O Tribunal Penal Internacional e a Judicialização da Política

logo Âmbito Jurídico

Luana Pereira de Oliveira ¹, Pedro Policarpo da Costa ², Francisco Ismael Alves Araújo ³

Resumo: O presente trabalho acadêmico tem o objetivo de esclarecer o conceito de Judicialização da política e a diferença entre os termos que guardam relação direta com o tema e apresentar o aspecto positivo desse fenômeno ao abordar a tímida atuação do Tribunal Penal Internacional diante dos interesses políticos dos Estados-membros. Com o intuito de proporcionar uma análise mais objetiva ao leitor através de uma sequência de informações que garante uma observação do conceito geral para o mais específico.

Palavras chave: Judicialização da Política, Ativismo Judicial, Judicialização da Megapolítica, Separação dos Poderes, Ameaça à Democracia, “Juristocracia”

 

Abstract: This academic work aims to clarify the concept of Judicialization of politics and the difference between the terms that are directly related to the theme and to present the positive aspect of this phenomenon by addressing the timid performance of the International Criminal Court in face the political interests of Member states. In order to provide a more objective analysis to the reader through a sequence of information that ensures an observation of the general concept to the most specific

Keywords: Judicial Activism, Judicial Activism, Judicialization of Megapolitics, Separation of Powers, Threat to Democracy, “Juristocracy”

 

Sumário. Introdução. 1. Conceito e características. 2. Definição dos termos. 2.1. Ativismo judicial. 2.2. Mutação constitucional. 2.3. Judicialização da megapolítica. 3. Críticas. 3.1. Separação dos poderes. 3.2. Juristocracia. 3.3. Ameaça à democracia. 4. Tribunal Penal Internacional e sua tomada de decisão. Conclusão. Referências

 

Introdução

Ao desenrolar da discussão que será travada neste artigo, extrairemos uma conceituação do que a literatura referente à ciência política denomina de “Judicialização da Política” e trataremos de abordar suas características mais pertinentes. Assim, como também o seu surgimento dos fenômenos que deram propulsão ao seu crescente e significativo uso em países espalhados pelo mundo, e não apenas nos Estados Unidos, como veremos mais adiante.

Será lembrada e discutida uma necessária definição de alguns termos que estão entrelaçados com o tema, mas que tem significados e conceitos distintos deste. O ativismo judicial e a mutação constitucional, como também a judicialização da megalítica estão todos na mesma linha de raciocínio quando se presta à análise da judicialização da política.

Após a definição dos termos já mencionados, será explanado algumas das críticas mais pertinentes ao tema da pesquisa. Tais críticas giram em torno da Separação dos poderes, que é um princípio que distingue a democracia da “juristocracia” a qual se contextualiza na transição do modelo democrático, onde o povo decide sobre questões políticas para um sistema em que as decisões são tomadas pelo poder judiciário.

Seguindo com a discussão do tema, é relevante trazer para pauta o aspecto positivo da Judicialização da Política com relação a atuação dos Tribunais Internacionais, mais especificamente o TPI – Tribunal Penal Internacional. Assim, será abordado as características mais marcantes sobre a dependência do TPI ao Conselho de segurança da Organização das Nações Unidas e a perigosa vinculação a propósitos políticos dos Estados-membros.

 

  1. Conceito e características

Há resquícios expressivos da Judicialização da Política mesmo antes dos acontecimentos traumáticos e violentos do século XX, com o caso “Marbury contra Madison”, decidido em 1803 pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Contudo, o contexto era de pós-guerra, em 1945 com enaltecimento dos Direitos Humanos e ascensão do Constitucionalismo que houve uma mudança plausível, diretamente ligado ao Poder Legislativo e Executivo, referente aos limites de suas atuações na atividade legiferante. Esse momento histórico, que é a redefinição política regimental, a qual norteou a luta de várias nações pela vigência de um novo regime, que garantisse o mínimo de dignidade e direitos fundamentais ao seu povo, é o que chamamos de Estado Democrático de Direito (STRECK, 2004, p.76).

As mudanças ocorridas no pós-guerra eram evidentes e as características desse novo regime pareciam trazer a solução para os problemas decorrentes da ditadura nazista e fascista, que assustaram todo o mundo com as atrocidades e crimes de guerra, os quais tinham amparo legal em cada um daqueles países, dando legitimidade aos atos de governo. Foi da água ao vinho, que o Estado Democrático de Direto com seu plus normativo, trouxe luz a uma geração de cidadãos que estavam perdidos no meio da escuridão, e reforçou as garantias constitucionais, dando ao Poder Judiciário discricionariedade para atuar como protagonista na luta contra a ditadura.

Em meio a essa transformação que envolveu governos ao redor do mundo e significativas mudanças nas competências dos tribunais e instituições jurídicas, surgiu o que chamamos de “judicialização”. Esse fenômeno acontece quando o Executivo e Legislativo, a fim de que, conflitos políticos que afetam a sociedade e possíveis eleitores, fiquem no ambiente judicial e longe da arena política partidária, delega, assim, as “batatas quentes” ao Poder Judiciário, que imbuído pelo manto constitucional e com interesse na concretização dos Direitos e Garantias fincados no texto da carta magna, reage ativamente e vai além do que deveria, servindo à estratégica dos legisladores de direito no que tange à transferência da competência ordinária de legislar:

Uma roupagem mais “realista” indica que a judicialização da política é em grande parte produto de escolhas, interesses ou considerações estratégicas concretas de gente poderosa com interesses políticos pessoais. Do ponto de vista dos políticos, delegar autoridade política aos tribunais pode ser um meio eficiente de transferir responsabilidade e, com isso, reduzir os riscos a si próprios e ao aparato institucional dentro do qual trabalham. O cálculo da estratégia de “desvio de culpas” é bem intuitivo. Se a delegação de poderes pode aumentar a legitimidade e/ou reduzir a culpabilidade dos políticos como resultado da decisão política do órgão delegado, então tal delegação pode beneficiar os políticos. No mínimo, a transferência de “batatas quentes” políticas para os tribunais oferece um abrigo conveniente aos políticos que não têm vontade nem capacidade de solucionar contendas públicas dentro da esfera política. A delegação também ajuda os políticos a evitar decisões difíceis ou “sem vencedores” e/ou evitar o colapso de coalizões governamentais frágeis ou presas em becos sem saída (HIRSCHL, 2002, p.48).

O regime democrático, instaurado em vários países, assim como no Brasil em 1988, foi marcado principalmente pela atuação ativa do Poder Judiciário, que conta com amplas prerrogativas dadas pelas próprias constituições na tentativa de garantir os preceitos constitucionais e frear as ações do Legislativo e Executivo que em governos como o da Alemanha, no período Nazista, haviam fracassado. Tal atuação protagonista, proporcionada pelo Estado Democrático de Direito é indissolúvel a este, afinal o exemplo da rigidez legislativa e executiva ocorrida durante a guerra alertou sobre a necessidade de limites pré-estabelecidos entre os três poderes.

Com a evolução da teoria democrática de independência e harmonia entre os poderes do regime que sustenta uma nação baseada em princípios constitucionalistas, o Poder Judiciário, por meio de seus tribunais e jurisdição constitucional ganhou discricionariedade para preencher as lacunas deixadas pela lei ordinária e o dinamismo social que deve figurar também no texto constitucional, levando até este as mudanças necessárias ao atendimento da demanda social. A Judicialização de questões políticas, aqui, ultrapassa as barreiras da nova roupagem que o Poder Judiciário adquiriu com a evolução da ciência política no plano real, e não mais apenas no “dever-ser”, tratado por filósofos como Aristóteles em muitas de suas obras.

Ao permear a obra de John Ferejohn, “Judicializando a política, politizando o direito” o conceito de Judicialização fica mais evidente ao analisar suas características, que são basilares para o entendimento do que é este fenômeno, que em terras brasileiras gera muita dicotomia entre os juristas, pois é ainda uma realidade nova em um país de “modernidade tardia” como define o autor Lenio Streck e suas consequências práticas na realidade político democrática, tanto representativa quanto referente aos Direitos e Garantias Constitucionais (STRECK, 2004, p.75).

De tal forma, a primeira característica que se abstrai da obra é o centro da definição do que de fato é a Judicialização da Política, e sem esta, a atuação atípica do Judiciário não seria calorosamente discutida entre os constitucionalistas e não constituiria motivo de preocupação para os defensores da teoria democrática, onde a legislação ordinária deve ser conduzida pelos poderes que possuem representação popular, afastando-se do Poder Judiciário, a quem cabe o papel de interpretar leis preexistentes e não de exercer as duas funções concomitantemente.

Pode-se evidenciar a intervenção de tribunais judiciais em processos políticos como sendo a medula de toda a problematização em volta da questão da Judicialização. As discussões de cunho político que deveriam ser travadas nas assembleias parlamentares e seguindo o rito procedimental instituído pela Constituição, quando delegadas ao Poder Judiciário, geram um desiquilíbrio na balança democrática, pois aquele responsável em criar a lei também a aplicará, unindo assim, atividades que devem ser feitas, na tentativa de evitar a tirania, por poderes distintos:

Em tais circunstâncias, o juiz/legislador seria simplesmente capaz tanto de moldar a norma quanto de julgar a ação simultaneamente. As decisões prescindiriam completamente de serem guiadas por princípios e, em vez disso, seriam arbitrárias e imprevisíveis (FEREJOHN, 2002, p.69).

O envolvimento dos tribunais judiciais em questões políticas como o exemplificado na obra de Ran Hirschl, trazendo como exemplos o casamento de pessoas do mesmo sexo, o uso de símbolos religiosos na esfera pública e liberdade de reprodução, traduzem uma manobra de politicagem de grupos partidários que se utilizam do intervencionismo judicial para se “esconder” das zonas de tensão frente aos seus eleitores, garantindo assim, uma salvaguarda diante de questões tão polêmicas que dificilmente os manteriam com a popularidade eletiva:

Tal delegação, além de ser uma conduta antidemocrática, ainda reforça o processo de transformação da repartição dos Poderes em uma grande arena política: A delegação também ajuda os políticos a evitar decisões difíceis ou “sem vencedores” e/ou evitar o colapso de coalizões governamentais frágeis ou presas em becos sem saída. De maneira contrária, oposições políticas podem buscar judicializar a política (p.ex., por meio de petições ou liminares contra políticas governamentais) a fim de atrapalhar ou obstruir os governos30. Políticos de oposição podem até recorrer ao litígio judicial para aumentar sua exposição na mídia, independentemente do resultado do mesmo (HIRSCHL, 2002, p.48).

Uma segunda característica que se pode auferir sobre Judicialização da política é um ponto que teve seu surgimento com o Estado Democrático de Direito, e ganhou proporções ainda maiores com a potencialização desse fenômeno. Como já foi mencionado acima, os governos autoritários deixaram uma mancha na história da política mundial e para garantir o banimento de regimes como esses o Neoconstitucionalismo estabelece limites a atividade do Poder Legislativo e Executivo, cabendo ao Judiciário sua vigília como guardião dos interesses constitucionais:

Quando os tribunais estão legislando, todos nós temos interesse legítimo em quem faz parte deles. Embora nomeações para os tribunais sejam inevitavelmente políticas, elas nem sempre são partidárias. Contudo, quando os tribunais se tomam politizados em um sentido partidarista, o assunto fica mais complicado. Democracias produzem maiorias cambiantes, e quando mudanças no controle partidário se traduzem em posições na magistratura, então o conteúdo da lei se toma instável (FEREJOHN, 2002, p.66).

Junto a essa transformação decorrente do pós-guerra incidiu também uma ponta do iceberg que é a Judicialização da Política, que se concentra na limitação das instituições políticas em elaborar políticas nacionais e internacionais. A definição de pré-requisitos para a atividade legiferante possui dupla face e na medida em que os Poderes Executivos e legislativos necessitam de freios para suas tomadas de decisões, a fim de que não se reestabeleça um regime ditador, a composição de Juízes nos tribunais passa a ser uma questão de interesse político e as nomeações são indicadas, colaborando assim com a transformação do campo de atuação dos três poderes em uma grande arena política.

 

  1. Definição dos termos

Será tratado nesta sessão uma conceituação mais detalhada sobre alguns termos que estão envolvidos diretamente com a Judicialização da política e que por muitas vezes são confundidos entre si.  Tais termos são de grande importância para que se possa adentrar mais profundamente no objeto da pesquisa, o qual se entrelaçará em seus conceitos e destes lançará mão ao longo do processo.

Os termos a serem definidos aqui são tratados pela literatura da ciência política, muitas vezes de forma separada. No entanto, todos possuem uma ligação que acaba por ocasionar uma confusão àqueles que pretendem iniciar um estudo no assunto. Os termos em questão são o Ativismo Judicial, a Mutação Constitucional e Judicialização da megapolítica, cada um com seu conceito e suas peculiaridades, que merecem uma atenção especial para uma melhor compreensão da Judicialização da política.

 

2.1. Ativismos judicial

Para que se chegue a uma compreensão sobre o fenômeno da Judicialização da política faz-se necessária a definição de termos que se entrelaçam de algum modo com o tema, tanto por serem provenientes dos mesmos lugares, quanto por terem consequências semelhantes no âmbito jurídico e social. Inicialmente, será discutido a conceituação e as características mais marcantes do Ativismo Judicial e sua distinção da Judicialização, a fim de vislumbrar o ponto central da discussão acerca da atividade atípica do Poder Judiciário.

A origem da expressão “ativismo judicial” foi utilizada pela primeira vez em um artigo que tinha como título “The Supreme Court:1947” publicado pela revista Fortune nos Estados Unidos e tinha como objetivo analisar a atuação das cortes, que variavam entre posturas ativas e restritivas, dependendo muito de quem a compunha e de seus interesses. Em tese os juízes mais restritivos buscavam preservar o conteúdo de lei produzida pelo legislativo, enquanto os juízes ativistas buscavam dar um maior alcance à lei ordinária. Desde então, a expressão vem sendo utilizado de variadas formas e seu significado pode ter uma vertente negativa ou positiva.

Adiante, a história política e social do mundo passou por grandes mudanças decorrentes dos acontecimentos pós-guerra e uma onda de constitucionalismo tomou força e construiu governos regidos com regramentos supremos, que se consagraram como base do Estado Social e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, dando força aos Direitos e Garantias Constitucionais. Essa nova fase do mundo moderno, atribuiu à Jurisdição Constitucional mais força para atuar de forma ativa e substancial na proteção dos Direitos Sociais:

Em termos de jurisdição constitucional, duas são as alternativas que se estabelecem no constitucionalismo contemporâneo (pós-guerra): ou os tribunais apenas garantem os direitos fixados no ordenamento-marco, sem qualquer capacidade de estabelecer posições jurídicas singulares, ou estão vinculadas à eticidade substantiva da comunidade e podem, portanto, agir de forma a aproximar a norma da realidade (STRECK, 2004, p.16).

Com a redemocratização, a partir do Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário passa não mais a ser subalterno aos outros poderes, mas sim a possuir a competência de resguardar a Constituição e para o exercício dessa função é necessária uma posição ativa, tendo como fundamento um referencial substancialista que dá à norma constitucional um alcance maior, utilizando-se de técnicas hermenêuticas menos restritivas. Essa prerrogativa, inerente ao constitucionalismo, gera o que é conhecido como Ativismo Judicial, e em meio a duras críticas ou aplausos, o assunto é debatido na tentativa de se auferir suas consequências à Democracia.

As discussões em volta do tema são sempre bastante calorosas e boa parte disso se deve ao fato de haver uma semelhança entre Ativismo e Judicialização, afinal, ambas se dão na mesma esfera, que é o Poder Judiciário. Se a questão for tratada em níveis de atuação, o Ativismo está degraus abaixo da Judicialização, visto que esta engloba questões políticas que em matéria de competência deveriam ser enfrentadas pelo Poder Legislativo/Executivo, e aquele fundamenta-se na opção dos Juízes em interpretar a Constituição, definindo assim o alcance que a referida carta terá na sociedade:

Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva (BARROSO, 2011, p.6).

Barroso define Ativismo Judicial como sendo uma escolha do Poder Judiciário que está ligada à ideia de garantia dos preceitos constitucionais. Essa “escolha” em agir ou não, é dada pelo Estado Democrático de Direito, e também pelo neoconstitucionalismo, que traz, entre muitas coisas, a discricionariedade no interpretar da norma constitucional, que se faz extremamente relevante quando se tem o objetivo de transformar o texto morto da constituição em um texto vivo, capaz abranger as demandas sociais e individuais:

Nesse sentido, discricionariedade acaba, no plano da linguagem, sendo sinônimo de arbitrariedade. E não confundamos essa discussão – tão relevante para a teoria do direito – com a separação feita pelo direito administrativo entre atos discricionários e atos vinculados, ambos diferentes de atos arbitrários. Trata-se, sim, de discutir – ou, na verdade, pôr em xeque – o grau de liberdade dado ao intérprete (juiz) em face da legislação produzida democraticamente, com dependência fundamental da Constituição. E esse grau de liberdade – chame-se-o como quiser – acaba se convertendo em um poder que não lhe é dado, uma vez que as “opções” escolhidas pelo juiz deixarão de lado “opções” de outros interessados, cujos direitos ficaram à mercê de uma atribuição de sentido, muitas vezes decorrente de discursos exógenos, não devidamente filtrados na conformidade dos limites impostos pela autonomia do direito (STRECK, 2011, p.39).

A interpretação da norma e o uso da discricionariedade para suprir lacunas deixadas pela lei ordinária está sujeita, e assim deve ser, a alguns limites impostos pela própria constituição, como uso de princípios constitucionais em casos de ausência de dispositivos que regulem uma determina situação. A inércia do Poder Legislativo em solucionar questões de sua competência impulsiona o Poder Judiciário a uma postura ativa diante da contenda, na tentativa de salvaguardar a Constituição e sua natureza prestacional, imbuída dos Direitos e Garantias Constitucionais.

De tal maneira, o ativismo judicial se faz presente na jurisdição constitucional quando a Constituição está em xeque, “transformando-se, assim, em um território inóspito (espécie de latifúndio improdutivo), pela falta de pré-compreensão adequada acerca de seu papel no interior do novo paradigma do Estado Democrático de direito” e o seu conteúdo não é o centro de toda a criação legiferante e consequentemente, da ordem jurídica que orbita em torno dela e para ela (STRECK, 2004, p.65).

É destacado por Barroso que a Judicialização e o Ativismo são “primos”, porém não possuem a mesma origem. Apesar de estarem separados por uma linha fina é notado que a diferença mais nítida reside na questão do agir do Poder Judiciário e está condicionado à Constituição, ou seja, na intenção de dar uma real eficácia normativa à mesma, para que as problemáticas de natureza social sejam solucionadas de forma eficaz. De tal forma, a Judicialização se faz como um fato que representa a transferência da competência Legislativo/Executivo para a Jurisdição Constitucional, enquanto o Ativismo Judicial é a competência do Poder Judiciário em agir ou não diante da ausência dos outros poderes e a manutenção da ordem constitucional (BARROSO, 2012, p.17).

 

2.2. Mutação constitucional

Ao dar-se seguimento a diferenciação dos termos que orbitam em torno do assunto abordado na pesquisa tem-se a Mutação Constitucional como objeto de exploração dessa sessão, mas antes de seguir com a conceituação do mesmo é importante ressaltar que uma Constituição ao ser redigida pelo Poder Constituinte, como é o caso da brasileira, não fica restrita ao tempo em que foi confeccionada, presa a realidade da época, sem se moldar as mudanças sociais inerentes a qualquer sociedade involucrada em um mínimo processo de desenvolvimento. Uma Constituição preocupada em atingir a todos que compõem o Estado permanece viva ao longo tempo aberta a mudanças em seu texto e a norma, tornando-se contemporânea àqueles que estão sob sua forma de constituir:

As mudanças constitucionais são necessárias como meio de preservação e de conservação da própria Constituição, visando ao seu aperfeiçoamento e buscando, em um processo dialético, alcançar a harmonia com a sociedade. Se a sociedade evolui, também o Estado deve evoluir (PEDRA, 2009, p.103).

Deve haver sempre uma interação entre o texto constitucional e a realidade a qual se propõe regular. Porém, deve-se manter não apenas um elo entre realidade social e texto constitucional, como também entre o novo produto dessa mudança e a essência normativa proposta pelo texto original. Dessa maneira, uma das principais características do constitucionalismo é posto em xeque como diz Pedra “embora não deva haver impedimento onde o movimento e o progresso forem necessários, não se pode prescindir da estabilidade da Constituição”. Essa estabilidade é o centro basilar que mantém uma constituição com sua essência e formatação política.

Ao se observar a postura de tribunais constitucionais, chega-se à possibilidade de modificação por estes da norma constitucional e seu alcance através de um mecanismo informal, ou seja, uma forma de dar um novo significado ao texto normativo sem modificá-lo, não se utilizando do processo de emenda feito pelas maiorias parlamentares e que seguem o duro e formal rito previsto pela própria Constituição.

Antes de discutir sobre mutação constitucional é necessário fazer uma explanação sobre as formas de modificação da Constituição, sendo estas alterações divididas em formais e informais. A alteração formal é feita pela maioria parlamentar, seguindo o rito constitucional pelo processo de emenda que modifica o texto constitucional:

A reforma constitucional (Verfassungsänderung) é um processo formal de mudança do texto de uma constituição rígida, por meio da atuação de certo órgão, mediante certas formalidades, estabelecido nas próprias constituições para o exercício do poder reformador (PEDRA, 2009, p.107).

Já a alteração informal modifica não o texto, mas sim a norma constitucional, como diz Pedra (2009, p.107) “Já a mutação constitucional (Verfassungsänderung) consiste na alteração do significado, do sentido e do alcance das disposições constitucionais, por meio da interpretação ou das práticas constitucionais, sem tocar na letra do texto constitucional. Isso acontece sem um processo preestabelecido pela Constituição, o que acaba gerando algumas inconsistências quanto a segurança jurídica que o texto constitucional deve manter.

Dos mecanismos em que se dá a Mutação Constitucional, a interpretação do texto da

Constituição, feitas por Órgãos Constitucionais, que produz um significado novo, atingindo a norma e seu alcance, constituem processos os quais nos interesa nesse momento. Já foi dito acima que uma Constituição deve manter uma ligação com realidade e isso se torna possível com a mobilidade constitucional, e ao que cabe, especificamente à mutação, alguns cuidados devem ser tomados para garantir o mínimo de estabilidade do texto constitucional.

Ocorre uma Mutação quando o trabalho do interprete se guarda dentro dos limites da Hermenêutica e atualiza o conteúdo/texto constitucional, apenas aumentando seu alcance diante das mudanças sociais e atingindo somente a norma. Como exemplo do fenômeno temos com o caso do julgamento do Supremo Tribunal Federal que trata da União Estável entre pessoas do mesmo sexo, estendendo a estes os efeitos da interpretação conforme a Constituição, já que há um dispositivo constitucional que versa sobre União Estável entre homem e mulher. Fica evidente que a interpretação deu uma “alargada” no sentido do texto, modificando a norma constitucional.

A grande problematização em volta do assunto, consiste nos limites da interpretação, e de como o poder Judiciário lida com as diretrizes que a própria constituição estabelece para a modificação da sua norma. O que se pretende proteger é acima de tudo a integridade da Constituição escrita e a segurança jurídica que esta produz para todo o ordenamento, na tentativa de se conservar a tradição e legitimidade popular, sobre qual foi embasada todo seu conteúdo.

Dessa forma, em contraponto à ideia de mutação constitucional, a postura mais ativa dos Tribunais Constitucionais tem gerado uma situação controvertida na literatura que abarca o assunto. Trata-se do fato de haver em muitas decisões uma mudança não apenas na norma, mas também no texto da Constituição, que acaba desconfigurando o conceito de mutação e passa, assim, a ser um rompimento constitucional. O exemplo posto por Streck, é o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal sobre o dispositivo 52, X, da Constituição Federal de 1988, que determina a comunicação sobre a decisão que declarar inconstitucionalidade pelo STF e ao Senado Federal cabe a suspenção do todo ou parte da decisão. O ponto que causa estranheza no julgado é a mudança de uma palavra por outra sem o devido processo de emenda pelo parlamento:

Assim, o que acontece no âmbito da proposta de mutação constitucional do art. 52, X? Não há uma alteração de significado da norma; pretende(ram) mudar não o sentido da interpretação do texto, mas mudar a própria dicção do art. 52, X. Se vingar a tese defendida por parte dos ministros do STF, estar-se-á a alterar radicalmente o texto (ao invés de “suspender”, querem escrever “publicar”). Desse modo, tem-se um verdadeiro rompimento constitucional, pois, sem alterar o texto formal (por meio do devido processo legislativo constitucional), é como se o tivessem feito, mas pelo próprio poder judiciário. Nesse caso, não há mutação, mas rompimento. Por isso, o problema é democrático. Se admitirmos fissuras na ordem constitucional, passaremos a admiti-las no próprio Estado Democrático de Direito (STRECK, 2011, p.52).

 

No Estado Democrático de Direito, em que vigora uma Constituição escrita, não é reservado nenhum privilégio ou soberania a nenhum dos três Poderes. Todos devem obediência à Soberania Constitucional e respeito ao seu texto, que claramente regula as devidas funções de cada órgão. Diante disso, quando o Poder Judiciário assume uma postura extrema, ferindo os limites constitucionais referentes à competência legislativa, encontramos o ponto de ligação entre mutação constitucional e Judicialização. Ambas se constroem sob o prisma do Ativismo e ganham proporções difíceis de controlar.

 

2.3 Judicialização da megapolítica

É importante ressaltar que entre os três termos trazidos pela pesquisa, a Judicialização da “megapolítica” é o mais delicado de definir, como também é a que tem uma relação central com a Judicialização da política, pois ambas partem do mesmo ponto, diferenciando-se assim, por níveis de atuação na política. A dificuldade em defini-la consisti estritamente no que se entende por política, concepção que tem passado por mudanças ao longo de gerações e é composta por questões de impacto diferente em países distintos.

Hirschl (2002, pg.36), traz uma breve conceituação do que seria política, “Por não haver uma resposta simples à questão “o que é político?” Para muitos teóricos sociais, a resposta seria “tudo” também não pode existir uma definição simples e direta para judicialização da política”. Diante disso, é exigido a análise do assunto de maneira mais cautelosa, afinal, se tudo é política e como já foi dito antes, questões tem impacto diferentes em países distintos, a megapolítica pode não ser vista da mesma forma em contextos políticos variados, seja de um Estado para outro, seja dentro do mesmo Estado.

Adiante com o que seja “política”, a diferenciação entre megapolítica e judicialização da política se dá em uma cadeia nivelada, sendo a primeira o terceiro nível da segunda. As questões que definem o termo são de grande conjectura no senário político de um Estado, e variam entre a identidade coletiva, legitimidade de regime e justiça restaurativa. Considerando esse contexto, enxergar-se uma fragilidade ao estruturar essas demandas em cada país, mas estas são de suma importância para a distinção dos termos:

Isso posto, parece haver uma diferença qualitativa entre a relevância política de (por exemplo) uma sentença que refine as fronteiras do direito a uma audiência imparcial e um julgamento histórico que determine a legitimidade do regime de um Estado ou a identidade coletiva de uma nação. O alcance do direito a um julgamento rápido é uma questão importante para quem enfrenta acusações criminais, mas sua relevância não se compara a questões políticas “existenciais” como o status político do islamismo no Oriente Médio ou a constitucionalidade do pacto político pós apartheid na África do Sul (HIRSCHL, 2002, p.37).

De fato, a definição da “megapolítica” é uma tarefa delicada, pois requer uma análise entre tipos de políticas e quais seus impactos no contexto daquele Estado ao qual se pretende observar. Hirschl provoca uma reflexão nesse sentido, dando ao leitor dois exemplos que permitem atingir o eixo da problemática. O primeiro é o refinamento do direito que garante uma sentença mais rápida a um acusado criminal e o segundo é sobre a legitimidade de regime de um Estado, ambos são questões políticas, mas o segundo se sobressai como sendo ainda mais relevante, pois os seus efeitos recaem sobre toda a população e não apenas a um grupo determinado de pessoas.

As posturas mais ativas dos tribunais constitucionais vêm absolvendo muitas questões que, em tese, deveriam ser solucionadas pelos Poderes Legislativos/Executivos. Muitos desses debates judiciais tratam de assuntos de natureza intervencionista nos processos políticos e limitativos no processo de elaboração política, e é, de fato, nesse ponto que se caracteriza a

Judicialização da política, daí então, é que entra a “megapolítica” abordando temas de maior amplitude no cenária nacional.

As grandes questões políticas que o Poder Judiciário ou outros órgãos da mesma natureza assumiram para si refletem aspectos negativos dos países aos quais pertencem. A falta de conformidade entre valores da sociedade e os princípios estabelecidos pela própria constituição fazem com que grandes questões como a identidade coletiva, como ocorre em Israel, que tem o Estado Judeu e mesmo assim tenta manter a hegemonia do sistema político, se transformem em um grande dilema social (HIRSHL, 2002, p.49).

É evidente que a megapolítica, assim como os outros níveis de Judicialização, é construída a partir de interesses políticos partidários, de modo que o desvio das responsabilidades legislativas se torna um meio eficaz de garantir que a simpatia do eleitorado continue estável. Quando o assunto se constrói em torno de questões que abrangem uma parcela maior da sociedade e em alguns casos toda ela, o risco de se perder toda a credibilidade como candidato ou como grupo político é muito grande.

 

  1. Críticas

Nesta sessão serão abordadas as críticas que seguem o assunto da Judicialização da política e seus aspectos diante o Estado Democrático de Direito. A Separação dos Poderes é uma das primeiras a se destacar, pois é um dos pilares da democracia, afinal de contas, a distinção entre os Poderes e a determinação de funções entre eles é a maior característica indicativa de que o povo está no Poder, e qualquer ameaça ao sistema deve ser apurada com cautela.

Na mesma linha de pesquisa encontra-se a “juristocracia” que é uma crítica que se baseia em modelo ditador. Porém, o “poder” de decidir sobre questões políticas e legiferar a partir delas encontra-se nas mãos do Poder Judiciário, e não mais do Poder Legislativo ou Executivo. Essa mudança na postura dos tribunais não representa uma força a mais para a concretização das promessas constitucionais, mas sim uma ruptura com a democracia.

A judicialização, em qualquer dos seus níveis, apresenta-se como uma forte ameaça à democracia. Ao observar as críticas que serão traçadas neste capítulo, todas levam a um único ponto: as credencias democráticas restam ameaçadas, pois decisões de natureza política são essencialmente da competência do povo por meio de seus representantes diretos devidamente eleitos.

 

3.1 Separação dos poderes

O dilema que o fenômeno da Judicialização da política em todos os seus níveis tem gerado ao longo dos anos traz grandes preocupações que são diretamente ligadas à democracia, como a Separação dos Poderes e a juristocracia. Ao longo desta sessão serão abordados aspectos particulares de cada um desses poderes com o fim de esclarecer, de fato, a realidade em que os tribunais constitucionais estão envolvidos e como tudo pode afetar aos princípios inerentes a uma república democrática.

Dando início à descrição das críticas lançadas a tal fenômeno, traz-se, primeiramente, a Separação dos Poderes, que é um dos princípios afetados pela transição da competência legiferante para o Poder Judiciário. A atividade legislativa é, em uma república democrática, feita pelos representantes do povo, que são Executivo e Legislativo e compete ao Poder Judiciário a tarefa de julgar, que para Montesquieu é uma atividade nula. Em sua obra o autor traça a discussão em torno da atividade Legislativa e Executiva para que não fiquem nas mesmas mãos.

A postura ativa ou omissa daqueles que compõem os três Poderes vai de encontro à liberdade política do povo quando ferem a separação das competências do sistema democrático. Tal liberdade é descrita na obra Espírito das leis de Montesquieu como sendo a segurança que se tem uns dos outros em uma sociedade, fazendo-se refletir sobre o estado de natureza que se possa chegar, diante da instabilidade política de um governo descentralizado:

 

Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do poder executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter força de um opressor (MONTESQUIEU, 1993, p.168).

 

Montesquieu (1993) deixa evidente em sua obra que os três poderes devem ter suas funções distintas e separadas para a garantia da liberdade o povo. Assim, a Judicialização da política e a “megapolítica” causam fissuras no princípio da Separação dos Poderes, visto que passam ao Poder Judiciário a atividade legiferante, sendo esta inerente ao Poder Legislativo, realizada atipicamente pelo Poderes Executivo e Judiciário nos processos administrativos:

Embora os tribunais possam constituir um cenário adequado – talvez mesmo o melhor, tanto em termos de sua posição institucional em uma democracia quanto em termos da expertise dos juízes – para avaliar provas, determinar a responsabilidade por uma infração ou para lidar com questões de justiça processual e imparcialidade, não fica claro, de forma alguma, o que faz deles o foro apropriado para decidir aqueles dilemas cuja natureza é pura e substantivamente política (HIRSCHL, 2002, p.36).

Para a garantia da liberdade de que fala Montesquieu é necessário que um governo, ao se definir, aja de acordo com suas leis. Dito isto, uma república democrática, deve agir de acordo como os princípios que separam os Poderes, cada um com sua competência, já que esse é o eixo central da democracia. A judicialização da política, segundo Hirschl (2002, p.59) é um fenômeno político que gera algumas fissuras ao princípio da Separação dos Poderes. A mais evidente é a transformação do Direito em política, já que o Judiciário, tendo um posicionamento nulo diante dos demais, com seu julgamento e interpretações, não deveria ter em suas mãos ambas as competências, que seriam criar a lei e aplicá-la.

Em meio a esse imbróglio, não se pode deixar de evidenciar o interesse dos grupos partidários em transferir o que Hirschl (2002, p.47) chama de “batatas quentes” para os tribunais solucionarem, evidenciando sagazmente que “tudo é política”, desde a motivação para transferências de tais questões ao Judiciário, como as nomeações de ministros e representantes dos Tribunais Constitucionais.

Assim, se cria uma questão perturbadora diante dos princípios democráticos que é a transformação dos Três Poderes em uma estrutura única, a qual não se consegue distinguir quem é o que. As funções são todas “políticas”. O Judiciário ganha uma conotação que transcende sua tipicidade que é julgar de forma imparcial e tem-se agora um Tribunal politizado.

 

3.2 “Juristocracia”

Em meio às discussões sobre o fenômeno da Judicialização política, assim como a

“megapolítica” surge mais uma preocupação, que foi denominada por Hirschl (2006, p.147) de “juristocracia”. Esse termo é utilizado para representar uma das críticas que são lançadas ao tema pela literatura política, resumindo-se basicamente no abandono dos princípios democráticos para uma realidade onde as grandes questões políticas são solucionadas pelo Poder Judiciário.

Como diz Hirschl, (2006, p.146) “não se pode enfatizar demais a profundidade dessa transição”, contudo é necessário, antes de conceituar, trazer algumas definições que darão base à discussão, afinal falar de “juristocracia” é permear outros campos como a democracia e também a separação dos poderes, sendo que ambas serão discutidas separadamente nesse capítulo, cada uma com suas particularidades.

A democracia tem como principal característica a soberania exercida pelo povo, com base em princípios permanentes de legalidade. Dito isto, as leis de uma nação democrática, “devem estar em consonância com a natureza e com os princípios do governo que foi estabelecido ou que se pretende estabelecer: quer se elas o formam, como é o caso das leis políticas”, como também questões políticas devem ser dá visibilidade de toda a sociedade e solucionadas pelos representantes que ela escolheu para exercer a soberania que detêm, sob o prisma do Estado Democrático de Direito (MONTESQUIEU, 1993, p.93).

Uma lei sendo elaborada dentro de um sistema e para o sistema, onde as regras constitucionais que definem a forma de governo sejam, acima de tudo, respeitadas. Assim, chega-se mais próximo do centro da questão, pois nos países que adotaram o constitucionalismo e que são regidos por princípios democráticos tem-se a separação dos poderes como forma de garantir que o governo permaneça com a virtude da soberania popular, sem que a história da ditadura volte à atualidade.

Esse conjunto de regras cria um sistema eficaz que garante a Soberania Constitucional, onde cada órgão desse sistema tem suas competências, ficando a atividade legiferante a cargo do Legislativo/Executivo e a interpretação do conteúdo das leis, tanto ordinárias quanto a constituição, nas mãos do Poder Judiciário. Na obra de Hirschl, o autor fala que a Judicialização da política e a “megapolítica” ocasionam uma “transição” para a juristocracia:

Na maioria das vezes, essa tendência é apoiada, tácito ou explicitamente, por poderosos agentes políticos. O resultado tem sido a transformação de cortes supremas no mundo inteiro em parte central dos aparatos nacionais para elaboração das políticas públicas. Em outra oportunidade, descrevi esse processo como sendo uma transição para a juristocracia (HIRSCHL, 2006, p.147).

Apesar da obra não trazer uma análise mais profunda sobre o tema, é possível determinar que tal transição se caracteriza principalmente pela transferência das questões de natureza política para a competência dos tribunais constitucionais, que como já foi mencionado acima, não possuem competência legítima para legislar.

A “Juristocracia”, fenômeno que tem se multiplicado ao longo dos anos nos Tribunais, tornou-os uma “casa” de grandes decisões. Questões polêmicas como aborto, criminalização da homofobia e transfobia, assim como dilemas de identidade coletiva pertencentes ao campo da “megapolítica” estão sendo ilegitimamente delegadas ao Poder Judiciário, transformando-o em casa soberana na tomada de decisões que deveriam ser democráticas.

 

3.3 Ameaça à democracia

Adiante com a apresentação sobre as críticas da judicialização da política, será esmiuçada aqui a ameaça à democracia proporcionada por esse fenômeno. Logo é interessante ressaltar que as demais críticas, já apresentadas antes, também guardam relação com princípios democráticos. Contudo, a intenção agora é evidenciar a principal característica de um Estado democrático: a associação da atividade legiferante ao povo.

A atividade legislativa, em uma república democrática, deve inspirar confiança em seu povo, e para isso o povo elege seus representantes, que se presumem de acordo com os princípios e virtudes daqueles que os escolheram. Montesquieu (1993, p. 20) fala dessa confiança onde o povo “tem necessidade, como os monarcas e até mais do que eles, de ser conduzido por um conselho ou senado. Mas para ter confiança, deve eleger seus membros…”. Dessa maneira, é demostrado que as leis são provenientes de uma confiança depositada no poder Executivo/Legislativo pelo povo, por meio do sufrágio universal.

Montesquieu (1993) se direciona ainda a uma lei fundamental na democracia a qual preceitua que que do povo devem vir as leis. Dessa máxima tira-se algumas indagações que levarão ao tema desta pesquisa. Um Tribunal Constitucional, com sua postura mais ativista, poderá exercer a atividade legislativa, visto que seus membros não são diretamente escolhidos pelo povo? Essa é uma pergunta de difícil resposta, já que a postura do Poder Judiciário, denota uma evolução na teoria constitucionalista, em que o protagonismo judicial é, por vezes, confundido com a Judicialização da política.

Sendo assim, quando se observa a alta demanda de assuntos políticos na esfera de atuação do Poder Judiciário e que a partir daí surgem leis regulando tais assuntos, a questão da representatividade popular vem à tona, explicitando a quebra nos princípios do estado democrático de direito.

Uma democracia, onde suas credencias são desrespeitadas, demostra uma instabilidade política, que pode ocasionar um enfraquecimento da segurança tanto no criar das leis, como no aplicar delas. Hirschl (2002, p.74) diz que “a obrigação dos juízes e das autoridades jurídicas é a de formar tribunais justos e imparciais perante os quais as partes em conflito possam solucionar seus litígios em conformidade com normas legais preexistentes de aceitação geral”. Esse ambiente de segurança só se concretiza quando os três poderes estão em harmonia com suas funções dentro do modelo constitucional adotado pelo poder constituinte.

Com a máxima de que as leis devem ser feitas pelo povo, o fenômeno da Judicialização, em seus diferentes níveis, representa a impotência do eleitorado em reivindicar e monitorar o processo ordinário de criação de suas próprias leis, visto que, os tribunais constitucionais são preenchidos por indicações, muitas vezes, políticas. É evidente que o clamor do povo não alcançará essa classe e é menos provável que se faça dessa democracia uma sociedade, verdadeiramente livre.

 

  1. Tribunal Penal Internacional e sua tomada de decisão

Diante de toda a definição e controvérsias expostas e os termos que entrelaçam, como também as críticas que cercam o tema, fica mais nítido os pontos contributivos da Judicialização da Política. Para uma explicação mais relevante é necessário que essa discussão seja feita a partir do eixo que dá início ao surgimento de tudo: o neoconstitucionalismo.

Já foi mencionada pouca mais acima sobre as mudanças ocorridas no pós-guerra, que desencadeou uma evolução na forma de pensar, constituir e executar uma Constituição em um Estado Soberano. Tal mudança, se traduz basicamente como diz Lênio Streck tendo um “plus” normativo no concerne a atividade do Poder Judiciário, que ao longo dessa jornada democrática vem sendo usada como manobra político partidária.

Contudo, o neoconstitucionalismo busca como objetivo central o equilíbrio entre a Norma Constitucional e a realidade social, onde ambas devem caminhar em uma estrita relação de interdependência onde a primeira serve de proteção e amparo para a segunda. Nesse contexto é que se encontra o ponto positivo da Judicialização da Política, que se desencontra com as críticas já mencionadas neste artigo.

A atuação protagonista do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito é uma ferramenta que possibilita a concretização dos Direitos e Garantias Fundamentais aos cidadãos de uma Nação, como também os Tribunais Internacionais garantem a ordem e a lei no que tange ao Direito internacional.

De tal maneira, surge uma questão: os Tribunais Internacionais gozam, de fato, do “plus” normativo e demais prerrogativas decorrentes do neoconstitucionalismo? Esse, apesar de ser um ponto delicado a se tratar por envolver questões políticas, econômicas e até de natureza bélica das grandes potências mundiais, é de extrema importância para o Direito Internacional.

Um dos exemplos a se mencionar é TPI – Tribunal Penal Internacional, que foi como menciona Sousa Neto (2016) “instituído pelo Estatuto de Roma, aprovado em julho de 1998 por cento e vinte Estados, com apenas sete países posicionando-se em sentido contrário – a China, os Estados Unidos, o Iêmen, Israel, Iraque, Quatar e Líbia –, e entrou em vigor em 2002”. O principal objetivo do TPI é a proteção dos Direitos Humanos, mas sua atuação reservada torna essa tarefa dificultosa e inefetiva quanto ao julgamento dos crimes de sua competência.

O Tribunal Penal Internacional tem algumas restrições quanto a sua atuação, sendo estas o Princípio da completariedade e a Restrição da legitimidade ativa as preponderantes. O Princípio da completariedade só permite que o TPI atue nos crimes de sua competência quando os Estados-membros não estiverem em condições de levá-los a cabo ou não quiser realizá-los:

Diante de tais desavenças, já se pode perceber que o segundo bloco, encabeçado pelo CS-ONU, foi o que prevaleceu; e a adoção do princípio da complementariedade é um dos pontos que evidenciam com uma clareza solar a modéstia do poder jurisdicional, pois essa regra fundamental intrínseca à estrutura e à operabilidade da Corte tolhe a universalidade da sua jurisdição e, por conseguinte, compromete a efetividade das suas decisões. (2012, pg.18)

 

Outro ponto importante se trata da reação do TPI quando de frente a um atentado aos Direitos Humanos e também a crimes de guerra, sendo este subordinado a um pedido do Estado-membro ao Procurador para as investigações e julgamento do delito. Essa é uma vertente que dá ensejo para preferencias políticas e se desfaz quanto aos interesses do Direito Internacional:

Tal informação tange novamente o analista para o mesmo ponto originário dos erros supra apontados: o papel desempenhado por alguns países – com destaque para as grandes potências e os integrantes do Conselho de Segurança da ONU – na elaboração do diploma que instituiu o TPI, de modo a preponderar a sua vontade política em face da integridade da humanidade. Ou seja, mais uma vez verifica-se que o Estatuto de Roma não provocou uma efetiva ruptura com a realidade do século XX, mais especificamente, com o contexto do Tratado de Versalhes: o de um tratado feito por países em prol deles próprios. (2012, pg.20)

 

Diante do exposto, é fácil perceber uma clara subsidiariedade do TPI com relação aos Estados-membros e ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Especificamente, essa afirmação se traduz no fato de existir uma clausula de “Adiamento do Inquérito e do Procedimento Criminal” onde Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas pode suspender um inquérito ou um julgamento por doze meses e ainda o prorrogas por tempo indefinido, de maneira a demostrar a influência dominante que a Organização das Nações Unidas possui na tomada de decisão do Tribunal.

Assim, a efetiva atuação jurisdicional do Tribunal encontra-se prejudicada e seus objetivos, motivos de sua criação, restam presos na morosidade e interesses políticos dos Estados, mais precisamente da ONU. É exatamente neste diapasão que a Judicialização da Política encontra seu aspecto positivo: a atividade jurisdicional independente e ativa na punição de crimes e garantias de direitos que afetam toda humanidade:

Mais uma vez vê-se a “timidez normativa” de um diploma que instituiu uma Corte Internacional de Justiça Penal de capacidades restritas e dependentes de outros Órgãos externos, inapta e incapaz de prevenir, investigar, julgar e sancionar crimes contra a paz internacional, oficiando de maneira tal que seus despachos e decisões são carentes de efetividade, não potencializando a devida e necessária tutela dos direitos humanos. (2016, pg.21)

 

Um Tribunal legitimamente constituído e que possui a guarda da paz mundial deve manter-se distante dos interesses políticos dos Estados-membros, em especial das grandes potencias políticas e econômicas, do contrário corre o sério risco de permitir que crimes de guerra e atentados contra a humanidade não sejam prevenidos e quando cometidos permaneçam sem punição.

 

Conclusão

Ao longo do trabalho foram expostos vários motivos que influenciaram na evolução do fenômeno da Judicialização da política e como eles atingem o regime democrático de um país. Dessa maneira, durante todo o percurso da pesquisa foi possível chegar a algumas conclusões sobre o tema e no decorrer dos capítulos encontram-se esmiuçadas as causas para essa realidade política presente nos governos redemocratizados.

No capítulo pertinente à discussão sobre a Judicialização da Política foi abordado conceito, características mais pertinentes e eventos históricos que deram propulsão a seu crescimento. Ainda no primeiro capítulo e para melhor explicar o que seja tal fenômeno, houve a necessidade de separar as definições de termos que a doutrina, em muitos casos, faz confusão quanto à sua distinção.

Entre os termos acima mencionados estão o Ativismo Judicial, a Mutação Constitucional e a Judicialização da megapolítica. Os três são de extrema importância para a compreensão da Judicialização, sendo que seus conceitos delimitam o perímetro em que atua o fenômeno, e desta maneira abre espaço para o embasamento de críticas sobre o assunto.

Em seguida à definição dos termos, temos a discussão que se faz em torno das críticas lançadas a esse fenômeno e como ele pode afetar o mundo do Direito e da Política, entrelaçando-os desarmonicamente. No cerne da discussão encontramos a Separação dos Poderes, fenômeno de indiscutível relevância para a democracia e como seu processo é afetado diretamente pela invasão da política pelo judiciário. Outro ponto abordado é a mutação do estado democrático de direito, que passaria para um estado em que foi denominado de “juristocracia”, sendo este último um governo moldado por juristas. Adiante é salientado que os movimentos em defesa da Judicialização da política configuram-se como uma real ameaça à democracia.

Assim, ao fim desta pesquisa e após analisar todos os pontos acima descritos, se fez necessário abordar aspectos positivos da Judicialização da Política, sendo este a atuação protagonista dos Tribunal Penal Internacional na sua tomada de decisão quanto a proteção dos Direitos Humanos e o julgamento de crimes de guerra e contra a humanidade.

Desta maneira, chega-se à conclusão de que a Judicialização da Política, em seus vários níveis, causa um enfraquecimento das credencias democráticas e acaba por transformar todos os poderes em uma grande arena política. Porém, é importante ressaltar que há um outro lado desse fenômeno, que é necessário para dar aos Tribunais uma atuação mais independente e capaz de realizar seus objetivos e concretizar sua razão de existir para a humanidade.

 

Referências

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011.

 

SOUSA NETO, Cícero Alves de. O tribunal penal internacional: uma abordagem crítica quanto à sua efetividade na tutela dos direitos humanos. Revista Transgressões Ciências Criminais em debate. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/transgressoes/article/view/8714. Acesso em: 07 de outubro de 2019.

 

PEDRA, Adriano Sant’ana. As Mutações Constitucionais e o Limite Imposto pelo Texto da Constituição: uma análise da experiência latino-americana. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Disponível em: https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/viewFile/116/112. Acesso em: 02 de abril de 2019.

 

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucionais e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004.

 

MOREIRA, Luiz. A Judicialização da Política. 1ª ed. São Paulo: Ed. 22 editorial, 2002.

 

HIRSCHL, Ran. O Novo Constitucionalismo e a Judicializaçãp da Política Pura no Mundo. Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:

http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/7533. Acesso em: 10 de abril de 2019.

 

BARROSO, Luiz Roberto. Judicialização, Ativismo e Legitimidade Democrática.

Disponível em: https://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf Acesso em: 21 de março de 2019.

 

MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. 1ª ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1993.

 

  1. Bacharel em Direito na Faculdade Luciano Feijão.
  2. Graduado em Letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA (Sobral-CE). Especialista em Gestão Escolar pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA (Sobral-CE). Especialista em Gestão e Políticas Públicas pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF (Juiz de Fora – MG). Professor da Rede Estadual e Municipal de Coreaú-CE. Diretor da EEM Mª Menezes Cristino pertencente à Rede Estadual do Ceará. Graduando em Direito na Faculdade Luciano Feijão – FLF (Sobral-CE).
  3. Graduado em Contabilidade pela Universidade Estadual Vale do Acara-UVA (Sobral-CE). Especialista de Contabilidade Financeira pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA (Sobral-CE). Graduando em Direito pela Faculdade Luciano Feijão – FLF (Sobral-CE).