Obrigação e crédito tributário: crítica terceira ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho

Sumário: 1.
Questões introdutórias. 1.1. Norma individual e concreta na teoria carvalhiana.
1.2. Distinção entre norma jurídica e ato de cumprimento. 2. Processo de
positivação do direito: os chamados “deveres instrumentais”. 3. Processo de
positivação do direito: lançamento e “autolançamento”. 4. Sobre a norma
individual e concreta produzida pelo contribuinte. 5. Conclusão. 6.
Bibliografia.

1. Questões introdutórias.

1.1. Norma individual e concreta
na teoria carvalhiana.

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Há conceitos que são utilizados acotiadamente na práxis jurídica,
malgrado os que deles façam uso não tenham a exata compreensão dos seus
possíveis significados, sobretudo daqueles mais rigorosos, construídos pela
ciência do direito. Falamos de direito subjetivo, propriedade, norma jurídica,
posse etc., como se tais signos expressassem uma mesma significação, de tal
sorte que chegamos quase a imaginar que exista um objeto físico, concreto, que
corresponda na realidade palpável a essas expressões. Todavia, não vemos, não
cheiramos, não pegamos em nossas mãos um “direito subjetivo”. Posso ter em
minhas mãos um livro, que repute me pertencer, razão pela qual posso afirmar
ter direito subjetivo sobre ele. Porém, o direito subjetivo mesmo não existe no
mundo fenomênico, sendo uma significação jurídica que qualifica a minha relação
com aquele objeto perante todos os outros
homens
. O direito de propriedade, por exemplo, é a situação jurídica de um
sujeito perante todos os outros (erga
omnes
) em face de um objeto.

O mesmo ocorre quando empregamos a expressão “norma jurídica”. Quase
intuitivamente sabemos do que se trata quando fazemos a ela menção, ainda mais
porque todos os dias, em nossas atividades mais simples e corriqueiras, quer
saibamos quer não, nós aplicamos normas jurídicas em nossas vidas. Quando
pegamos um ônibus, ou quando nossos filhos vão à escola, ou quando almoçamos em
um restaurante, estamos agindo em conformidade ou desconformidade com elas, que
regulam as nossas condutas, fixando o que seja permitido, obrigatório ou
proibido.

Poderemos afirmar, sem maiores preocupações teóricas, e apenas para
estabelecer alguns pontos de apoio às afirmações que se seguirão, que são
normas jurídicas as proposições prescritivas, expedidas por órgão competente,
com a finalidade de interferir na zona material da conduta humana. É dizer, as
normas jurídicas são conteúdo de um enunciado (não são o enunciado mesmo),
vertido em linguagem, com a função conativa de condicionar o agir humano
(nêustico), permitindo – numa análise mais sociológica – que vivam os homens em
sociedade com um mínimo de previsibilidade. Essa a razão pela qual o Direito é
um processo de adaptação social, no dizer sempre preciso de Pontes de Miranda.

O vocábulo “norma”, entre os juristas, é ambíguo: às vezes designa o
documento normativo (o texto da lei, e.g.);
outras, refere-se ao conteúdo do documento. Por vezes, emprega-se-o em ambas as
hipóteses. Essa distinção ganhou em relevo com o advento da filosofia da
linguagem, quando o espírito humano passou a ter a linguagem não apenas como meio
para o conhecimento, mas também como objeto temático do conhecimento. Nos
rincões jurídicos, a filosofia analítica (Carnap, Russell, primeiro
Wittgenstein) passou a ter diversos seguidores, vindo o Direito a ser analisado
como linguagem, com o surgimento de uma preocupação crescente com a textura
aberta da linguagem jurídica (Hart, Ross etc.), os limites da interpretação
jurídica (Tarello, Guastini, Bobbio, MacComick etc.), o problema da
discricionariedade e dos princípios jurídicos (Esser, Dworkin, Alexy etc.),
entre outras tantas questões que estão na ordem do dia.

Para a corrente jurídica italiana de viés analítico, denominada por
Mauro Barberis de “scetticismo à la
génoise
[1],
é fundamental essa distinção entre disposição e norma, como desdobramento da
distinção entre enunciado e significado. Assim, não se pode confundir a
disposição (texto, enunciado) com a norma jurídica, que é o seu significado.
Riccardo Guastini, como poucos, faz insistentemente essa distinção conceptual[2],
para sacar dela alguns importantes postulados, que resumidamente poderemos
enumerar: (a) a relação entre disposição e norma não é biunívoca, ou seja, uma
mesma disposição pode exprimir diversas normas, enquanto uma mesma norma pode
ser expressa por diversas disposições; (b) todo significado, e portanto toda
norma jurídica, é produto exclusivo da interpretação; e (c) a norma, como
produto da interpretação, é produzida ou criada pelo intérprete[3].

Quando se sustenta que a norma jurídica é produzida pelo intérprete,
algumas questões relevantes surgem. É óbvio que, ao se sustentar que o
intérprete cria a norma, faz-se necessário fixar desde o início se há um
intérprete autorizado a produzi-la a partir do enunciado, ou se todos são autorizados a válida e
vinculativamente interpretar, criando normas. Esse problema nos remete a uma
importante questão: a quem se destina a norma jurídica? Quando Riccardo
Guastini sustenta que o intérprete cria a norma, atribuindo um significado ao
texto legal, o faz por entender que os destinatários das normas jurídicas são
os órgãos de aplicação, ou seja, a
autoridade competente para aplicar os documentos legais. Segundo o professor
peninsular, “(…) sembra lecito
sostenere che le norme giuridiche se rivolgano – ora direttamente, ora
indirettamente – non già ai comuni ‘cittadini’, ma agli organi dell’aplicazione
e segnatamente ai giudici
[4].
Assim, a interpretação que produz a norma não é qualquer interpretação, mas apenas aquela proveniente do órgão de
aplicação. De fato, se todos os cidadãos produzissem normas jurídicas através
de sua interpretação, todo agir seria lícito, porque a conduta e a norma
derivariam da mesma fonte, ou seja, a mesma pessoa seria a responsável para
regrar a sua própria conduta em uma situação concreta. Tal entendimento
levaria, à evidência, a que todos produzissem as suas próprias normas, de modo
que o excesso delas, decorrente da vulgarização da atividade interpretativa
(que seria sempre nomogenética), implicaria na verdade a sua falta: é dizer, a
anomia. Onde tudo significa tudo, nada significa nada (Pasqualini).

Abramos aqui um breve parêntese, que nos será sumamente útil no
decorrer de nossa exposição. É conveniente anotar que o modelo teórico de
Guastini é totalmente diverso do adotado por Lourival Vilanova. Para o saudoso
mestre pernambucano, a norma jurídica é um prius
ao ato de aplicá-la. E isso, porque a norma jurídica é norma, como dado
objetivo. Afinal, “O direito positivo está-aí, dado na experiência, comprovável
por todos: nessa intersubjetividade de constatação reside o critério objetivo
de verificação”[5].
Sendo a norma uma significação vivenciada intersubjetivamente, visando
modificar a zona material da conduta humana, não é ela resultado da atribuição
de significado que um sujeito cognoscente individualizado outorgue ao texto
legal. Para Lourival Vilanova, essa tese é reducionista e relativista, sendo
por ele reprochada.

Fechemos o parêntese e vamos adiante. Paulo de Barros Carvalho adota a
distinção feita por Riccardo Guastini entre texto e norma, reputando que esta é
a significação atribuída pelo intérprete àquele[6].
Todavia, embora conceda à interpretação essa função atributiva e criativa de
significação, não cuidou em especificar o órgão competente para realizá-la. Em
passagens de seu pensamento, fica evidente que os destinatários das normas
jurídicas não se limitam aos órgãos autorizados à aplicá-la como função
específica (juízes, agentes público etc.). Todos seriam os seus destinatários,
desde que mantendo relação de pertinência com o evento descrito no antecedente
da norma. Afirma Paulo de Barros Carvalho[7]: “Ao captar a mensagem normativa, o
destinatário da norma terá, em sua mente, uma representação
: se ocorrer o
fato F, no plano da realidade tangível, deve-ser a conduta C, do sujeito S2
perante o sujeito S1. O ‘dever-ser’ encerra aí seu percurso, porque diante dessa representação o destinatário
vai orientar-se de acordo com as determinações de sua vontade, que poderá
manifestar-se tanto no sentido da conduta prescrita, como no de seu
descumprimento
. Rompe-se o fio do dever-ser
e passamos a lidar com as contingências do ser”.
Porém, essa ampliação dos destinatários das normas jurídicas apenas é possível
em razão de uma distração teórica de
Paulo de Barros Carvalho: pressupõe ele que a norma não seja criação do
intérprete, mas produção do legislador e vinculativa para todos. Diz ele[8]:
“O vetor que orienta o comportamento do receptor da mensagem será uma função
dos valores que entram em jogo quando ele
pensa na representação mental provocada pela norma
. Por isso legislar é uma
arte. Ao produzir a regra o legislador
deverá mobilizar, ao máximo as estimativas, crenças e sentimentos do
destinatário, de tal modo que o faça inclinar-se
ao cumprimento da conduta prescrita
, pois nesse empenho se resolverá a
eficácia social da norma jurídica”. Mais adiante, enfatiza esse ponto: “No
que tange à incidência da norma tributária, tudo se passa do mesmo modo.
Publicado o veículo introdutor de enunciados prescritivos (lei, decreto,
sentença, ato administrativo etc.), seu destinatário saberá que, uma vez
ocorrido o fato F, deverá recolher aos cofres do Poder Público certa
importância a título de tributo. Entre os fatores que atuam no sentido de que
determine sua vontade pelo cumprimento da conduta está a sanção, que também é
norma”[9].

Ora, é evidente que essas afirmações negam seja a norma jurídica um
produto do intérprete, posto que a norma já seria aí um dado, criado
previamente pelo legislador. O destinatário da norma não a criaria: ele a
captaria em sua mente como algo que já estaria antecipadamente criado. Por
isso, a assertiva de que legislar seria uma arte. Nada obstante, todo o resto
da sua obra é escrita para negar essas afirmações, para contradizê-las,
sustentando o inverso[10]:
“Sobre o sentido dos enunciados, é preciso dizer que ele é construído,
produzido, elaborado, a contar das marcas gráficas percebidas pelo agente do
conhecimento. Desde que se mostre como manchas de tinta sobre o papel, no caso
do direito escrito, insisto, assumindo a natureza de um ente físico,
materialmente tangível, não se poderia imaginar, em sã consciência, que essa
base empírica contivesse, dentro dela, como um jóia, o conteúdo significativo,
algo abstrato, de estrutura eminentemente ideal”.

Deixaremos de lado, por alguns momentos, essas contradições explícitas
na exposição do pensamento do professor paulista, nos preocupando apenas com a
parte de sua teoria que sustenta seja a norma jurídica um produto da
interpretação dos textos legais. Para a teoria carvalhiana existem normas
gerais e individuais, abstratas e concretas. A generalidade e a individualidade
seria definida pelos seus destinatários: geral
seria a norma que se destina a um conjunto indeterminado de sujeitos quanto ao
número, enquanto individual, a que se
voltaria a certo indivíduo ou a um grupo identificado de pessoas[11].
O processo de positivação do direito caracteriza-se justamente pelo fato de as
normas gerais e abstratas, para avançarem na direção das condutas humanas,
requererem a expedição de norma individual e concreta. É essa sucessão de
normas, baixando incisivamente para o plano das condutas humanas, que Paulo de
Barros Carvalho chama de processo de
positivação do direito
. E esse processo requer o ser humano, que cria
sempre fontes de produção normativa de menor escalão hierárquico[12].

Para a teoria carvalhiana, as normas não tocariam nunca o plano das
condutas humanas, porque haveria sempre um intervalo intransponível entre o
dever-ser e o ser, de modo que as normas gerais e abstratas apenas ganhariam em
densidade quando fossem emitidas normas individuais e concretas: enquanto
aquela seria constituída por um enunciado conotativo, essas seriam produtos de
um enunciado denotativo e protocolar. Sendo assim, toda realidade jurídica
seria produzida pela linguagem competente das normas jurídicas: o fato jurídico,
ele próprio, seria um enunciado protocolar e denotativo, articulado em
consonância com a teoria das provas. Para que houvesse fato jurídico, seria
necessário que houvesse uma norma individual e concreta. Mais ainda: o fato jurídico seria o antecedente de
uma  norma individual e concreta[13]
.

Essa afirmação é medular na teoria
carvalhiana: todo fato jurídico seria um enunciado lingüístico protocolar e
denotativo, colocado no antecedente de normas jurídicas individuais e
concretas. Sem a expedição de uma norma individual e concreta, portanto, não
haveria fato jurídico. Essa é a razão pela qual, para Paulo de Barros Carvalho,
as situações da vida (eventos) apenas ganhariam o timbre de juridicidade se
viessem a ser objeto de um enunciado, transformando o evento em fato, pela
enunciação protocolar. Noutro giro, a positivação do direito se faria sempre
através da linguagem, que certificaria os acontecimentos factuais e expediria
novos comandos: “a percussão da norma pressupõe o relato em linguagem própria: é a linguagem do direito constituindo a
linguagem jurídica
[14].

1.2. Distinção entre norma
jurídica e ato de cumprimento.

Para a teoria carvalhiana, a facticidade jurídica seria sempre
lingüística (ou seja, expressa em linguagem escrita). Os fatos seriam enunciados
protocolares e denotativos, veiculados pelo antecedente de uma norma jurídica
individual e concreta[15].
Como todos os fatos jurídicos são, em última análise, enunciados prescritivos,
o ser do direito seria sempre um dever-ser, porque os próprios fatos seriam
enunciados com função conativa. O direito seria uma camada de linguagem sobre
outras camadas de linguagem, mas não tocaria a mundanidade da vida, não tendo
uma facticidade concreta e social. O direito seria um conjunto de normas
prescritivas a produzir novas normas prescritivas, mas os atos de cumprimento
desses preceitos não fariam parte do direito, sendo eles fatos sociais apenas,
sem a dignidade de serem jurídicos. Não por outra razão, quando alguém cumpre
uma norma jurídica, sem a emissão de um enunciado em linguagem competente, a
teoria carvalhiana reputa o ato de cumprimento mero fato social[16].

É interessante notar que nem mesmo Hans Kelsen foi tão longe no
purismo do direito, reduzindo a facticidade jurídica ao plano da linguagem
escrita. Para ele, a norma jurídica pode ser cumprida ou aplicada. Havendo
cumprimento, no plano do ser, atingiu ela a sua eficácia (diríamos nós, a sua
efetividade); se houver o seu descumprimento, há ela de ser aplicada,
dirigindo-se a sanção prescrita contra a conduta contrária[17].
A aplicação, por conseguinte, decorre do descumprimento da norma secundária
(norma de conduta). E isso se justifica porque para Kelsen o dever-ser não é uma relação entre dois
elementos: nem uma relação entre uma norma e a conduta que lhe corresponde, nem
uma relação entre o ato de fixação da norma e a conduta correspondente à norma.
Em verdade, o dever-ser é a norma, ou
seja: o sentido do ato de vontade que a veicula[18].
Consoante afirma Kelsen: “O sentido do ato de fixação da norma é um ato de vontade,
é um dever-ser, a norma. O fim do ato de fixação da norma não é, porém, este
dever-ser, mas um ser; é a conduta existente na realidade, a qual corresponde à
norma, e isto significa: a conduta iguala
àquela que aparece na norma como devida, mas não é a ela idêntica”. E arremata:
“(…) se o ato de fixação da norma atua como meio para produzir como efeito a
conduta correspondente à norma, a relação entre este meio e seu fim não é o
dever-ser da norma”[19].

Como se pode ver, a norma jurídica é um dever-ser dirigido ao ser da
conduta. É certo porém que a conduta realizada conforme a norma não significa
que tenha sido efeito causal dela, porque de uma declaração lingüística não se
segue logicamente a ocorrência de um fato F. Na verdade, interpreta-se o enunciado
lingüístico como “comando” e o fato F como cumprimento de um “comando”: o
sentido que liga o fato F à norma é que o faz cumprimento de um “comando”[20].

Para Kelsen, apenas a norma individual pode ser diretamente cumprida
ou violada, pois apenas seria possível uma conduta ser qualificada como
cumprimento de norma ou violação de norma se a condição determinada in abstracto na norma geral é realizada in concreto[21].
Para ele, contudo, a norma geral e abstrata tem como destinatário os órgãos
competentes de aplicação, a quem cumpriria a edição da norma individual e
concreta[22].
E o destinatário da norma individual a ser fixado pelo juiz é um órgão de
execução: “Por sua vez, o juiz é destinatário de uma norma: da norma jurídica
geral que estatui que o juiz deve fixar essa norma individual dirigida ao órgão
de execução”[23].
Para Kelsen, então, os destinatários
imediatos
das normas são os órgãos oficiais de aplicação, enquanto os destinatários mediatos seriam os
indivíduos. Com isso, a indagação se um sujeito de direito violou ou cumpriu
uma norma – a norma jurídica secundária (ou de conduta) – apenas poderia ser
decidida, de modo juridicamente relevante, pelo competente órgão aplicador do
direito[24].
Para Kelsen, portanto, o direito termina por ser reduzido ao direito dos
tribunais, notadamente em razão do descumprimento da norma, que geraria a
necessidade da sua aplicação
autoritativa, pelos órgãos credenciados. Numa palavra: os enunciados
prescritivos são molduras, cujo sentido é a norma a ser objeto da
interpretação. Todavia, a interpretação que conta é aquela autêntica, do seu
destinatário principal: o juiz.

Entrementes, para Kelsen, toda vez que o indivíduo cumprisse a norma
jurídica, estaria realizando o dever-ser que é a norma. Assim, não se pode
confundir a norma (plano do dever-ser) com o seu cumprimento (plano do ser). O
ato de cumprimento de uma norma geral e abstrata, ou individual e concreta, não
é sempre a emissão de uma outra norma
individual e concreta. Riccardo Guastini[25]
chama o enunciado que qualifica como obrigatória uma ação de “comando”; o que qualifica como obrigatória uma omissão, de “dever”. Desse modo, “L’obbedienza ad un comando se
dice ‘ezecuzione’. L’obbedienza ad un divieto si dice ‘osservanza’”. Observar
ou cumprir o comando da norma não significa, pois, expedir novas normas, como
se o ordenamento jurídico ficasse sempre e apenas no plano do discurso, sem
descer ao mundo da vida, atuando como processo de adaptação social. Cumprir normas jurídicas não é,
necessariamente, expedir novas normas
.

Hans Nawiasky[26]
nos dá lição preciosa sobre esse ponto: “A realização dos atos jurídicos
individuais com base nas normas genéricas pode ser concebida como uma concretização destas normas jurídicas
genéricas. De fato, a aplicação do direito consiste, por natureza, na agregação
de concretos elementos fácticos aos preceitos jurídicos abstratos. Os atos jurídicos concretos podem consistir
no estabelecimento de normas individuais
– pense-se no negócio jurídico, na
sentença judicial, no mandato administrativo – ou representar os últimos atos de realização do direito, os atos reais
que, como ponto final do processo jurídico, criam fatos, mas não normas de
direito
– exemplos: a entrega da coisa, a ocupação do objeto, a detenção de
pessoas”. Essa distinção entre atos jurídicos normativos e atos jurídicos reais
é intuitiva e necessária. Quando o juiz determina a prisão do réu, prescreve
seja ele segregado. Todavia, não basta ao ordenamento jurídico a emissão da
norma jurídica individual: requer ela que o enunciado prescritivo seja
cumprido, se realizando no mundo da vida, para que o direito alcance a sua
função modeladora da conduta humana. Um direito apenas abstrato, no plano do
enunciado, é a negação do próprio direito, porque não atinge nunca o seu
escopo. São inconfundíveis as normas jurídicas e os atos que cumprem suas
prescrições. Aliás, precisas são as palavras de Pontes de Miranda[27]:
“(…) as ordens, positivas ou negativas, são inconfundíveis com o que por
ordem se faz; bem assim, os mandados em geral. O que se impõe ou
se veda é inconfundível com o ato de ordem, de imposição ou de redação.
Supõe-se que alguém haja de obedecer, como se o delegado ordena ao carcereiro
que solte o preso, ou como se o fiscal ordena ao policial que apreenda o
contrabando”.

Quando a teoria carvalhiana reduziu o direito a um conjunto de normas
jurídicas, afirmando que a Ciência do Direito, em nome da unidade do campo
objetal, apenas teria por preocupação temática os enunciados prescritivos,
terminou por afastar das preocupações teóricas da dogmática jurídica todos os
fatos juridicamente relevantes que não fossem normas. Mais ainda: para manter a
sua lógica interna, viu-se obrigada a tratar como normativos os atos reais de
cumprimento, que não veiculam normas jurídicas, como são exemplos notáveis,
adiante analisados, o recibo de pagamento e a nota fiscal emitida. Esse ponto
será melhor tratado adiante. Para o momento, é curial apenas deixar assentado
que a teoria carvalhiana, embora afirme que a norma jurídica é o significado
atribuído pelo intérprete aos enunciados postos pela autoridade competente,
assegura a todos os indivíduos essa qualidade nomogenética, não seguindo
(apenas aparentemente, como veremos) o pensamento de Kelsen, Guastini e Ross,
que põe a autoridade competente como destinatária das normas jurídicas. Essa
postura, como encarecido no primeiro texto desta trilogia, conduz a um
relativismo hermenêutico extremado aparente[28],
porque, ao final, Paulo de Barros Carvalho irá exigir o conhecimento da autoridade competente para dar positividade à norma
criada pelo indivíduo[29].
Ademais desse relativismo hermenêutico, reduz-se a facticidade do direito a uma
facticidade lingüística, de modo que os fatos jurídicos são apenas enunciados
normativos. Destarte, o ato de cumprimento da norma seria estranho ao direito,
sendo fato social, sem a dignidade de se tornar fato jurídico.

Aqui fica mais evidente o sincretismo metodológico da teoria
carvalhiana, que rejeita integralmente a medula do pensamento de Lourival
Vilanova, nada obstante dele procure se utilizar a cotio em defesa de seus
postulados. Para o professor pernambucano, o processo de positivação do direito não é um processo apenas
normativo, porque a positividade exprime a relação do significado (norma) com
os fatos, pois a destinação das normas é serem realizadas. Desse modo, a
positividade é propriedade que transcende à norma: advém da relação dela com a
conduta, da significação com o fáctico[30].
Por essa razão, Lourival Vilanova impugna uma dogmática que tome o direito
apenas como enunciados, perdendo de vista a sua inserção na mundanidade da
vida, como fato cultural. Por isso,
adverte ele[31]:
“(…) o Estado é sistema de normas cujo correlato objetivo não é reproduzir
objetos, mas regular uma classe de objetos: a conduta. Diferentemente do sistema
de proposições científicas, o sistema de proposições normativas leva inerente a
pretensão de ordenar ou regular o dado da conduta humana. (…) As proposições
normativas da ordem estatal pretendem ser realizadas. Por isso serão eficazes
ou ineficazes, dependendo dessa confirmação pelo dado a regular a sua
positividade. Sem positividade, portanto
sem poder de influir na conduta, perdem a validade, ou retém de validade apenas
a propriedade lógica de estarem conforme às ‘leis do sentido’
(condensadas
nas leis lógicas supremas, nos axiomas lógicos e nos demais princípios
lógicos)”. Finalmente, arremata o saudoso professor[32]:
“(…) A afirmação de que a positividade implica um certo quantum de eficácia mostra que a análise da positividade, como
escalonamento sucessivo de delegações, não pode impedir que essa análise se
‘impurifique’ com a ingerência de um dado que é fatual”.

É preciso que o direito se impurifique,
saia de suas tramas lógicas e desça à concretude da vida, como fato cultural e
social que é. O dever-ser do direito logicamente não se reduz ao ser, mas se
realiza no ser. O dever-ser que não se realiza, a norma que não incide e tem um
quantum de efetividade, tem validade
apenas lógica, porém perde o seu thelos.

Por isso, é curial averbar que a teoria carvalhiana, com sua redução
do fenômeno jurídico à lingüisticidade das normas, nega o pensamento de
Lourival Vilanova, que vê o direito como idealidade normativa e como realidade
factual. E isso fica ainda mais evidente nas seguintes lições do jurista da Faculdade
de Direito do Recife[33]:
“O fato da cultura não reside no direito como complexo de significações
normativas, como não reside nos ideais absolutos ou valores puros
correspondentes ao setor do jurídico. O fato da cultura reside na realização
dos valores, na efetivação das normas, no
cumprimento das prescrições
. A cultura dá-se com a realização do dever-ser
(no qual se põe normativamente o cumprimento de certos valores). Mas,
realização de valores, ou realização de normas exige interrelação de atos e fatos
humanos com normas e valores. Para nos restringirmos ao direito: a cultura implica que o dever-ser, de algum
modo, penetre na esfera do ser. Que o dever-ser, sem perder sua especial
constituição normativa, se relacione com o ser
. A conseqüência é clara: se
o Estado ou direito é um fato da cultura, a
essência do direito não reside em ser um sistema de normas, mas em ser um
sistema de normas em efetividade, em progressiva realização. Importa, para uma
integral compreensão científico-empírica do Estado, não só o normativo, mas
também o fato, não só a proposição como entidade lógica, mas a observância da
prescrição proposicional por parte dos sujeitos cuja conduta pretende regular
”.

Como se vê da longa transcrição feita, Lourival Vilanova constrói o
seu pensamento jurídico encimado em sua formação sociológica, vendo o direito
nos fatos, no mundo da vida, no cotidiano de cada um. O dever-ser se realiza no
ser; a norma, no seu atendimento. Destarte, resta evidente que o sistema de
referência de Lourival Vilanova é refutado frontalmente pelo sistema de
referência formalista da teoria carvalhiana.

2. Processo de positivação do
direito: os chamados “deveres instrumentais”.

Insistamos, por ser azado, na tese central da teoria carvalhiana: a
facticidade jurídica é sempre normativa, expressa em linguagem competente (que
é sempre documental e escrita). Mais ainda: a norma geral e abstrata, para que
viesse a alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindicaria,
incisivamente, a edição de norma individual e concreta[34].
Essa a razão do repto lançado por Paulo de Barros Carvalho, no prefácio à
segunda edição do seu livro[35],
vazado nos seguintes termos: “A título de salutar e respeitoso desafio
científico, espero com vivo interesse que alguém, em qualquer dos múltiplos segmentos
dogmáticos do direito, me aponte apenas um fato jurídico sem linguagem, o que
serviria para comprovar a possibilidade de incidência jurídica sem os
expedientes humanos da aplicação”. Para que esse salutar desafio científico
tenha sentido, é evidente que o fato jurídico sem linguagem, cuja existência haveria de ser demonstrada para
impugnar a teoria proposta pelo ilustre professor da USP e da PUC/SP, há de ser
o “fato jurídico sem linguagem escrita”, ou seja, sem que haja a edição de uma
norma individual e concreta que documente a incidência jurídica. Não bastaria a
linguagem corporal, a mensagem verbal sem os requisitos procedimentais
exigidos: afinal, tudo é linguagem! A comunicação entre vizinhos do nascimento
com vida de uma criança não teria percussão jurídica, para a teoria
carvalhiana, ficando no plano dos fatos sociais. Quando Paulo de Barros
Carvalho reivindica que alguém lhe apresente um único fato jurídico sem
linguagem, o faz com esteio nos postulados de sua teoria. O mesmo se diga
também sobre a relação jurídica, havida igualmente como fato (o fato-efeito)[36],
que para nascer precisaria imprescindivelmente da expedição de uma norma
individual e concreta: “Somente com o enunciado do conseqüente da norma
individual e concreta é que aparecerá o fato da relação jurídica, na sua
integridade constitutiva, atrelando dois sujeitos (ativo e passivo), em torno
de uma prestação submetida ao operador deôntico modalizado (O, V, P)”.

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Todavia, para se demonstrar a existência desse fato jurídico e desse
fato-efeito, sem que haja a edição de uma norma individual e concreta, não se
precisa ir muito longe: a própria teoria carvalhiana cuida em demonstrar as
suas aporias e contradições internas, apontando esses fatos jurídicos sem linguagem.

Grosso modo, além
da obrigação tributária principal, há a obrigação tributária acessória,
consistente em deveres do contribuinte ou de terceiros perante o fisco, para
dar efetividade ao recolhimento ao erário dos tributos (dinheiro). A obrigação
acessória é chamada de deveres instrumentais pela teoria carvalhiana, os quais
visam estimular certas condutas em benefício da atividade arrecadadora. São
eles fixados por normas gerais e abstratas, dirigindo-se diretamente ao sujeito
passivo do tributo ou a terceiros. Muito bem. Para que a teoria carvalhiana
tenha coerência, necessário se faz que os deveres instrumentais, prescritos na
norma geral e abstrata, para incidirem nas condutas dos sujeitos passivos,
sejam objeto de uma enunciação protocolar e denotativa, cujo sentido é a norma
individual e concreta. Sim, porque os deveres instrumentais estão fixados em
enunciados conotativos, sem referência a eventos concretamente ocorridos e a
efeitos especificamente determinados para ocorrem na esfera jurídica de um
sujeito passivo real. Para que os deveres instrumentais incidissem, necessário
seria a emissão de uma norma individual e concreta. Todavia, a teoria
carvalhiana frustra a sua pretensão de verdade, quando nega o seu mais basilar
postulado: os deveres instrumentais, em
sua esmagadora maioria, não necessitam de expedição de uma norma individual e
concreta
.

Consoante afirma Paulo de Barros Carvalho[37],
“(…) Quando o diploma normativo indicar o conteúdo do comportamento a ser
seguido, precisando o objeto da prestação, tornar-se-á
despicienda a edição de norma individual e concreta
, por parte do fisco,
deixando-se ao bom juízo do administrado o implemento da conduta e
reservando-se às autoridades tributárias atuarem somente em caso de
descumprimento”. E adiante, o próprio Paulo de Barros Carvalho põe uma pá de
cal no postulado nuclear de sua construção teórica[38]:
“Traçando o paralelo com a regra-matriz de incidência, notaremos a presença de deveres instrumentais que não se perfazem em
normas individuais e concretas
, consistindo, antes, em condutas de caráter
omissivo, como o dever de tolerar ou de suportar fiscalização. A linguagem aparecerá aqui tão-somente em
caso de inadimplemento da conduta atribuída ao administrado
, ensejo em que
o fisco expedirá norma concreta (‘auto de embaraço à fiscalização’, por
exemplo), em que o evento será relatado na forma competente. Essa peculiaridade exibe outra diferença do
dever instrumental em face da prestação tributária, que não pode existir, em
hipótese alguma, sem norma individual e concreta
”.

Eis aqui, apontado às mancheias, conforme desejado por Paulo de Barros
Carvalho, “um fato jurídico sem linguagem, o que serviria para comprovar a
possibilidade de incidência jurídica sem os expedientes humanos da aplicação”
(sic).

Reflitamos um pouco mais sobre esse ponto, dado o seu relevo. A teoria
carvalhiana tem como tese central que a incidência não ocorreria por força
própria, requerendo sempre o ato humano de aplicação. Nesse sentido, incidência
e aplicação seriam a mesma coisa. Para que uma determinada conduta ganhasse o
timbre de juridicidade, seria necessário – ainda de acordo com os postulados
dessa teoria glosada – que houvesse a expedição de uma norma individual e
concreta que relatasse aquele evento em linguagem competente, transformando-o
em fato jurídico. Os efeitos jurídicos desse fato também seriam produtos da
norma individual e concreta. Assim, direitos subjetivos, deveres, pretensões,
obrigações, ações, ônus, sujeições etc., apenas ingressariam na esfera jurídica
de alguém mediante a emissão de uma norma individual e concreta, que
adentrariam no sistema jurídico num determinado ponto do processo de
positivação do direito.

Quando, nas passagens acima citadas, Paulo de Barros Carvalho versa
sobre os deveres instrumentais, está tratando daqueles previstos nas normas
gerais e abstratas, os quais incidiriam na zona material da conduta humana sem
necessidade de verificação de uma norma individual e concreta. Para que eles se
transformem em deveres instrumentais concretos e individualizados, ou seja,
para que eles incidam na esfera jurídica dos sujeitos passivos, não há –
segundo professa o próprio Paulo de Barros Carvalho – a necessidade da
expedição de uma norma individual e concreta, nascendo, esse direito subjetivo
do fisco de realizar a fiscalização, diretamente
da norma geral
. Noutro giro, a norma geral e abstrata incide, no plano do
pensamento, e faz nascer o fato jurídico acessório[39],
do qual dimana o direito subjetivo do fisco de fiscalizar e o dever do sujeito
passivo de se omitir, suportando a fiscalização (relação jurídica conversa).

Eis, por conseguinte, a demonstração ad rem da existência de fatos jurídicos sem linguagem competente
(escrita e documental), na seara do direito tributário.

É bem verdade, todavia, que a teoria carvalhiana tenta ainda salvar
sua lógica interna em uma outra oportunidade. De fato, Paulo de Barros
Carvalho, premido pela constatação de que os deveres instrumentais incidem, na
esfera jurídica de um concreto contribuinte, diretamente de uma norma geral e
abstrata, sem necessidade da veiculação de uma norma individual e concreta,
termina por propor uma insustentável solução para ultrapassar essa aporia:
afirma que, em muitas circunstâncias, a observância das normas gerais e
abstratas ocorre “no domínio dos meros fatos sociais, sem o mesmo timbre de
juridicidade”[40].
Desse modo, para salvar a sua construção teórica, faz as seguintes afirmações:
“Recaindo sobre a conduta lícita, no direito tributário brasileiro, além da
prestação pecuniária, grande parte dos deveres formais são estabelecidos
mediante normas individuais e concretas. Ao
lado deles, dos deveres, há prescrições genéricas cuja efetivação, no caso
protocolar, assumirá relevância apenas e tão-somente em caso de descumprimento
.
O exemplo clássico está no dever de suportar os procedimentos de fiscalização,
como está, também, no dever de assegurar publicidade aos documentos que ele,
sujeito passivo, tiver a incumbência de produzir”. E adiante arremata[41]:
“De fato, pensemos no dever de manter os livros e documentos fiscais à disposição
das autoridades tributárias. São tantos
os modos diferentes de fazer cumprir esse dever instrumental
que o
legislador, certamente consultando à racionalidade que inspira sua tarefa,
desloca a atenção para o campo da ilicitude, fazendo expedir, pelo funcionário
competente, a norma individual e concreta que constitua a não-prestação do
dever (no antecedente) e prescreva a providência sancionatória (no
conseqüente)”.

Ora, com o perdão da afirmação acaciana, para que o sujeito passivo
descumpra um dever instrumental, faz-se necessário que ele tenha que observar
esse mesmo dever instrumental. Pois bem. A questão, que Paulo de Barros
Carvalho não enfrentou aqui, é saber de onde proviria o dever instrumental que
o sujeito passivo tem de observar. Se ele afirmasse que esse dever instrumental
adviria da norma geral e abstrata, incidindo na esfera jurídica do sujeito
passivo, restaria clara a desnecessidade de expedição de uma norma individual e
concreta; todavia, se ele afirmasse que esse dever resultaria de uma norma
individual, teria o ônus de apontá-la. Como essa norma individual não existe,
senão em caso de descumprimento do dever (quando incide a norma geral
sancionatória), restou a tentativa de afirmar que a observância de tais deveres
instrumentais ocorreria no domínio dos meros fatos sociais.

A incoerência da teoria carvalhiana ressalta. E ressalta ainda mais
porque a observância ou inobservância de um dever não se confunde com o próprio
dever incumprindo ou observado. O problema, que se tentou obviar, continuou
intocado: se há deveres instrumentais a serem observados ou descumpridos, de
onde eles provêem? Afirmo eu: da norma geral e abstrata, que incide
infalivelmente, sem necessidade de norma individual e concreta. Paulo de Barros
Carvalho, nessa parte do seu livro, não responde a questão, desviando o
problema para o plano da observância, que é posterius
à existência mesma do dever, na esfera individual do sujeito passivo. Se há
deveres a serem cumpridos ou descumpridos, é porque eles são prius, nascidos da incidência da norma
geral e abstrata, no plano do pensamento.

Aqui reside a grande deficiência explicativa da teoria carvalhiana:
quando os seus postulados não conseguem dar conta da juridicidade de uma
determinada situação, porque a realidade não se submete ao postulado da facticidade normativa do direito (os fatos jurídicos
como produtos de enunciados), logo se afirma que aquela situação não seria
jurídica, mercê de não necessitar ser veiculada em linguagem competente. Desse
modo, afirma-se arbitrariamente que só é jurídico o que for enunciado em
linguagem escrita de uma autoridade; o que não se enquadrar nesse pressuposto,
resta fora do direito. Assim, até mesmo o ato jurídico de cumprimento de um
dever instrumental passa a ser mero fato social e, tanto pior, deixa a teoria
carvalhiana de explicar como nasce, para um sujeito passivo determinado, o
dever instrumental de se sujeitar à fiscalização do fisco, de lavrar livros
fiscais etc. Doutra banda, não explica de onde adviria o direito subjetivo
público do fisco fiscalizar o contribuinte, mercê da inexistência de uma norma
individual e concreta que o faça nascer.

4327

Para a teoria carvalhiana, a incidência (¯) da norma geral e abstrata (NGA) apenas ocorreria através
da veiculação de uma norma individual e concreta (NIC), que veicularia o fato
jurídico (fj) e o fato-relacional. Todavia, no caso dos deveres instrumentais,
não há a emissão de norma individual e concreta para o seu surgimento na esfera
jurídica do sujeito passivo (Sp). Na teoria ponteana, o raciocínio é diverso: a
norma geral e abstrata (NGA) incide (¯) nos
fatos previstos em seu antecedente (SF), nascendo o fato jurídico (fj), do qual
dimana a relação jurídica (rj) entre dois sujeitos de direito: o sujeito ativo
(Sa) e o sujeito passivo (Sp). Na esfera jurídica do sujeito ativo (fisco)
nasce o direito subjetivo pública de fiscalizar, tendo por seu correlato, na
esfera jurídica do sujeito passivo (contribuinte), o dever instrumental de
manter os livros e documentos fiscais à disposição das autoridades tributárias.
Aliás, o próprio professor paulista atribui à norma geral e abstrata a função
atributiva de competência ao contribuinte para veicular a norma individual e
concreta[42]:
“(…) a lei dá competência ao contribuinte para constituir o fato jurídico e a
obrigação tributária que dele decorre, pelo fundamento da causalidade jurídica (Lourival Vilanova)”. Ora, se a norma geral e
abstrata atribui competência ao contribuinte, pela causalidade jurídica, faz nascer para ele deveres que não decorrem
de nenhuma norma individual e concreta. Afinal, a causalidade jurídica nada
mais é do que a incidência da norma sobre o seu suporte fáctico concretizado,
no plano do pensamento.

Cabe à teoria carvalhiana o ônus de explicar como nasceriam os deveres
instrumentais sem expedição de uma norma individual e concreta, ou de como
esses deveres instrumentais não teriam juridicidade, sendo um mero dever social
(como a etiqueta, as obrigações dos filhos para com os pais etc.). Ao admitir
que o sujeito passivo tem deveres instrumentais, concorda que eles surgem na
mundo jurídico sem necessidade da linguagem protocolar e denotativa; ao
admitir, contrariamente, que eles são apenas deveres sociais, nega sua juridicidade e, desse modo, também a
juridicidade do seu descumprimento, que não haveria porque ser sancionado.
Qualquer das duas opções impugna a teoria carvalhiana.

3. Processo de positivação do
direito: lançamento e “autolançamento”

Como é consabido, desde que o direito tributário ganhou autonomia
científica, despregando-se da ciência das finanças, do direito financeiro e do
direito administrativo, há uma intensa disputa teórica sobre os efeitos do ato
jurídico do lançamento: se ele seria constitutivo ou declaratório da obrigação
tributária. Essa contenda teórica não é sem razão de ser, uma vez que o
lançamento tributário sempre foi tratado no núcleo das preocupações mais
elevadas dos tributaristas, de vez que o perfil da obrigação tributária é por
ele delineado, através da atividade vinculada do fisco. A teoria clássica
sempre reputou que o lançamento fosse declaratório do fato jurídico tributário
e de seus efeitos (obrigação tributária lato
sensu
). Doutra banda, entenderam os constitutivistas que o lançamento
declararia a ocorrência do chamado fato gerador, mas a obrigação e o crédito
tributário seriam constituídos por ele. Paulo de Barros Carvalho rejeita ambas
as hipóteses, indo por uma linha mais radical: para ele, o lançamento seria o
enunciado protocolar e denotativo que veicularia a norma individual e concreta,
constitutiva do fato jurídico tributário e do fato relacional. Consoante suas
próprias palavras[43]:
“(…) a previsão abstrata que a lei faz, na amplitude de sua generalidade, não
basta para disciplinar a conduta intersubjetiva da prestação tributária. Sem uma norma individual e concreta,
constituindo em linguagem o evento contemplado na regra-matriz, e instituindo
também em linguagem o fato relacional
, que deixa atrelados os sujeitos da
obrigação, não há que se cogitar de tributo. Seria até um desafio mental
interessante tentar imaginar caso de incidência específica da regra-padrão,
numa hipótese individualizada, sem a
expedição de ato de aplicação
. Seria uma tarefa impossível!”

Procuraremos agora nos impor esse desafio mental, buscando demonstrar
a possibilidade e, mais ainda, a existência da relação jurídica tributária sem
a necessidade de prévia emissão de norma individual e concreta. Antes, porém,
façamos apenas uma breve reflexão. A teoria carvalhiana formaliza ao extremo o
direito, reduzindo a facticidade jurídica à normatividade lingüística: os fatos
jurídicos são normas individuais e concretas. Essa redução do fenômeno jurídico
à linguagem escrita e à formalização de procedimentos resulta uma empresa
inglória, mesmo naquelas parcelas dos ramos jurídicos onde haja a necessidade
de atos jurídicos solenes e formais, como ocorre no campo do direito tributário
e do direito penal. A fortiori,
naqueles núcleos normativos onde haja uma necessidade de concretização e
efetividade das normas jurídicas, essa limitação formalista do fenômeno
jurídico se torna insustentável. Basta verificar o que ocorre nas relações de
consumo, exempli gratia, para se
afastar às inteiras a viabilidade prática de uma visão tão reducionista do
fenômeno jurídico.

Na seara do direito tributário, há uma tendência lógica de maior
formalização dos procedimentos, tendo em vista a necessidade de balizar a
atividade arrecadadora do fisco, sem permitir fique sem proteção a esfera
individual dos contribuintes. Em um Estado Democrático
de Direito não se admite o autoritarismo fiscal, havendo um impulso cada vez
mais crescente na estatuição de códigos de defesa dos contribuintes, justamente
para homenagear as liberdades públicas contra os excessos do poder estatal. É
para cumprir essa finalidade de proteção da cidadania fiscal que o direito
tributário formaliza os seus procedimentos, assim como o direito penal o faz.
Destarte, o formalismo dos procedimentos não é um fim em si mesmo, mas meio
para realizar, no plano do ser, o dever-ser do Estado de Direito.

Exemplo notável dessa formalização é a necessidade, estatuída pelo
legislador, da edição de ato de lançamento pela autoridade fiscal para o
nascimento do crédito tributário (art.142 do CTN). Impressiona, sem embargo,
que ainda hoje se trate o lançamento tributário com a mesma importância e os
mesmos paradigmas de antanho, tendo em vista que poucas espécies de tributos
necessitam, para sua concretização, de expedição desse ato administrativo.
Hoje, os principais e mais importantes impostos e contribuições são
quantificados através de processos elaborados pelo próprio contribuinte, sem a
necessidade de intervenção prévia do fisco, cuja atividade passa a ser
posterior, no exercício de seu poder-dever de fiscalizar. Exemplo típico do
imposto em que o lançamento ocorre previamente à atividade do sujeito passivo é
o IPTU. No comum dos casos, a regra é o sujeito passivo cumprir o dever legal
de recolher o tributo antes de qualquer atuação ou manifestação do fisco[44].

Assim, enquanto no IPTU o contribuinte recebe a notificação pessoal,
em sua casa, do lançamento tributário, para tornar exigível a obrigação
tributária, no caso do ICMS compete a ele, cumprindo os deveres instrumentais,
escriturar as saídas e entradas de mercadoria, quantificar o tributo devido no
período, informar ao fisco e recolher o valor escriturado. A atividade do
sujeito ativo, vinculada, de análise das informações prestadas pelo
contribuinte, é posterius, que pode
sequer ocorrer no prazo legalmente previsto, dando-se aquilo que se vem chamando
de homologação tácita. Na verdade, nem homologação há: há omissão do fisco, que
gera efeitos jurídicos. Para que não se fugisse dos paradigmas teóricos à base
da construção normativa do Código Tributário Nacional, importou-se para o
Brasil a expressão autolançamento,
para dar à atividade do contribuinte a natureza que ela não tem: de ato
administrativo vinculado, praticado por autoridade competente (art. 142 do CTN)[45].
Aliás, também para Paulo de Barros Carvalho[46],
“(…) o ato homologatório exercitado pela Fazenda, ‘extinguindo
definitivamente o débito tributário’, não
passa de um ato de fiscalização
, como tantos outros, em que o Estado,
zelando pela integridade de seus interesses, verifica o procedimento do
particular, manifestando-se expressa ou tacitamente sobre ele”.

Com essa percepção clara do fenômeno, a teoria carvalhiana se despede
da análise do ato de lançamento e se fixa na atividade do sujeito passivo, que
tem uma função substitutiva do fisco na quantificação do debitum tributário. Assim, a atividade do contribuinte passa a ser
decisiva para o ingresso de recursos no erário. De pronto, nos surge uma
inquietante pergunta: qual a natureza da atividade do contribuinte de preencher
formulários e documentos fiscais, especificando o valor a ser pago ao fisco?

Consoante já demonstramos anteriormente, essas atividades decorrem de
deveres instrumentais que vinculam o contribuinte à prática de atos essenciais
para a quantificação e recolhimento do tributo devido. É dizer, são obrigados
os sujeitos passivos, por normas gerais e abstratas, a atuarem de qual ou tal
maneira, para a fixação do valor devido a título de obrigação tributária.
Curial seria saber se para o surgimento, na esfera jurídica dos contribuintes,
desse dever instrumental, haveria a emissão de alguma norma individual e
concreta. Demonstramos às mancheias, linhas atrás, que não. Nesse ponto, há
importante afirmação de Paulo de Barros Carvalho[47]:
“Por sua extraordinária relevância, penso que não seria excessivo reiterar a
insuficiência da norma geral e abstrata, em termos de regulação concreta da
conduta tipificada. Por mais prático e objetivo que seja o súdito do Estado,
vivamente empenhado em cumprir a prestação tributária que lhe incumbe, não
poderá fazê-lo simplesmente com procedimentos mentais, alimentados por sua boa
vontade. Terá de, impreterivelmente,
seguir comandos da lei, implementando os deveres instrumentais previstos
,
com o preenchimento de formulários e documentos específicos para, desse modo,
estruturar a norma individual e concreta que lhe corresponde expedir. Somente
assim poderá pagar aquilo que acredita ser devido ao fisco, a título de
tributo”. Ora, a teoria carvalhiana reconhece, mais uma vez, que o contribuinte
terá que seguir comandos da lei
(norma geral e abstrata), e não – como seria conseqüente com as premissas da
teoria – o comando de uma norma individual e concreta. Afinal, de onde proviria
esse dever instrumental de produzir a norma individual e concreta que faz
nascer o dever principal (tributário)? Se o dever tributário provém de uma
norma individual, haveria a teoria carvalhiana de explicar qual o enunciado
protocolar que incoaria o dever instrumental, ou então o porquê da sua
inexistência. Seria o caso de explicar a natureza desse dever instrumental que,
sendo jurídico, não necessitaria da veiculação de um enunciado protocolar e
denotativo. Eis questões que a teoria carvalhiana não responde.

4. Sobre a norma individual e
concreta produzida pelo contribuinte.

No início de nossa exposição, afirmamos que Kelsen e Guastini, quando
sustentam que o intérprete cria a norma, estão se referindo, em última análise,
ao intérprete autorizado ou competente: o juiz. Ele seria o destinatário das
normas jurídicas. Dissemos também que Paulo de Barros Carvalho aparentemente entendia de modo diverso,
sustentando ele por vezes bastas que todos seriam os seus destinatários. Não
por outra razão, também os particulares emitiriam normas individuais e
concretas, como incisivamente buscou realçar ao tratar do autolançamento[48].
Todavia, uma questão fundamental poderia passar desapercebida a um leitor menos
atento, na aferição do compromisso da teoria carvalhiana com essa afirmação: a
norma individual e concreta, expedida pelo sujeito passivo, seria suficiente
para torná-la positiva? Para respondermos a essa pergunta, seria o caso de
investigarmos como a teoria glosada compreende o conceito de norma individual e
concreta. Essa investigação passa a ser fundamental para que possamos aferir a
consistência interna da teoria carvalhiana, pelo menos quanto à premissa
assumida da lingüisticidade escrita e documental do direito.

Como já mostramos anteriormente, é necessário ser feita uma distinção
entre norma jurídica e ato de cumprimento. Essa distinção não aparece na teoria
carvalhiana, porque para ela o direito é apenas e tão-somente normativo, preso
ao plano do enunciado. Sendo o sistema jurídico constituído de normas, uma
norma apenas poderia ser extinta mediante a emissão de outra norma jurídica.
Assim, uma norma individual e concreta apenas poderia ser extinta mediante a
emissão de uma outra norma, que a expungisse. Coloquemos essa afirmação sob uma
análise crítica, surpreendendo assim sua procedência ou não. Imaginemos a
hipótese de emissão de uma norma individual e concreta, editada pelo fisco, que
prescrevesse para o sujeito passivo o dever de recolher um determinado valor
aos cofres públicos. De acordo com o art.156, inciso I, do CTN, uma das formas
possíveis de extinção dessa obrigação seria mediante o pagamento da prestação
devida. Sendo ele um ato pelo qual se poria fim ao laço jurídico que vincula os
sujeitos ativo e passivo, por força do próprio sentido do texto legal, há a
necessidade imperativa de se perquirir se o pagamento seria uma norma
individual e concreta, para que a premissa da teoria carvalhiana permanecesse
intocada.

Imaginemos a seguinte cena: um contribuinte, após cumprir com os seus
deveres instrumentais e estipular o montante do tributo devido, dirige-se ao
banco, com um DARF, e paga a quantia fixada. O caixa do banco recebe o dinheiro
e autentica a cópia do DARF pertencente ao contribuinte, fixando a data e a
quantia paga, bem como a agência bancária que a recebeu. Realizou-se o
pagamento. Nos concentremos agora naquela autenticação mecânica, da máquina
registradora, gravada na cópia do DARF. Haveria aqui uma norma individual e
concreta? O que ela prescreveria? Leiamos seu o texto:
AUT:08072002ECF007C004111B7VL1.037,40.

O ato de pagamento é a entrega em dinheiro; a autenticação bancária, a
sua prova. Quando alguém paga, cumpre a norma jurídica, não prescrevendo
nenhuma outra. O pagamento é ato real de cumprimento (Nawiasky), ato de
execução, não possuindo natureza normativa. Di-lo José Souto Maior Borges[49]:
“Praticando o lançamento, duas situações podem ser consideradas. A primeira é
antecedente ao pagamento do tributo. A segunda é subseqüente a esse pagamento.
Nesta segunda hipótese já não há mais como cogitar da simples existência
(validade) da norma individual em que o lançamento consiste, mas no ato de pagamento que importa a
execução concreta da prescrição que o lançamento estabelecer.
Noutras
palavras: o pagamento importa execução da
norma individual posta pelo lançamento. É ato de execução do Direito
. E,
nos termos do art.156, I, e 157 e ss. do CTN, o pagamento é modo de extinção do
crédito tributário”.

Esse ponto é relevante: não sendo o pagamento uma norma individual e
concreta, não poderia ele extinguir a relação tributária (fato-relação). Para a
teoria carvalhiana, presa às suas premissas, o pagamento termina por ser
tratado como um mero evento. Apenas quando esse evento fosse vertido em
linguagem competente, surgindo um “documento de quitação” ou “recibo de
pagamento”, estaria extinta a obrigação pela emissão desta norma individual e
concreta. Nas palavras do professor paulista[50]:
“(…) o ‘recibo de pagamento’ contém os enunciados necessários e suficientes
para construirmos uma norma individual e concreta, em cujo antecedente vem
relatado o fato da existência da dívida e, no conseqüente, uma relação que, no
cálculo das relações, anula o vínculo primitivo”.

O pagamento, notemos bem, seria um mero evento. O que extinguiria a
obrigação, por conseguinte, não seria ele, na forma do art.156, inciso I, do
CTN, mas a norma jurídica que seria o documento
de quitação
. A prova do ato de pagamento, na teoria carvalhiana, se
transforma em norma jurídica. Tudo isso para não ter que afirmar pura e
simplesmente: dada a incidência da norma do inciso I do art.156, no plano do
pensamento, o ato jurídico do pagamento extinguiu a obrigação tributária, mercê
do seu cumprimento pelo sujeito passivo. Como entre o ato de pagamento e a
extinção da obrigação não haveria expedição de norma individual, eis que surge
o recibo de pagamento com essa função. Todavia, teríamos que admitir que quem
emitiria essa norma individual e concreta veiculada pelo recibo seria a agência
bancária, que não faz parte da relação jurídica tributária, nem tampouco é uma
autoridade competente.

Precisamos, destarte, demarcar o conceito de norma individual e
concreta, no contexto da teoria carvalhiana. Para tanto, pensemos em mais uma
situação concreta: uma indústria vende seu produto, emite nota fiscal e
escritura esse negócio. Esse ato de documentação produziria uma norma
individual e concreta? Quando o contribuinte emitiu aquela nota fiscal, estaria
ele editando uma norma jurídica? Essas perguntas são fundamentais nessa altura
de nossas reflexões. A resposta que Paulo de Barros Carvalho é incisiva[51]:
“(…) Ao realizar a venda de produtos industrializados, o contribuinte deve
emitir nota fiscal, em que figuram as informações imprescindíveis à
identificação do evento. Além disso, cabe-lhe escriturar esses elementos
informativos no livro próprio, oferecer declarações e preencher documentos
relativos ao acontecimento a que deu ensejo. Esse feixe de notícias indicativas, postas em linguagem jurídica
competente, consubstanciará o alicerce
comunicativo sobre o qual será produzida a norma individual
. (…) Nada
obstante, vale a pena advertir que a formação desse tecido lingüístico, por
mais relevante que possa ser, circunscrevendo, com minúcias, as ocorrências
tipificadas na lei tributária, ainda não é suficiente para estabelecer
juridicamente o fato. Trata-se de relato
em linguagem competente, não há dúvida, mas ainda não credenciada àquele fim específico
.
É indispensável a edição de norma individual e concreta, no antecedente da qual
aparecerá a configuração do fato jurídico tributário”.

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Desse modo, a nota fiscal, as escriturações em livro próprio etc.,
enunciariam relatos em linguagem competente, mas não seriam eles produtores de
normas jurídicas, não constituindo aqueles eventos narrados em fatos. Entrementes, noutra oportunidade, Paulo de
Barros Carvalho contradiz às inteiras essas afirmações, concedendo tal força
normativa à nota fiscal[52]:
“De fato, pensemos no dever de manter os livros e documentos fiscais à
disposição das autoridades tributárias. São tantos os modos diferentes de fazer
cumprir esse dever instrumental que o legislador, certamente consultando à
racionalidade que inspira sua tarefa, desloca a atenção para o campo da
ilicitude, fazendo expedir, pelo funcionário competente, a norma individual e
concreta que constitua a não-prestação do dever (antecedente) e prescreva a
providência sancionatória (no conseqüente).
a emissão de nota fiscal requer a observância de uma série de preceitos, não se
admitindo sejam eles desconsiderados pelo administrado, que deverá
explicitá-los na configuração documental do ato
. Eis o legislador
manifestando sua preferência pelo hemisfério da licitude, exigindo norma individual e concreta para que o dever se dê por
cumprido
”.

Ou seja: aqui a nota fiscal é a norma individual e concreta que cumpre
o dever; ali, em idêntica situação, é ela um mero feixe de notícias indicativas
para futura emissão da norma individual. Flagra-se, desse modo, uma contradição
insuperável no acervo de argumentação da teoria carvalhiana, denunciando de
modo eloqüente a arbitrariedade dos pontos de partida da sua construção e,
talvez até por isso mesmo, a impossibilidade de sustentá-los quando postos em
confronto com questões de fronteira.

Um outro aspecto de difícil desate está no entendimento de Paulo de
Barros Carvalho de que a obrigação tributária nasceria quando a norma
individual e concreta ingressasse no sistema do direito positivo[53].
Passa a ser fundamental, então, fixar quando esse ingresso da norma individual
no sistema ocorreria. Para o professor paulista a positivação do direito apenas
ocorreria quando o fisco (a autoridade competente, notem bem) tomasse
conhecimento da veiculação da norma pelo particular, o sujeito passivo da
obrigação tributária[54]:
“(…) De nada adiantaria o contribuinte expedir o suporte físico que contém
tais enunciados prescritivos, sem que o órgão público, juridicamente
credenciado, viesse a saber do expediente. O
átimo dessa ciência marca o instante preciso em que a norma individual e
concreta, produzida pelo sujeito passivo, ingressa no ordenamento do direito
posto
”. Noutras palavras, para teoria carvalhiana a positivação do direito depende do conhecimento da autoridade
competente, seja ela o juiz ou o administrador. O direito se reduz, de modo
enfático e deliberadamente reducionista, àquele dos tribunais e da burocracia
das repartições públicas. Por isso mesmo, mesmo no contexto desse sistema de
referência, a nota fiscal não poderia nunca ser havida como emissora de uma
norma individual, assim como o recibo de pagamento bancário também não: eles
não chegam ao conhecimento do fisco, senão através de fiscalização posterior.

Imaginemos que essa fiscalização não ocorresse no prazo legal, não
vindo o fisco a ter ciência real desse feixe
de linguagem
. Nessa hipótese, não tendo sido completado o iter
comunicacional de positivação do direito, seria de se supor que estaríamos aqui
no plano dos fatos sociais, mesmo o contribuinte tendo escriturado seus
negócios e realizado o pagamento do tributo devido. Sem o conhecimento ou a
cientificação do fisco, seria de se supor então que a teoria carvalhiana veria
todos esses fatos como fatos sem linguagem competente, é dizer, sem
revestimento jurídico. Porém, fugindo mais uma vez de suas premissas, entende
ela que haveria uma homologação tácita[55]:
“(…) Se o sujeito ativo não exercer suas competências administrativas,
fiscalizando, concretamente, as atuosidades do devedor, durante o lapso de
cinco anos, a contar da data dos eventos tributados, operar-se-á a homologação,
vale dizer, toma-se por efetivada a
fiscalização daqueles atos, extinguindo-se o liame obrigacional
”.

Essas afirmações, convenhamos, dão graves cuteladas na medula da
teoria carvalhiana. É surpreendente a admissão de que possa haver ato de
homologação por atividade omissiva do
fisco, aceitando que a ausência de emissão de linguagem competente tenha
efeitos jurídicos. Pior: nessa hipótese de inatividade da autoridade fiscal,
nem o fisco toma conhecimento da expedição da norma concreta pelo sujeito
passivo (ou seja, não há a positivação do direito), nem tampouco fiscaliza os
documentos produzidos pelo contribuinte (ou seja, é omisso, não emitindo sua
norma individual homologatória). Não há
aqui, por parte do fisco, nem emissão nem recepção de norma
. No entanto,
toda a análise carvalhiana do fenômeno do autolançamento vem de lhe outorgar o
timbre de juridicidade. O evento, aqui,
se torna jurídico sem linguagem competente e sem conhecimento do fisco
.

Mais uma vez, a própria obra de Paulo de Barros Carvalho nos fornece
exemplos de fatos jurídicos sem emissão de linguagem competente, demonstrando
que o direito não é só norma. Sem os fatos e os valores que lhe emprenham de
sentido social, as normas são pura idealidade morta. Sem a mundanidade da vida,
o simbolismo jurídico se transforma nesse intricado jogo de linguagem, numa
construção teórica sem os pés no mundo. E sem o mundo, sem os fatos sociais, o
dever-ser não se realiza no ser, o direito não cumpre a sua função de processo
de adaptação social.

5. Conclusão.

O diálogo é a única via possível de se fazer ciência, através da fusão
de horizontes e da procura sincera e honesta de entendimento. Não se faz
ciência com monólogo, ou com o recurso retórico à incomunicabilidade dos
sistemas de referência. É fundamental que paradigmas ou postulados teóricos
conflitantes se enfrentem perante um auditório universal, para que se possa
construir provisoriamente uma verdade consensual e intersubjetivamente
controlável.

A teoria concebida por Paulo de Barros Carvalho, embora com raízes no
direito tributário, se propõe construir uma nova teoria geral do direito, com
fundamento em dois postulados[56]:
(a) o descabimento da distinção entre incidência jurídica e atividade de
aplicação do direito, e (b) a diferença básica entre fato e evento, que
implica em afirmar o princípio da facticidade lingüística do direito.

Trata-se de uma teoria complexa, que vem sendo ensinada e estudada nos
principais centros acadêmicos do País e em cursos promovidos por institutos
especializados. Há uma disseminação crescente desses postulados teóricos, sem
que tenha havido, ao menos até agora, uma discussão franca, aberta e
transparente da sustentação epistemológica dos seus enunciados teoréticos. Esse
monólogo é preocupante, porque termina por alimentar a sensação de que ilhas
isoladas de conhecimento podem conviver sem diálogo e salutar debate
científico. Aristóteles pôs o dedo no problema, afirmando que entre o amigo e a
verdade, é dever moral preferir a verdade. E aqui, nesse ponto, não podemos
cinicamente perguntar, como Pôncio Pilatos, sobre o que é a verdade. Ainda que
seja a minha verdade, é curial que
busque transformá-la em a nossa
verdade, sempre mediada por uma construção dialógica. Porém, imaginar possam
conviver verdades que se negam, através de um isolamento ou distanciamento, ou
mesmo através de uma convivência fundamentada no mútuo alheamento, é algo que
ofende à ciência.

A trilogia crítica da teoria carvalhiana foi escrita com o propósito
de questionar os seus fundamentos e a sua lógica interna. Poderia ter proposto
uma crítica de viés externo, comparando a teoria carvalhiana com a teoria
ponteana. Todavia, optou-se por questionar a teoria carvalhiana a partir dos
postulados por ela mesma defendidos, comparando-os com as soluções apresentadas
aos casos concretos, nos problemas reputados de fronteira. O resultado é uma
análise ponto a ponto, expondo com rigor e honestidade o núcleo da teoria
carvalhiana e confrontando-o com a sua aplicação prática e com o pensamento dos
estudiosos referidos na fundamentação de suas idéias (Habermas, Lourival
Vilanova, Riccardo Guastini, Hans Kelsen etc.).

O primeiro artigo visou demonstrar a diferença conceptual e prática
entre incidência e aplicação da norma jurídica, com fundamento na teoria de
Pontes de Miranda. O segundo, procurou refutar a distinção entre fato e evento,
com espeque em Habermas, bem como a sua difícil aplicação, mercê da
arbitrariedade de sua fundamentação. Finalmente, neste último texto, buscou-se
demonstrar a existência de fatos jurídicos sem linguagem escrita da autoridade
competente, como é exemplo sobranceiro a homologação tácita do chamado
autolançamento. Doutra banda, demonstrou-se que a aplicação de norma jurídicas
não se faz, necessariamente, através de emissão de outra norma jurídica,
fazendo-se aqui a distinção entre norma e ato de cumprimento.

Diga-se, finalmente, que é necessário haver o resgate do estudo
integral do direito, como fato social, constituído pela polaridade dialética de
fato, valor e norma (Reale). O direito, como dito por Vilanova, é dever-ser que
se realiza no ser, no mundo da vida. Que ele se impurifique cada vez mais de
suas construções lógicas e se encontre na rua, na vida das pessoas, nas
relações humanas. Enfim, que seja o que é: processo de adaptação social.

 

6. Bibliografia.

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________. Norma jurídica – proposição jurídica (significação
semiótica). Revista de direito público.
São Paulo: RT, 1982, (XV) 61:12-26.

 

Notas:

[1] Lo
scetticismo immaginario. Nove obiezione agli scettici à la génoise. In: Analisi e diritto (org. Paolo
Commanducci e Riccardo Guastini). Torino: G. Giappichelli, 2000, p. 1 et seq.

[2]
Vide, por exemplo, suas seguintes obras: Le
fonte del diritto e l’interpretazione
. Milão: Giuffrè, 1993, p. 18 et seq.; Teoria e dogmatica delle fonti. Milão: Giuffrè, 1998, p. 15 et seq.; e, mais recentemente, Il diritto come linguaggio. Torino: G. Giappichelli, 2001, p. 13 et seq.

[3]
Como já tratamos dos aspectos problemáticos desses postulados no primeiro
artigo dessa trilogia crítica, para onde remetemos o leitor, sugerindo também a
leitura atenta de Paolo Becchi (“Enunciati, significati, norme. Argomenti per
una critica dell’ideologia neoscettica”. In: Analisi e diritto. Torino: G. Giappichelli, 1999, p. 1 et seq.) e o já citado texto de Mauro
Barberis (“Lo scetticismo…”, passim.)

[4] Teoria…, p.36.

[5]
Norma jurídica – proposição jurídica (significação semiótica). Revista de direito público. São Paulo:
RT, 1982, (XV) 61:13. Aliás, para Lourival Vilanova (O problema do objeto da teoria geral do estado. Tese para a cátedra
de Teoria Geral do Estado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1953,
p.173), na esteira de Pontes de Miranda, as normas incidem no plano do
pensamento. Por isso, “(…) As normas jurídicas são pensamento, pensamento
diferenciado pelo conteúdo e pela forma em que relacionam os termos
sujeito-objeto, mas, logicamente, as normas são pensamento”. E como pensamento
que são, valem intemporalmente, como coisidade social: “(…) A norma jurídica,
como norma, não é fato. Mas, é algo, pois tem consistência objetiva,
independente do arbítrio subjetivo, algo cujo ser serve de ponto de referência
aos atos de conhecimento, algo cujo consistir explica que se ponha como objeto
para um sujeito” (O problema…,
p.172).

[6] Direito tributário: fundamentos jurídicos da
incidência
. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 18-21, 57-76, passim.

[7] Fundamentos…,  p.12. Grifei.

[8] Ibidem. Os grifos são meus.

[9] Ibidem, p.13.

[10] Ibidem, p.69.

[11] Fundamentos…, p.33-35. Essa definição
é a mesma proposta por Noberto Bobbio (Teoria
generale del diritto
. Torino:
G. Giappichelli, 1993, p.145-147).

[12] Fundamentos…, p.34.

[13]  Vide Fundamentos,
p. 105: “(…) o fato jurídico tributário será tomado como um enunciado
protocolar, denotativo, posto na posição sintática de antecedente de uma norma
individual e concreta, emitido, portanto, com função prescritiva, num determinado
ponto do processo de positivação do direito. Enquanto tal, o fato se constitui
no preciso instante em que o enunciado ingressa no sistema do direito positivo,
como norma válida (…)”.

[14] Fundamentos…, p.10.

[15] Fundamentos…, p.166, passim.

[16]
Vide Fundamentos…, p.211.

[17] Teoria geral das normas jurídicas. Porto
Alegre: Safe, 1986, p.4-5.

[18] Teoria…, p.15.

[19] Teoria…, p.16-17.

[20] Teoria…, p.48-49.

[21] Teoria…, p.57.

[22] Teoria…, p.64.

[23] Teoria…, p.65. Por esse motivo, Kelsen
passa a analisar o problema do descumprimento da norma geral e abstrata pelo
órgão de aplicação, que impugnaria a sua construção lógica. Não é aqui,
todavia, o local apropriado para enfrentarmos esse aspecto problemático da
teoria pura do direito.

[24] Teoria…, p.68.

[25] Il diritto…, p.14.

[26] Teoría general del derecho. Madri:
Rialp, 1962, p.174-175, apud.:
Antônio Carlos de Campo Pedroso. Normas
jurídicas individualizadas: teoria e aplicação
. São Paulo: saraiva, 1993,
p. 173-174. Grifos nossos, exceto o primeiro deles.

[27] Tratado das ações. São Paulo: RT, 1970,
tomo I, p.21.

[28] Incidência…, p. 21-24.

[29]
Vide Fundamentos…, p.242 e, mais
recentemente, Curso de direito tributário.
14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 430.

[30] Teoria…, p.201.

[31] Teoria…, p.205. Grifei.

[32] Teoria…, p.206.

[33] Teoria…, p.207, com grifos nossos.
Vide, sobre o conceito de fato cultural, Miguel Reale (Fundamentos del derecho. Buenos Aires: Depalma, 1976, p.141-169).

[34] Fundamentos…, p.208.

[35] Fundamentos do fato jurídico tributário.
2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. XIV.

[36]
Vide Fundamentos… (1ª ed.), p.130, passim.

[37] Ibidem, p.77. Grifei.

[38] Ibidem. Grifei novamente.

[39]
Estou empregando essa expressão apenas commoditatis
causa
, sem compromisso teórico com ela. Quero significar, apenas, que esse
fato jurídico não é o fato jurídico tributário, do qual iremos tratar adiante.

[40] Fundamentos…, p.211.

[41] Fundamentos…, p.212. Grifei.

[42] Fundamentos…, p.238. Grifos originais.

[43] Fundamentos…, p. 210. Grifei.

[44]
Por todos, vide Luciano Amaro. Direito
tributário brasileiro
. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.322 et seq.

[45]
Sobre o tema, vide Estevão Horvath. Lançamento
tributário e “autolançamento”
. São Paulo: Dialética, 1997, p.85 et seq.

[46] Fundamentos…, p.240. Grifei.

[47] Fundamentos…, 239. Grifei.

[48]
No que toca ao lançamento, vide Fundamentos…,
p.213-214

[49] Lançamento tributário. 2ª ed. São Paulo:
Malheiros, 1999, p.264. Grifei.

[50] Fundamentos…, p.186.

[51] Fundamentos…, p.166-167. Grifei.

[52] Fundamentos…, p.212. Grifei.

[53] Fundamentos…, p.174.

[54] Fundamentos…, p.242. Grifos originais.

[55]
Vide Fundamentos…, p.199. Grifei.

[56] Fundamentos…, p.6.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Adriano Soares da Costa

 

Advogado. Ex-Juiz de Direito. Professor convidado do Curso de Pós-Graduação em Direito Tributário da FAL – Faculdade de Alagoas. Professor do Centro Universitário de Ciências Jurídicas (CCJUR/Cesmac).

 


 

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