Ela compreende a reparação de todos os fatos prejudiciais decorrentes de uma atividade exercida em proveito do causador do dano. Pelo próprio fato de agir, o homem frui todas as vantagens de sua atividade, criando riscos de prejuízos para os outros de que resultar o justo ônus dos encargos”[9].
Cabe destacar a notória ampliação deste tipo de risco em relação ao risco-proveito. Não se restringe mais apenas ao exercício laborativo dentro daquela empresa, naquele horário. Mas, de todo o risco da atividade. Por Álvaro Villaça é a conhecida responsabilidade objetiva pura. “A pura implica ressarcimento, ainda que inexista culpa de qualquer dos envolvidos no evento danoso. Neste caso, indeniza-se por ato lícito ou por mero fato jurídico, porque a lei assim o determina” [10].
Dentre vários entendimentos e definições sobre a responsabilidade objetiva, será exposto o entendimento na definição clássica do mestre Caio Mário da Silva, o qual define Responsabilidade Objetiva: “… funda-se no risco criado, descrito como a situação em que se alguém põe em funcionamento uma qualquer atividade, responde pelos eventos danosos que esta atividade gera para indivíduos, independentemente de determinar se em cada caso, isoladamente, o dano é devido à imprudência, à negligência, a um erro de conduta”[11].
De forma sintética com a responsabilidade objetiva o elemento da conduta não teria o mesmo peso que tem na responsabilidade subjetiva, ou seja, independe se o causador do dano agiu com culpa ou dolo, por ação ou omissão. A responsabilidade se dá independente da análise da conduta do agente, bastando tão somente a verificação do nexo de causalidade e do dano sofrido.
Independente da previsão da lei ambiental tangente à responsabilidade objetiva, o Código Civil de 2002, como regra geral, não deixou qualquer dúvida quanto a responsabilidade objetiva de qualquer atividade.
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
A solidariedade também figura neste tipo de responsabilidade, inclusive trazida como regra do artigo 942 do Código Civil de 2002, nos dizeres de Antônio Herman Benjamin, ‘a solidariedade é o império da dispersão do nexo causal, com o dano podendo ser atribuído a uma multiplicidade de causas, fontes e comportamentos… ’. De qualquer modo, esta dispersão não afasta o dever da reparação do dano. Podendo ser lembrado também a famosa canalização dos riscos, a qual vem muito sendo utilizada por empresas, seus financiadores e seus seguradores. O que entende-se ser uma ampliação do leque para responsabilizar os degradadores e os causadores de danos ao meio ambiente.
Em regra para o Direito Ambiental não existe excludente alguma de responsabilidade por dano. Nem as conhecidas do Direito Civil como caso fortuito e força maior são aplicadas como excludente de responsabilidade. Fato este que não resta dúvida que no direito ambiental a responsabilidade objetiva é diretamente tida como “risco criado”.
Na oportunidade o Professor Benjamim afirma que: “O Direito Ambiental não aceita excludentes, seja do fato de terceiro, seja da culpa concorrente da vítima ou do caso fortuito ou força maior. Desta forma, se o evento ocorreu no curso ou por conta da atividade potencialmente degradora, o responsável pela mesma tem o dever de reparar eventuais danos causados, ressalvando-se sempre a hipótese de ação regressiva”[12].
Uma breve conclusão que pode se estabelecer é que diferente das licenças tradicionais do direito administrativo, a licença ambiental desnatura-se. Não basta tão somente ao interessado preencher os requisitos e apresentar todas documentações exigidas pelo ente administrativo em um único momento. Além disso, sob pena de concorrer com qualquer responsabilidade futura com o empreendedor, haverá verdadeira discricionariedade em maior grau pelo ente administrativo concedente da licença.
Junho de 2008.
Informações Sobre o Autor
Marcus Vinicius Fernandes Andrade da Silva
Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP, Professor da Graduação e Pós-Graduação da FCC- Estácio de Sá, UNIRN, UnP e Universidade Católica de Santos.