Resumo: O presente artigo objetiva investigar o fundamento, o conteúdo e as implicações das normas que envolvem a alienação fiduciária em garantia no campo do financiamento de veículos, enfrentando vários temas intrínsecos dos contratos dessa natureza, correlacionando-os em uma dialética entre Direito Bancário e Direito do Consumidor, sob a ótica da dogmática jurídica, da jurisprudência, e de algumas regulações que influenciam direta ou indiretamente este crescente mercado, notadamente com os diplomas legais e informativos do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central do Brasil. Como metodologia, optou-se por uma apreciação de vasta coleta bibliográfica, combinada com a leitura de vários julgados do STJ e de alguns Tribunais de Justiça. Os resultados apresentados têm o mérito de fornecer uma política legislativo-civil e processual que poderá auxiliar no equilíbrio entre as partes dessas relações jurídicas, em ponto de vista mercadológico e constitucional. As conclusões principais evidenciam que o crescente número de ações judiciais com pretensão revisional contratual encontra razão na falta de apego ou atenção à técnica contratual, uma vez que vários assuntos são resolvidos, em verdade, na forma e no método que as Instituições Financeiras redigem seus contratos, os quais são, logicamente, de adesão.
Palavras-chave: alienação fiduciária em garantia; financiamento de veículos; direito do consumidor.
Sumário: Introdução. 1. A alienação fiduciária: seus aspectos básicos na legislação brasileira e a influência no mercado. 2. A alienação fiduciária e o seu campo no Direito Civil. 3. Natureza jurídica da alienação fiduciária em garantia e a sua importância para a Economia. 4. Surge o Direito do Consumidor. 4.1. A influência do Direito do Consumidor nos contratos de financiamento de veículos com alienação fiduciária em garantia e aspectos processuais da ação de busca e apreensão. 4.1.1. A (polêmica) questão dos juros nos contratos de alienação fiduciária. 4.1.2. A capitalização de juros. 4.1.3. A devolução em dobro dos eventuais valores apurados como sendo abusivos. 4.1.4. As despesas oriundas da mora: juros, multa e comissão de permanência. 4.1.5. A vedação do chamado “Pacto Comissório” na Alienação Fiduciária em garantia, limites para eventual cláusula penal e o problema da venda extrajudicial. 4.1.6. A aplicabilidade da “Tabela Price” ou de outros métodos de amortização. 4.1.7. A questão (i)legalidade das tarifas bancárias e a liminar do STJ no Recurso Especial nº 1.251.331/RS: o futuro do assunto. 4.1.8. Cláusulas contratuais que preveem encargos de cobrança e honorários. 5. Conclusões. 6. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é, em geral, apreciar o instituto jurídico da alienação fiduciária enquanto modalidade de garantia real, bem como sua respectiva influência no mercado e na facilidade em propiciar o crédito e o financiamento de veículos automotores, já que sua natureza jurídica se mostra vantajosa sob vários aspectos, considerando credor e devedor ao mesmo tempo. Em específico, a presente monografia busca contemplar a maneira que o Direito do Consumidor ingressou nessas relações obrigacionais, e como ele se dialetizou com o Direito Bancário e com outras searas normativas, oriundas do Conselho Monetário Nacional, do Banco Central do Brasil etc. Buscou-se, assim, trazer os principais tipos de cláusulas desses contratos com alienação fiduciária em garantia que costumam ser debatidas em sede jurisdicional (exemplos: juros, capitalização, aplicabilidade da Tabela Price e de outras formas de amortização, despesas de mora etc.), apreciando, caso a caso, os rumos e as tendências jurisprudenciais e, ainda, quando possível, o papel do Banco Central do Brasil em alguns pontos, notadamente na questão dos juros e de sua respectiva “média de mercado”.
Quanto à metodologia escolhida, foi eleita, essencialmente, a pesquisa bibliográfica geral e específica, que foi toda apreciada de modo a dialetizar as previsões do Código Ibero-americano de Ética Judicial com o Direito Brasileiro.
Estes escritos se dividem em cinco capítulos, sendo o quinto deles uma conclusão de todos os tópicos abordados. O primeiro tópico faz um apanhado geral da legislação que abarca a alienação fiduciária em garantia, invocando alguns aspectos históricos. O segundo se dedica em verificar a natureza jurídica da alienação fiduciária em garantia e sua colocação enciclopédica no Direito Civil, explicação fundamental para compreensão do capítulo seguinte, que correlaciona as vantagens para o crédito e para economia que a alienação fiduciária em garantia propicia para o financiamento de veículos. O quarto capítulo se destina a exibir o fenômeno do pós modernismo jurídico e o surgimento do Código de Defesa do Consumidor, já que tal diploma deve se atrelar, necessariamente, aos contratos desses negócios jurídicos. Há explicações de índole processual civil, que evidenciam, outrossim, outras vantagens interessantes para aqueles que integram o Sistema Financeiro Nacional, como a possibilidade exclusiva de mover Ação de busca e apreensão, rito muito mais célere e que guarda potencial contexto revisional contratual. O mesmo capítulo quarto estuda oito tipos gerais de cláusulas contratuais, explorando como isso tem funcionado na práxis forense, defendendo-se, de modo geral, que um contrato didático ao consumidor pode ser ferramenta poderosa para destaque no mercado, já que os números envolvendo ações de condão revisional, nesses casos, tem crescido muito.
1. A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA: SEUS ASPECTOS BÁSICOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E A INFLUÊNCIA NO MERCADO
Como se sabe, a alienação fiduciária, no Brasil, foi primeiramente disciplinada na Seção XIV (art. 66, mais precisamente) da Lei nº 4.728/1965. O ideal do legislador, na época, era tratar do mercado de capitais, disciplinando seu desenvolvimento. Alguns anos mais tarde, com o Decreto-lei nº 911/1969[1], a redação que abarcava a alienação fiduciária na Lei nº 4.728/1965 foi alterada em sua totalidade, criando, literalmente, uma disciplina inteiramente nova, ao menos se se considerar a criação do instituto processual da busca e apreensão.
Em síntese, com uma alienação fiduciária, um bem é adquirido por um devedor “x” que terá a posse direta da coisa (= depositário). A empresa credora “y”, ao seu turno, tem a propriedade propriamente dita do bem (não se trata, assim, necessariamente, da posse direta)[2], a qual é resolúvel.
A matéria, na verdade, demanda maiores explicações (vide infra, capítulo 2). Mas convém adiantar que o credor fiduciário tem, na hipótese em estudo, uma vantagem extremamente importante. É que ele não é mero terceiro com direito real sobre a coisa. É, a rigor, dono do bem. Tal fato tem grande relevância prática. Exemplo: em eventual falência do devedor, o bem pertencerá ao credor, e não à massa falida daquele. É o que diz, justamente, o art. 7º, caput, do Decreto-lei nº 911/1969: “na falência do devedor alienante, fica assegurado ao credor ou proprietário fiduciário o direito de pedir, na forma prevista na lei, a restituição do bem alienado fiduciariamente”.
No panorama temporal em que foi aprovado o Decreto-lei nº 911 (ano de 1969), havia uma segunda grande vantagem, que pode ser analisada apenas para fins históricos: o devedor, na alienação fiduciária, é equiparado a um depositário. Admitia-se, assim, no caso de sumiço do objeto, a prisão do devedor por ser ele um “depositário infiel”. Esta prisão civil não é mais admitida no Brasil.
Sob a ótica do devedor, a alienação fiduciária também tem seu ponto de vantagem: o bem garantido (automóvel, no caso do estudo aqui realizado), dificilmente perece. Logo, como o credor acaba assumindo menos riscos, os juros acabavam sendo menores e mais atraentes, com uma ou outra variação do mercado. Foi por isso que a alienação fiduciária se expandiu rapidamente no meio mobiliário[3].
O tema não era disciplinado no antigo Código Civil de 1916. Como o instituto evoluiu e ganhou importância no seio da sociedade, o Código Civil de 2002 acabou tratando, expressamente, da “propriedade fiduciária” (arts. 1.361 a 1.368-A). Convém anotar que tal codificação se ateve aos casos envolvendo bens móveis e infungíveis, nos termos de seu art. 1.361, caput.
Já aqui é possível extrair boa parte da importância dessas normas em termos de regulação de mercado. As que estão contidas na Lei nº 4.728/1965 e, ainda, no Decreto-lei nº 911/1969, são aplicáveis, apenas, às Instituições Financeiras e/ou pessoas jurídicas que integram o Sistema Financeiro Nacional (= “pessoas jurídicas equiparadas às instituições financeiras”). Estes e outros pontos chamam para si muita atenção, porque embora um particular possa celebrar negócio jurídico de alienação fiduciária em garantia com outrem, não terá ele acesso a certos ritos e tutelas jurisdicionais que se destinam exclusivamente às instituições financeiras. O particular não poderá, v. g., mover a “ação de busca e apreensão” tal como disciplinada no Decreto-lei nº 911/1969 (cf. capítulo 3, infra).
2. A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA E O SEU CAMPO NO DIREITO CIVIL
Antes de descrever, com precisão, a natureza jurídica da alienação fiduciária em garantia, é de extrema importância metodológica e didática o enfrentamento de alguns tópicos elementares contidos no Direito Civil, no que se refere aos Direitos Reais (ou, como preferem alguns, ao Direito das Coisas[4]–[5]). É que, quanto melhor se compreender as facetas dos direitos reais, mais apropriado e preciso será o entendimento do fenômeno jurídico envolvendo a alienação fiduciária em garantia e, por conseguinte, de variados aspectos que circundam a regulação econômica e mercadológica por trás do instituto.
Daí porque se faz necessário enfrentar, primeiramente, as diferenças entre propriedade e posse; posse direta e posse indireta; posse e detenção; garantias fidejussórias e garantias reais etc.
Os direitos reais recaem sobre coisas[6], bens[7], sobre os quais recaem o respectivo “gozo e fruição”[8]. É a disciplina do Direito que “trata das relações jurídicas concernentes aos bens corpóreos suscetíveis de apropriação pelo homem”[9], ou, ainda, “a parte do Direito Civil que regula os poderes da pessoa sobre bens materiais – móveis e imóveis – e imateriais”, cujos “poderes envolvem a submissão do objeto e a capacidade de produzir efeitos jurídicos”[10]. Trata-se de âmbito da dogmática jurídica destinada ao estudo do “vínculo” que há entre um sujeito de direito com os bens. É por isso que, sempre, os autores civilistas tratam de diferenciar os aspectos do Direito das Coisas com os do Direito das Obrigações (ou “Direitos Pessoais”), embora eles próprios admitam, como faz Carlos Roberto Gonçalves, que “não há [em verdade] critério preciso para distinguir o direito real do direito pessoal”[11]. Todavia, de algumas comparações é possível extrair certas diferenças, umas mais marcantes, outras menos. Exemplos: a) as normas que disciplinam os direitos reais são de ordem pública (= natureza cogente), ao passo que as que tratam do direito das obrigações são facultativas (= às partes é permitido o livre exercício da autonomia da vontade)[12]–[13]; b) o direito real recai sobre coisas, sendo absoluto e exercitável erga omnes[14], já o direito obrigacional é relativo, e sua respectiva prestação só pode ser exigida do devedor[15]; c) um direito real não comporta mais do que um titular, “porém, essa assertiva não conflita a noção de condomínio, em que a propriedade continua a ser exclusiva, mas com vários titulares”, e, por outro lado, o direito obrigacional é cooperativo, já que “implica sempre uma atividade pessoal”[16]; d) a concessão do direito real é do gozo e da fruição dos bens, e a concessão de um direito obrigacional é de “uma ou mais prestações”[17]; e) os direitos reais têm existência limitada por um rol legal e fechado (numerus clausus), porque “somente podem ser considerados direitos reais […] aqueles assim considerados pela lei”[18]–[19], enquanto que os direitos pessoais/obrigacionais “são em número ilimitado”[20], vez que novos negócios suis generis podem ser criados sem que haja necessária previsão do assunto no Ordenamento Jurídico etc.
Essas considerações ainda não são suficientes para que se compreenda o âmbito enciclopédico e a natureza jurídica da alienação fiduciária em garantia. Deve-se explicar, e agora isso já é permitido à esta altura do texto, o que são os Direitos Reais de Garantia, e como eles se ligam, mais intimamente, ao Direito das Obrigações (sem com eles se confundir, entretanto).
As garantias reais são mais recentes que as garantias pessoais (fiança e aval[21], por exemplo). Demandaram longa construção doutrinária ao fim de que “a garantia se ligasse a um bem […] não vinculado estrita e unicamente ao devedor, mas a coisa”[22]. As legislações adotaram o chamado princípio da responsabilidade patrimonial, segundo o qual “é o patrimônio do devedor que responde por suas obrigações”[23]. Essa é a regra geral: se “A” empresta dinheiro para “B”, que não logra receber o que foi aventado, “B” terá uma garantia geral: a totalidade de bens que “A” tiver, que serão constritos judicialmente (penhora, sequestro, arresto) e vendidos em hasta pública: o produto da arrematação terá o condão de satisfazer o crédito. Essa garantia, porque genérica, acaba não se mostrando sempre eficaz. Não é raro que, “em virtude de desequilíbrios financeiros, os débitos se acumulam e acabam ultrapassando o valor do patrimônio do devedor”, o qual, se se encontrar no chamado “estado de insolvência”, tem um “ativo […] não suficiente para responder pelo seu passivo”[24]. Tal situação, por evidente, não favorece o crédito.
A solução dessas e outras hipóteses advém de garantias a que buscam os credores, que podem ser pessoais (ou fidejussórias) e, como visto, reais.
Nas garantias pessoais/fidejussórias, um terceiro se obriga, por fiança, a solver o débito, caso o devedor principal assim não o faça[25]. A saída, entretanto, não é tão atrativa, porquanto os fiadores e avalistas “dificilmente se prestam à realização de negócios vultuosos”[26]. Calixto Valverde y Valverde, citado por Paulo Nader, aborda esse aspecto com franca precisão:
“la garantía personal es a veces insuficiente; muchas operaciones, muchas empresas en donde se necesita para su realización grandes cantidades de dinero, no podrían tener lugar sin las garantias reales, porque dada la importância de ella no basta la solvabilidad del deudor y la presunta honradez de éste, se necesita la seguridad que aquellas cantidades han de ser devueltas en el tiempo convenido […]”[27].
Ademais, o próprio fiador pode se tornar insolvente na ocasião em que a dívida se vencer, sendo redundante concluir que isso não encoraja, suficientemente, o mercado e o crédito que abarque veículos ou outros bens.
Já no caso da garantia real, é possível demonstrar em sua própria conceituação que uma de suas grandes vantagens está na segurança efetiva destinada ao credor, “pois o bem gravado responde inabalavelmente”[28]. Em uma garantia real, “o próprio devedor, ou alguém por ele, oferece todo ou parte de seu patrimônio para assegurar o cumprimento da obrigação”[29]. É uma “cláusula acessória de negócio jurídico, que atribui ao credor um poder sobre a coisa, móvel ou imóvel, de propriedade do devedor ou de terceiro, que se subordina à satisfação da dívida contraída”[30]. Na obrigação criada pelas partes, convenciona-se que um bem específico – móvel ou imóvel – gravitará em torno do negócio, como forma de garantia[31]. Se o devedor ficar inadimplente, o valor potencialmente considerado do bem será destinado à quitação do débito com credor, o qual tem ciência, pois, de que o crédito lhe será restituído.
Mesmo com a falência do devedor, a Lei nº 11.101/2005[32] dispõe que os créditos, na falência, obedecerão à ordem enumerada em um rol de incisos do art. 83, situando-se em segundo lugar os "créditos com garantia real até o limite do bem gravado”[33]. Por isso o aviso de Carlos Roberto Gonçalves: “se o devedor perder toda a sua fortuna […] tal fato em nada atingirá a segurança, porque a coisa, saindo do patrimônio do devedor, terá ido para outro patrimônio. E, onde quer que se encontre, poder-se-á transformá-la no seu valor, e com esse valor satisfazer o cumprimento da obrigação”[34].
Pode-se dizer que três são as modalidades “clássicas”, no direito brasileiro, de garantia real: i) o penhor; ii) a hipoteca; e iii) a anticrese. É o ditame do art. 1.419 do Código Civil: “nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação”. Como não são o foco direto do trabalho em mãos, importa saber apenas que todas elas – cada um com certas suas características peculiares – acabam dando ao credor o chamado “direito de prelação”, assim explicado por Sílvio de Salvo Venosa: “quando há direito real de garantia, especializa-se um bem […], respondendo ele preferencialmente por determinada dívida […]. O bem dado em garantia suportará primeiramente a obrigação contraída. Trata-se do direito de prelação”[35].
O Código Civil, no art. 961, estabelece que o agora estudado crédito real “prefere ao pessoal de qualquer espécie”, o que se harmoniza com o art. 1.422, caput, do referido diploma legal: “o credor hipotecário e o pignoratício têm o direito de excutir a coisa hipotecada ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores, observada, quanto à hipoteca, a prioridade no registro”. A única exceção admitida deve advir, única e exclusivamente, de Lei, consoante o parágrafo único do transcrito art. 1.422: “excetuam-se da regra estabelecida neste artigo as dívidas que, em virtude de outras leis, devam ser pagas precipuamente a quaisquer outros crédito”.
Vejamos um exemplo de garantia real por hipoteca: “Fulano” celebra empréstimo com duas pessoas jurídicas diversas, que aqui chamaremos de “Pessoa Primeira S.A.” e “Pessoa Segunda S.A.”. Com a “Pessoa Primeira”, “Fulano” tomou emprestado R$ 1 milhão, e deu como garantia real, por hipoteca, um terreno. Ao mesmo tempo, “Fulano” também consegue pegar emprestado com a “Pessoa Segunda” a quantia de R$ 700 mil, mas sem ceder uma garantia real. Passados alguns anos, o devedor “Fulano” não consegue adimplir suas dívidas, por um problema financeiro que lhe é particular. As duas pessoas jurídicas resolvem mover ação com pretensão executória contra “Fulano”[36]. O terreno outrora hipotecado, porém, foi dado em garantia. A consequência disso é que a “Pessoa Primeira S.A.” poderá obter, com a venda judicial do imóvel, a quantia necessária para saldar a dívida. Se o imóvel for onerado, no leilão judicial, por valor a menos, a “Pessoa Primeira S.A.” poderá prosseguir na execução pelo restante, mas a partir desse marco temporal “x”, na mesma situação que a “Pessoa Segunda S.A.”: como uma credora quirografária. É o que diz o art. 1.430 do Código Civil: “quando, excutido o penhor, ou executada a hipoteca, o produto não bastar para pagamento da dívida e despesas judiciais, continuará o devedor obrigado pessoalmente pelo restante”.
3. NATUREZA JURÍDICA DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E A SUA IMPORTÂNCIA PARA A ECONOMIA
Após um relato científico relativamente denso a respeito dos direitos reais propriamente ditos e, também, das garantias reais lato sensu, pode-se articular, finalmente, que a alienação fiduciária em garantia é um direito real de garantia. Com características muito próprias, dela se afastam, tecnicamente, a hipoteca, o credor e a anticrese, seja no âmbito do direito material propriamente dito, seja nas consequências e possibilidades do Direito Processual Civil. Autores como Sílvio de Salvo Venosa aduzem que a alienação fiduciária é “uma nova modalidade de direito de garantia”, e que, após as recentes atividades legislativas envolvendo o tema[37], a tendência será a diminuição da utilização do penhor e da hipoteca[38]. O prenúncio do civilista tem coerência[39], mas demanda, também por questão de ordem metodológica, novas divagações que permitam o entendimento mais preciso de um fenômeno muito interessante nos negócios jurídicos, e que conta com riquíssimo e engendrados detalhes que lançam a alienação fiduciária em garantia como sendo “um valioso instrumento de garantia de dívida e, por isto mesmo, importante fator de aquecimento da economia”, de modo a estimular os negócios “notadamente na esfera mobiliária”, em prática já “bastante difundida, especialmente no ramo de vendas de veículos”[40].
Essa conclusão, embora possa advir com um raciocínio que, de certo modo, exclua uma apreciação de índole mais política a respeito do tema (compreendendo-se a “engenharia jurídica” por trás da alienação fiduciária em garantia), merece se atentar a alguns fatos interessantes da História do Direito Brasileiro. Um exemplo disto pode ser extraído de questões pontuais do (antes) Projeto de Lei envolvendo o Código Civil de 2002. O Código anterior, de 1916, desconhecia o instituto da alienação fiduciária em garantia. Curiosamente, sua inclusão no Código atual não adveio das atividades de Elbert Vianna Chamoun, que fora o jurista “encarregado de preparar o Livro sobre o Direito das Coisas” de tal diploma legal[41]. Tratou-se mais de uma influência de José Carlos Moreira Alves, cuja participação – focada em disciplinar o inédito capítulo da propriedade fiduciária –, segundo o próprio Miguel Reale (que organizou e gerenciou a Comissão Elaboradora), teve “grande alcance prático”, tendo o Prof. José Carlos Moreira Alves acolhido “sugestões recebidas do Banco Central do Brasil” e analisado “cuidadosamente ponderações feitas por entidades da classe”[42]. Esse tipo de observação, que é, talvez, certa variação de uma hermenêutica histórica, não é inédita na literatura jurídica[43], mas evidencia o volume de informações e advertências que um estudioso deve ter ao tratar a matéria no contexto ora estudado (confronto entre interesses consumeristas, bancários, do próprio Estado em regular a Economia etc.).
Como funciona a alienação fiduciária em garantia? A propriedade fiduciária, a rigor, se traduz como “espécie do gênero propriedade”[44], estando, pois, implícita no art. 1.225, inciso I, do Código Civil[45]. Como já se pode denotar pelo próprio título do presente trabalho, é a alienação fiduciária um “engenho jurídico resultante da experiência comercial e da criatividade científica”, em “fórmula que satisfaz o interesse das partes e favorece a dinâmica do comércio”[46].
A matéria vem regulada pelo Código Civil de 2002 (arts. 1.361 a 1.368-A) e, também, por uma legislação esparsa (Lei nº 4.728/1965; Decreto-lei nº 911/1969; Lei nº 9.514/1997; Lei nº 10.931/2004; art. 53 do Código de Defesa do Consumidor; arts. 148 a 152 do Código Brasileiro de Aeronáutica). É instituto de direito civil que se emana de várias fontes legais, portanto.
Interessam diretamente o estudo, apenas, das disposições do Código Civil, da Lei nº 4.728/1965, do Decreto-lei nº 911/1969 e do Direito do Consumidor em sentido lato. O primeiro define a propriedade fiduciária no caput do art. 1.361 da seguinte maneira: “considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. A leitura do dispositivo, de maneira isolada e sem maiores explicações, porém, não se mostra suficiente. O que ocorre é um negócio jurídico de “disposição condicional”[47]: ele se subordina a uma condição resolutiva. A propriedade do bem só será repassada para o devedor com o pagamento da dívida[48]. Por isso explicamos, com certa exaustão, a noção de propriedade e de posse, acima (vide capítulo 2, supra). O devedor, enquanto não terminar de pagar as parcelas envolvendo o financiamento do veículo em alienação fiduciária em garantia, não terá o título de proprietário do bem, mas poderá usá-lo (= terá a posse direta). Eis a grande particularidade do negócio fiduciário: o próprio bem é transferido para o fim de garantia[49]. Não se confunde, todavia, com as garantias reais que chamamos de “clássicas” (hipoteca, penhor e anticrese), porque nesses casos o que existe é um “direito real limitado”, ao passo que na alienação fiduciária em garantia “opera-se [efetivamente] a transferência do bem”[50]. O próprio objeto da alienação fiduciária é a sua garantia. Por isso que, “com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor o possuidor direto da coisa”, art. 1.361, § 2º, do Código Civil. Enquanto a dívida não é paga, e estando o contrato em execução diferida/sucessiva em dia, poderá o devedor, sob “suas expensas e risco”, diz o art. 1.363, caput, do Código Civil, “usar a coisa, segundo sua destinação”, tendo, com a qualidade de depositário, a obrigação de “empregar na guarda da coisa a diligência exigida por sua natureza” (inciso I) e, também, a de “entrega-la ao credor, se a dívida não for paga no vencimento” (inciso II).
Vejamos um exemplo: “Ciclano” precisa de um automóvel para o dia a dia, mas não conta com dinheiro imediato. Procura solução para tanto e consegue um crédito com a “Instituição Financeira do Exemplo S.A.”. Celebram, pois, negócio com alienação fiduciária em garantia. O contrato terá todos os elementos formais[51] exigidos em Lei[52], ficando acertado que o débito será pago em 20 prestações iguais e mensais de R$ 1.000,00. O veículo automotor, objeto do negócio feito entre o “Ciclano” e a “Instituição Financeira do Exemplo S.A.” ficará com “Ciclano”, de modo imediato. Terá “Ciclano” a posse direta do carro. Usará em seu dia a dia de modo que respeite o art. 1.363 do Código Civil (na destinação que é dada ao bem). A propriedade, contudo, é da “Instituição Financeira do Exemplo S.A.”[53]. E “Ciclano” só terá posse + propriedade quando adimplir a última parcela do instrumento. Vamos supor, agora, que “Ciclano” não pague a décima das vinte parcelas avençadas. O inadimplemento já garantirá à “Instituição Financeira do Exemplo S.A.” a possibilidade de ingressar com a Ação de busca e apreensão de que trata o Decreto-lei nº 911/1969. Bastará comprovar ao Juiz competente a mora de “Ciclano”[54], para requerer, então, contra ele (ou mesmo contra terceiro que se encontre com o carro) a busca e apreensão do automóvel do contrato, e essa medida “será concedida liminarmente” (antes de citar o réu devedor[55]), art. 3º, caput, do Decreto-lei nº 911/1969. Essa construção processual chama atenção também porque as previsões de Direito Processual Civil do Decreto-lei nº 911/1969, mesmo após toda a edificação legal do Código Civil de 2002, se destina somente às Instituições Financeiras. O que isso quer dizer? Se particulares celebrarem negócio fiduciário, o credor/proprietário – porque não integrante do Sistema Financeiro Nacional[56] –, “deverá valer-se dos meios processuais ordinários, não podendo se utilizar da ação de busca e apreensão”[57]. A tutela jurisdicional da busca e apreensão é feita, portanto, para aqueles que integram o Sistema Financeiro Nacional.
4. SURGE O DIREITO DO CONSUMIDOR
Fortaleceram-se as Instituições do Sistema Financeiro Nacional no decorrer da segunda metade do século XX. Basta ver a própria alienação fiduciária em garantia e a respectiva ação de busca e apreensão do Decreto-lei nº 911/1969, tutela exclusivamente destinada ao setor bancário-financeiro. Construiu-se, em verdade, um Direito (para o setor) Bancário. Curiosa e paradoxalmente, foi esse o germe sociológico que propiciou o nascimento de um Direito (para o) Consumidor.
A Ciência Jurídica se deparou, na precisa e sucinta análise de Sálvio de Figueiredo Teixeira, “com duas situações aparentemente antagônicas: de um lado, preservar as leis de mercado e o desenvolvimento econômico, que se ancoraram na globalização como expressão da ordem capitalista; de outro, evitar o esmagamento dos indivíduos pelas corporações”[58]. Alguns autores, angariando orientações deste caráter, nomearam esse fenômeno como sendo a “pós-modernidade do Direito”. Inspirado pela Escola de Frankfurt, e, mais precisamente, por Max Horkheimer, Eduardo Carlos Bianca Bittar define essa “pós-modernidade jurídica” da seguinte maneira:
“é o estado reflexivo da sociedade ante suas próprias mazelas, capaz de gerar um revisionismo de seu modus actuandi, especialmente considerada a condição de superação do modelo moderno de organização da vida e da sociedade. Nem só de superação se entende viver a pós-modernidade, pois o revisionismo crítico implica praticar a escavação dos erros do passado para a preparação de novas condições de vida. A pós-modernidade é menos um estado de coisas, exatamente porque ela é uma condição processante de um amadurecimento social, político, econômico e cultural, que haverá de alargar-se por muitas décadas até sua consolidação. Ela não encerra a modernidade, pois inaugura sua mescla com os restos da modernidade. Do modo como se pode compreendê-la, deixa de ser vista somente como um conjunto de condições ambientais para ser vista como certa percepção que parte das consciências acerca da ausência de limites e de segurança, num contexto de transformações, capaz de gerar uma procura (ainda não exaurida) acerca de outros referenciais possíveis para a estruturação da vida (cognitiva, psicológica, afetiva, relacional etc.) e do projeto social (justiça, economia, burocracia, emprego, produção, trabalho etc.)”[59].
Como se percebe, o “ideal pós-moderno” não é destruir ou romper com o passado de modo brusco. A rigor, pode-se afirmar que esses “novos direitos” (consumidor, ambiental, ação civil pública, tutela coletiva etc.[60]) não são parte de uma “revolução”. O que há é uma paulatina evolução que, de alguma maneira não ríspida, remodela e reconfigura as instituições de Direito[61]. Não se trata, pois, de alterar os elementos e as categorias antigas, mas, isto sim, de uma busca que metodologicamente signifique a manutenção dos conceitos, atrelados, porém, a uma “revisitação das premissas da razão pura”[62].
E o Código de Defesa do Consumidor “constituiu uma típica norma pós-moderna”[63], já que reviu conceitos pretéritos do Direito Privado[64]. No mesmo compasso da pós-modernidade, veio a tutela (de interesse) consumerista para possibilitar a readaptação da tutela (para) as normas que protegem o mercado em si considerado, num verdadeiro “cabo de guerra contra a excessiva proteção mercadológica”[65]. Essa busca tem necessária conexão com os anseios do Estado Democrático de Direito, já que a própria Constituição Federal de 1988 prevê que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (art. 5º, inciso XXXII), e, ainda, que a Ordem Econômica do Estado observará, por princípio, a “defesa do consumidor” (art. 170, inciso V). A conclusão de que o próprio Estado Democrático busca, então, proteger o consumidor, advém também do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que estabeleceu que o Congresso Nacional teria, por missão, num prazo de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborar o Código de Defesa do Consumidor (art. 48).
A doutrina não ficou inerte. Tratou de se inserir, naturalmente, nos trilhos desse chamado “pós-modernismo”, encarando as novas problemáticas de Direito Civil e buscando soluções para as questões que surgiram no decorrer do tempo. O Código de Defesa do Consumidor é Lei aprovada no ano de 1990, tendo convivido, portanto, por alguns anos, com o antigo Código Civil de 1916. Na época, prevalecia o entendimento de que cada Lei era estanque uma da outra. Que se aplicasse, na relação civil, o Código de 1916; e, na relação de consumo, o Código de Defesa do Consumidor: “assim era ensinada a disciplina de Direito do Consumidor na década de noventa e na primeira década do século XXI”[66]. As coisas mudaram com o passar do tempo, tendo o Código de Defesa do Consumidor adquirido a roupagem de “norma principiológica”, opinando Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery que “as leis especiais setorizadas (v. g., seguros, bancos, calçados, transportes, serviços, automóveis, alimentos etc.) devem disciplinar suas respectivas matérias em consonância e em obediência aos princípios fundamentais do CDC”[67]. Disso não escaparia, como é evidente, a alienação fiduciária em garantia.
Se, por um lado, o Decreto-lei nº 911/1969 contém, já vimos, rito de busca e apreensão muito mais célere em relação aos procedimentos ordinários do Processo Civil brasileiro, por outra ótica é de se reconhecer que essa mesma norma também conta com certos dispositivos que não almejam favorecer, necessariamente, as Instituições Financeiras. As alterações pontuais dadas pela Lei nº 10.931/2004 contribuem para a defesa desse entendimento.
Após concessão da liminar de busca e apreensão (cf. detalhes supra, capítulo 3), o réu/devedor terá, antes, a chance de pagar a integralidade da dívida pendente (que é a mencionada, pelo autor/credor, na peça inicial), e, se assim o fizer, o veículo será restituído livre de ônus[68]. O devedor/réu terá, porém, cinco dias para tanto, em prazo que é iniciado após a execução da liminar. É o que dizem os §§ 1º e 2º do art. 3º do Decreto-lei nº 911/1969[69].
Outro aspecto processual que chama atenção é o fato de, nos autos da ação de busca e apreensão, ser plausível uma ação com pretensão de revisão contratual às avessas. Neste modo de pensar, a busca e apreensão adquiriria, potencialmente, cognição ampla por parte do Magistrado[70]. O § 3º do art. 3º do Decreto-lei nº 911/1969 faculta ao devedor/réu oferecer “resposta no prazo de quinze dias da execução da liminar”. A peça da resposta, aqui, segundo pensamos, acaba sendo, a depender do exposto pelo réu/devedor, uma contestação + reconvenção. O réu acabará contestando se alegar à maneira que o Código de Processo Civil regula a contestação (arts. 300 a 303): o mérito “contestante” acaba sendo, apenas, de assuntos restritos ao objeto da busca e apreensão (exemplo: arguir que “não há mora no caso dos autos em mesa”). Antes disso, também, poderá o réu suscitar as preliminares dos incisos I a XI do art. 301 do Código de Processo Civil (exemplo: “o juízo é absolutamente incompetente” [inciso II] ou “há inépcia na petição inicial” [inciso III]). Mas terá o réu a faculdade de, dentro da mesma peça da resposta a que se refere o art. 3º, § 3º, do Decreto-lei nº 911/1969, reconvir (arts. 315 a 318 do Código de Processo Civil) de modo suis generis. A reconvenção acaba sendo, sempre, um “contra-ataque”[71] do polo passivo de uma Ação contra o polo ativo[72]–[73].
A possibilidade de a resposta do réu significar, pois, uma reconvenção, faz com que tal peça abarque discussão que pode revisar o contrato feito com a Instituição Financeira. Aqui está a importância da regulação de mercado (normas do Banco Central do Brasil ou do Conselho Monetário Nacional que envolvam, p. ex., juros, despesas de mora, tarifas de abertura de crédito etc.) e da jurisprudência, que ainda muito diverge sobre os (polêmicos) temas levados ao Judiciário. A temática é confusa, e pareceu levar ao jurista a necessidade (ou a obrigação?) de compreender, com demasiada profundidade, assuntos que escapam de seu âmbito científico, advindos da Economia, da Matemática Financeira, da Contabilidade etc.
Muitos temas acabaram, assim, chegando ao Judiciário para discussão: os juros, as médias de mercado, a capitalização/anatocismo, a repetição do indébito, as multas e juros moratórios, a chamada “comissão de permanência”, as tarifas “TAC”/“TEC”/e outras de mesmo gênero (despesas de terceiros, cobrança de boletos etc.), os juros “flutuantes”, a questão de aplicabilidade da chamada “Tabela Price”, os entendimentos do Banco Central do Brasil etc. Esses pontos não são finitos, mas são os mais recorrentes na prática forense. Assim, tentaremos analisar, um a um, na medida do possível, invocando, para tanto, eventuais normas do Conselho Monetário Nacional, do Banco Central do Brasil e de outras fontes importantes, e informando como tudo isso vem sendo interpretado pela jurisprudência do STJ e, também, de alguns Tribunais de Justiça. Antes, atente-se ao fato de que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento de que “o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras” (Súmula nº 297), motivo mais do que razoável para justificar o presente estudo.
Toda e qualquer análise envolvendo as regulações de mercado da alienação fiduciária em garantia de veículos automotores merecem, portanto, uma apreciação em dialética com o Código de Defesa do Consumidor, diploma de índole principiológica (cf. rodapé nº 67, supra).
4.1.1. A (polêmica) questão dos juros nos contratos de alienação fiduciária
A Ordem Jurídica tratou de favorecer, neste ponto, as Instituições Financeiras. Trata-se, na realidade, de tópico extremamente controverso. O Decreto nº 22.626/1933, usualmente chamado de “Lei da Usura”, prescreve logo em seu art. 1º ser vedado “estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal”. O problema é que esse mesmo art. 1º se refere, expressamente, ao art. 1.062 do Código Civil de 1916[74], isto é, cita diploma d’outro patamar jurídico, onde outros eram os paradigmas legais e constitucionais.
Ademais, já muito antes de o Código Civil de 2002 entrar em vigor, o Supremo Tribunal Federal editou, em 1977, a Súmula nº 596, pela qual “as disposições do Decreto 22.626 de 1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional”. Em síntese: quem pertence ao Sistema Financeiro Nacional pode, em boa tese, estipular juros como bem entender[75]. Se a credora fizer parte do Sistema Financeiro Nacional (art. 1º da Lei nº 4.595/1964), as limitações legais de juros remuneratórios não afetam-na. Terá liberdade, assim, para estipular os juros sem apego ao(s) limite(s) legal(is).
Atente-se, porém, que não estamos defendendo aqui a possibilidade de a Instituição Financeira estipular unilateralmente os juros, cuja prática é, segundo pensamos, vedada. Também cremos que os juros não podem ser abusivos: isso significa que os juros podem, sim, ultrapassar a margem máxima legal, mas não podem extrapolar imensamente o que se entender pela média de mercado[76]. A cobrança de juros abusivos (cf. exemplo do rodapé nº 76) é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor. Neste ínterim, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que eventual abusividade deve ser alegada de modo efetivo pela parte, com demonstração ao Juiz de que num caso concreto “x”, as taxas remuneratórias “a” e “b” são abusivas[77]. Isso requer, ainda segundo o STJ, “fundamentação apropriada” [78], e “à vista de taxa de comprovadamente discrepe, de modo substancial, da média de mercado” [79]. Quer se dizer, assim, que “a prova da excessividade do lucro obtido com a intermediação financeira decorre da análise comparativa entre a taxa cobrada pelo banco com quem o mutuário contratou e a média das taxas praticadas em operações similares pelas demais instituições que integram o Sistema Financeiro Nacional”[80].
Esse é mais um elemento que vem a corroborar nossos dizeres a respeito de dar ao jurista a tarefa de compreender assuntos alheios ao Direito (Economia, Matemática Financeira, Contabilidade etc.)[81].
Como temos feito até então, criemos um exemplo para explicar como isso tem funcionado. O “Banco S.A.” move contra o “Senhor Particular” ação de busca e apreensão. Eles celebraram um contrato envolvendo um veículo automotor dado em garantia de alienação fiduciária. Como pagamento, ficou acertado “x” reais em 15 parcelas mensais. Pactuou-se, no instrumento assinado pelas partes, que ali incidiriam juros remuneratórios de 32% a.a., isso em fevereiro de 2009. Após a execução da liminar, o réu “Senhor Particular” responde de modo que contesta um ou outro ponto do mérito da ação de busca e apreensão e, ainda, reconvém, pedindo a análise de diversas cláusulas contratuais (sobre esse aspecto processual, vide o que dissemos acima no capítulo 3). Em seus fundamentos, o Advogado de “Senhor Particular” aduz que os juros são abusivos, e que devem ser reduzidos pelo Juiz. Esse pedido em específico não merecerá procedência, segundo pensamos (e é o que tem se decidido). É que, de acordo com o Banco Central do Brasil, em fevereiro de 2009 as operações com juros prefixados para aquisição de veículos por pessoa física tinham média de mercado em 31,75% a.a.[82], e o que foi convencionado ultrapassa minimamente tal índice. A média, portanto, deve ser apurada nos acordes do mesmo gênero de operação para um determinado período. Se oscilar pouco para mais ou em quantum razoável (apreciação do Juiz), não haverá abuso. O próprio Tribunal de Justiça do Paraná já considerou “dentro dos padrões do mercado” taxa mensal que chegava aos 2,9% a.m. (= 34,8% a.a.), e isso em relação de consumo[83].
Imaginemos, agora, que o réu “Senhor Particular” junte um documento provando que tais juros não foram fixados. Neste (novo) caso, os juros anuais (ou mensais, não importa), porque não compactuados, seriam nulos e deveriam ser afastados da cobrança que fez, na inicial, o “Banco S.A.”[84]. Mas se houve assinatura de um contrato com o réu “Banco S.A.” que, autorizado legalmente, cobrou juros de natureza convencional-remuneratória, em índices não se afiguram abusivos no caso concreto e dentro na média em contratos assemelhados assinados naquele período, não há que se falar de abuso ou nulidade. Daí os dizeres da Súmula nº 383 do Superior Tribunal de Justiça: “a estipulação de juros remuneratórios superior a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade”.
4.1.2. A capitalização de juros
Assunto mais polêmico é a capitalização dos juros. A tendência clara dos Tribunais é a admissão da prática de capitalização, na guarida do art. 5º da Medida Provisória nº 1.963-17/2000 reeditada sob a de nº 2.170-36/2001. Sobre o assunto ainda remanesce grande discussão a respeito da constitucionalidade da citada Medida Provisória[85].
Vem se decidindo que não há óbice para que as instituições do Sistema Financeiro Nacional capitalizem, mensal ou anualmente, juros remuneratórios. Porém, é de rigor que na relação que tiver com os consumidores, constem nos contratos redação expressa, didática e ostensiva de que na relação contratual que ali está sendo criada incidirão juros, “em forma capitalizada” (mensal ou anualmente), na ordem de “tantos” por cento, dentre outras especificações.
Há uma corrente, ainda não unânime, no Superior Tribunal de Justiça, capitaneada pela Ministra Nancy Andrighi, da 3ª Turma, que tem entendido o seguinte: “a contratação expressa da capitalização de juros deve ser clara, precisa e ostensiva, não podendo ser deduzida da mera divergência entre a taxa de juros anual e o duodécuplo da taxa de juros mensal”[86]. Todavia, há outra posição diametralmente oposta – da qual discordamos – que ganhou força, no seguinte sentido: “a capitalização dos juros em periodicidade inferior à anual deve vir pactuada de forma expressa e clara. A previsão no contrato bancário de taxa de juros anual superior ao duodécuplo da mensal é suficiente para permitir a cobrança da taxa efetiva anual contratada”[87].
Se admitimos, como visto, que às Instituições Financeiras é permitido capitalizar juros, concordamos, por outro lado, que essa permissão não dispensa a necessidade de contratação efetiva e clara, com redação não confusa em termos contratuais. O contrato que cela o negócio jurídico das partes deve ter cláusula dizendo que ali os juros serão capitalizados, informando, outrossim, o quantum dessa capitalização, e seu período (mensal ou anual). O que algumas instituições fazem é o seguinte: informam duas taxas de juros no contrato, nos “quadros introdutórios” do instrumento, onde constam dois índices: um anual e outro mensal. Na decisão que mencionamos (rodapé nº 86), eventual divergência da multiplicação dos juros mensais por 12 com os juros anuais não pode, por si só, permitir que a Instituição Financeira capitalize seu crédito.
Voltando ao exemplo que criamos: no contrato feito entre o “Senhor Particular” com o “Banco S.A.”, não havia cláusula expressa que dissesse ao “Senhor Particular” que os juros seriam capitalizados. Ali, vimos, os juros anuais eram de 32% a.a. Todavia, os juros mensais contratados ficaram acertados em 4,5% a.m. Ao procedermos a multiplicação de 4,5% por 12, teremos 54%, percentual esse que tem diferença de 22% em relação aos juros 32% a.a. Essa forma de capitalizar é, pensamos, abusiva e nula, porque sem respaldo de uma cláusula que lhe seja respectiva e esclarecedora. Raciocínio paralelo, portanto, ao que estampado pela Ministra Nancy Andrigui no julgamento do Recurso Especial nº 1.302.738/SC pelo Superior Tribunal de Justiça.
4.1.3. A devolução em dobro dos eventuais valores apurados como sendo abusivos
O parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor prevê que “o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”. Trata-se, como é evidente, de “dispositivo de grandes repercussões práticas na ótica consumerista”[88]. Sua leitura desatenta, porém, pode ocasionar a errônea conclusão de que “a mera cobrança indevida é ponto para o pagamento em dobro de que está sendo cobrado”[89]. Na verdade, há grande discussão a respeito de uma das exigências legais: o chamado “erro escusável”, e o debate acaba respingando na necessidade de provar ou não a má-fé e/ou a culpa do credor que fez a cobrança[90]. O Superior Tribunal de Justiça parece ter consolidado a tese de que a devolução em dobro só se faz possível quando demonstrada a má-fé do credor[91]–[92].
A posição, porém, não parece convencer, porque diverge da linha de responsabilização civil objetiva adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, de modo que exigir prova de má-fé ou de culpa por parte do credor “representa a incidência de um modelo subjetivo de responsabilidade, totalmente distante do modelo […] adotado do CDC, que dispensa o elemento culposo”[93]. O próprio STJ, porém, tem decisões divergentes. Já se entendeu que “a cobrança indevida do serviço público de esgoto enseja a repetição de indébito em dobro ao consumidor, independentemente da existência, ou não, da má-fé do prestador de serviço”[94].
De acordo com nossa forma de pensar, a jurisprudência acabou invocando preceitos demasiadamente técnicos para o parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor. Um leigo que ler o diploma em tal ponto entenderá que, caso venha a espancar, judicialmente, cláusulas abusivas que reflitam no saldo devedor, verá tais reflexos “em dobro”, porque – queira ou não – ocorreu pagamento em excesso. A divergência jurisprudencial, em verdade, prejudica o consumidor e abre leque para que as instituições financeiras continuem nas velhas práticas. O consumidor fica dependendo de uma “corda bamba” jurisprudencial: a divergência poderá ser um ônus ou um bônus, variando conforme o entendimento do Juiz competente ou até onde chegar o interesse recursal do credor. A pessoa jurídica que é instituição financeira, por outro lado, pode simplesmente alegar que o assunto é controvertido e polêmico, insistindo nas mesmas práticas contratuais e mercadológicas que a favoreçam. Veja-se o caso da capitalização: defendemos uma posição do STJ que não admite sua possibilidade pela mera divergência do duodécuplo mensal com os juros anuais[95] (cf. rodapé nº 86, supra). Como a jurisprudência oscila nesse ponto em específico, e também quanto à necessidade de provar ou não a má-fé e/ou a culpa do credor, então aí sobram justificativas para que se alegue que não há “má-fé”, porque “aquele julgado me permitia isso”.
Curiosamente, o consumidor acaba tendo acesso a informações mais simplificadas (sob o risco de recair em erro), porque está justamente na posição de leigo. Há uma cartilha da “Proteste Associação de Consumidores”, por exemplo, que menciona este parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor e diz: “o consumidor que se considerar cobrado sem justificativa, terá direito a contestar o pagamento. Caso já o tenha efetuado, poderá exigir o ressarcimento do valor, em dobro […]”[96].
E, malgrado a ressalva das decisões do STJ que acaba por “subjetivar” a responsabilização civil do credor no tocante aos referidos aspectos da devolução em dobro (por demandar dilação probatória no tocante à culpa ou à má-fé), é de se repetir que a melhor interpretação (inclusive, teleológica) a ser dada ao parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor acaba sendo aquela que encara o contexto e o caráter da responsabilidade civil objetiva do fornecedor, não devendo, pois, sopesar a tarefa ao consumidor de provar a culpa. É sabido que a responsabilidade civil subjetiva é uma regra do Ordenamento Jurídico. A exceção da regra, isto é, a responsabilidade civil objetiva, tem fundamento[97] que não pode ser ignorado: o postulado de “que todo dano é indenizável”[98], a isso se atrelando a chamada “Teoria do Risco”. Tal teoria do risco desenvolveu cinco grandes correntes: risco-proveito [99], risco profissional [100], risco excepcional [101], risco criado [102] e risco integral [103]. A compreensão delas evidencia o caráter protetivo do Código de Defesa do Consumidor que deve ser (também) compreendido à luz de suas razões históricas (cf. capítulo 4, supra).
4.1.4. As despesas oriundas da mora: juros, multa e comissão de permanência
Pode-se considerar “em mora”, quanto ao devedor, quando ele não efetua o pagamento ao credor no tempo, lugar e forma que a lei ou o negócio jurídico tenha estabelecido, art. 394 do Código Civil. Na precisa síntese de Sílvio Rodrigues, “a mora ocorre, de acordo com o sistema brasileiro, quando a obrigação não foi cumprida no tempo, no lugar ou na forma devidos […]. É o cumprimento imperfeito da obrigação”[104]. Essa situação da mora implica em algumas consequências.
Para nosso estudo, interessam aquelas despesas de mora que podem surgir com o inadimplemento do devedor: a) juros de mora[105], que são contados desde a citação inicial (art. 405 do Código Civil); b) multa moratória, que, em relação de consumo, não podem superar 2% “do valor da prestação” (art. 52, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor); e c) incidência da chamada comissão de permanência[106].
Os dois primeiros encargos moratórios (juros e multa) não causam, em si, muita polêmica. É cediço que os juros moratórios podem ser convencionados ou não, “sem que para isso exista limite previamente estipulado na lei”[107]. Se a taxa não constar no contrato, então deverá prevalecer o que dispõe a Lei. Neste interim, diz o art. 406 do Código Civil: “quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. Mesmo que o Banco, na busca e apreensão ou qualquer outra ação, não peça expressamente a contagem dos juros moratórios, é de se defender que o Juiz poderá condenar o devedor ao pagamento dos juros moratórios na taxa legalmente prevista, por força do art. 293 do Código de Processo Civil: “os pedidos são interpretados restritivamente, compreendendo-se, entretanto, no principal os juros legais”. Também, convém mencionar que o Supremo Tribunal Federal sumulou que os juros moratórios são incluídos na liquidação da sentença, “embora omisso o pedido inicial ou a condenação” (Súmula nº 254). Geralmente, os juros moratórios são fixados em 1% a.m. Quanto à multa moratória, é ela limitada em 2% pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 52, § 1º[108]), e, assim, nunca haverá abuso por parte do fornecedor, em estipular esses 2%. A existência de tal previsão no Código de Defesa (para e do) Consumidor, denota justamente o que é dito por João Roberto Parizatto sobre o assunto: “[…] se o legislador quisesse excluir alguns casos de inaplicabilidade da regra atinente ao teto máximo da multa moratória, o teria feito expressamente. Não o tendo feito, tem-se que sua aplicação deverá ser geral, sem qualquer restrição”[109].
Por fim, a comissão de permanência (cf. conceito supra, rodapé nº 106), que dos assuntos abarcados pela mora do consumidor é, já se adiantou acima, o mais polêmico, cabe dizer primeiramente que sua cobrança, por si só, é legal. Mas a jurisprudência tratou de limitar sua incidência. A comissão de permanência, para que tenha validade, deve estar expressamente pactuada, sem se cumular, todavia, com juros remuneratórios[110]; juros moratórios[111]; multa[112]; ou correção monetária[113]. Além disso, a comissão de permanência deve ser calculada, consoante o item I da Resolução nº 1.129/1986 do Banco Central do Brasil, “às mesmas taxas pactuadas no contrato original ou à taxa de mercado do dia do pagamento”, ou pela taxa de juros remuneratórios contratada, se esta for menor que aquela[114], mas não por “taxa de mercado” que seja flutuante e arbitrariamente fixada[115].
Esses entendimentos já são consolidados no Superior Tribunal de Justiça, sendo inclusive objetos de quatro Súmulas, as quais devem ser interpretadas em conjunto: “a comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláveis” (Súmula nº 30); “não é potestativa a cláusula contratual que prevê a comissão de permanência, calculada pela taxa média de mercado apurada pelo Banco Central do Brasil, limitada à taxa do contrato” (Súmula nº 294); “os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado” (Súmula nº 296); “a cobrança de comissão de permanência – cujo valor não pode ultrapassar a soma dos encargos remuneratórios e moratórios previstos no contrato – exclui a exigibilidade dos juros remuneratórios, moratórios e da multa contratual” (Súmula nº 472).
O próprio Banco Central do Brasil, por meio da já mencionada Resolução nº 1.129/1986, promulgou o seguinte:
“O BANCO CENTRAL DO BRASIL, na forma do art. 9º da Lei nº 4.595, de 31.12.64, torna público que o CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL, em sessão realizada nesta data, tendo em vista o disposto no art. 4º, incisos VI e IX, da referida Lei, R E S O L V E U:
I – Facultar aos bancos comerciais, bancos de desenvolvimento, bancos de investimento, caixas econômicas, cooperativas de crédito, sociedades de crédito, financiamento e investimento e sociedades de arrendamento mercantil cobrar de seus devedores por dia de atraso no pagamento ou na liquidação de seus débitos, além de juros de mora na forma da legislação em vigor, “comissão de permanência”, que será calculada às mesmas taxas pactuadas no contrato original ou à taxa de mercado do dia do pagamento.
II – Além dos encargos previstos no item anterior, não será permitida a cobrança de quaisquer outras quantias compensatórias pelo atraso no pagamento dos débitos vencidos.”
Segundo pensamos, no caso de um contrato de financiamento de veículo com alienação fiduciária em garantia prever comissão de permanência cumulada, p. ex., com multa, haverá então manobra contratual que vai contra os princípios de defesa e proteção do consumidor. O Juiz da causa deverá manter o quantum que for menos oneroso ao consumidor devedor. É dizer: ou comissão de permanência, ou juros; multa de mora e atualizações.
O chamado “pacto comissório”, em se tratando de direito real de garantia, é vedado pelo Ordenamento Jurídico, que prevê a nulidade de cláusula nesse sentido. “Pacto comissório” seria a cláusula contratual que autorizasse ao credor reter, ficar, com a coisa dada em garantia, em caso de inadimplemento[116]. Neste sentido, o Código Civil de 2002 dispõe ser nula cláusula dessa natureza quando a dívida não for paga no caso de garantias reais de penhor, anticrese e hipoteca em seu art. 1.428, caput, e, mais especificamente, na alienação fiduciária em garantia, art. 1.365, caput. Em ambos os casos, os respectivos parágrafos únicos dos arts. 1.428 e 1.365 possibilitam eventual dação em pagamento, entregando a coisa, após o vencimento, para o credor, resolvendo a obrigação. Note que a dação em pagamento é permitida justamente porque o momento para tanto é posterior à assinatura do contrato, e não significa que o credor terá a coisa + o crédito: ficará com a coisa, resolvendo-se o crédito.
Para Carlos Roberto Gonçalves, a proibição é algo já tradicional do Direito[117], e tem a finalidade de “evitar a usura”[118]. Sílvio de Salvo Venosa, invocando as lições de Washington de Barros Monteiro, aduz que há razões “de ordem moral” para a proibição, porque o credor poderia, com facilidade, “se locupletar da premência do devedor necessitado”; havendo ainda um fundamento – mais aceitável, pensamos – de cunho técnico: como inexiste fixação de preço de mercado para a coisa, ao credor seria cômodo alegar, simplesmente, que o valor da coisa não é suficiente para cobrir o débito[119]. Segundo Paulo Nader o intuito do legislador com a regra em comento é o de evitar potencial e grande desequilíbrio entre os valores do débito e do crédito: “de um lado o pacto seria ofensivo ao princípio constitucional que não permite que alguém seja privado da liberdade de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LXI) e, de outro, poderia caracterizar o enriquecimento sem causa”[120].
Insta salientar que é dificultosa uma pesquisa dessa índole no âmago da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Tal Corte não adentra no seio desses casos concretos, uma vez que eventual pretensão recursal que buscasse reapreciar cláusula que denote pacto comissório não encontra harmonia com as Súmulas 5[121] e 7[122] do STJ[123]. Daí a importância de se debater o assunto abstrata e concretamente, com o auxílio respectivo da doutrina e de julgados dos Tribunais de Justiça e/ou dos Tribunais Regionais Federais. Essa jurisprudência parece tender para o lado que torna nula quaisquer cláusulas comissórias, e não necessariamente em negócios que abarquem garantias reais[124].
A rigor, se se seguir tal entendimento de Paulo Nader, pode-se dizer que há cláusulas genéricas do Código Civil que combateriam esses efeitos do pacto comissório. Diz o art. 884, caput, do Código Civil: “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”, sendo que, “se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido” (parágrafo único)[125]. Mas, ao fim de evitar qualquer interpretação menos precisa, o legislador tratou de inserir dois dispositivos claros que tornam nulo o pacto comissório: nas garantias reais “clássicas” (penhor, anticrese e hipoteca – art. 1.428, caput) e na própria alienação fiduciária em garantia (art. 1.365, caput). Não é sem razão que o art. 884 do Código Civil[126] recebe críticas da doutrina por ser uma cláusula “muito aberta”[127].
O que resta ao credor é a tomada das medidas cabíveis, como a ação de busca e apreensão ou eventual ação pretendendo resolver a obrigação com perdas e danos. Se for o caso de concessão da liminar de busca e apreensão, cumprirá o credor, já com a posse, promover a venda do veículo. O produto dessa venda satisfará o crédito e as despesas de cobrança. Caso haja saldo para o devedor, o valor lhe é repassado. É por essas razões que defendemos acima que a reposta do réu na busca e apreensão deve ser encarada, sempre, como uma contestação e/ou como uma reconvenção, não importando a terminologia utilizada na peça da resposta, mas o seu conteúdo. Como o crédito do credor compreende a parte fixa da obrigação + juros, e sendo o caso de eventual cláusula nula, dentro dos próprios autos da busca e apreensão o assunto será resolvido, tornando mais célere a tutela jurisdicional para credor e para devedor.
É certeira toda e qualquer conclusão que afaste o pacto comissório, ocorra ele explicita ou implicitamente (exemplo: simulação e outras fraudes). Merece ele, sempre, ser coibido[128]. Segundo pensamos, há espaço aqui para mais divagações: o pacto comissório poderá obter plano de equivalência aos efeitos de um instituto de Direito Civil chamado cláusula penal, “pacto acessório pelo qual as próprias partes contratantes estipulam, de antemão, como consequência de sua inexecução completa culposa ou à de alguma cláusula especial ou de seu retardamento”[129]. Nesse sentido, o art. 408 do Código Civil dispõe o seguinte: “incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora”. Como a cláusula pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora (art. 409), admite-se uma classificação na qual se fala que é o caso de multa moratória quando houver mora ou inadimplemento parcial e multa compensatória quando a inexecução obrigacional for total[130]. A primeira já debatemos supra, no subcapítulo 4.1.4. deste trabalho monográfico, de modo que seguimos a tese defendida por Flávio Tartuce: “para os contratos de consumo, o limite para a cláusula penal moratória é de 2% (dois por cento)”, nos termos do art. 52, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor. A questão, agora, gira em torno de casos que abarcam inadimplemento absoluto da obrigação, nos quais o Código Civil prescreve que o valor da cláusula penal não poderá exceder o da obrigação principal (art. 412).
Imagine-se, assim, que o “Sr. Devedor” faça contrato de alienação fiduciária com garantia real com o “Banco S.A.”, adquirindo veículo pelo quantum de R$ 20 mil. Ficou acertado o pagamento de 20 parcelas iguais de mil reais. Já na terceira delas, “Sr. Devedor” fica inadimplente, sendo notificado extrajudicialmente pelo “Banco S.A.”, que ainda lhe move Ação de busca e apreensão (cf. capítulo 3, supra). No contrato, constava ainda cláusula penal que previa uma cláusula penal de 10% das parcelas restantes. Logo, como restavam, ainda, 18 parcelas de mil reais. O resultado disso é o valor de R$ 1.800,00 a título de cláusula penal. Esse tipo de estipulação (= cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação) “converter-se-á em alternativa a benefício do credor”, art. 410 do Código Civil. Neste rápido exemplo, que tem a pretensão apenas de tornar a problemática didática, cremos que o “Banco S.A.” dificilmente se utilizaria dessa faculdade, sendo-lhe mais interessante a manutenção do rito na busca e apreensão, com a consequente venda judicial (ou extrajudicial) do veículo para satisfação do crédito.
Agora, pense-se que, no referido contrato, a cláusula penal era de 90% do valor que seria pago, e que o veículo, antigo e do ano de 1997, perdeu seu valor e seu espaço atual no mercado. Neste percentual via cláusula penal, o “Banco S.A.” seria credor de R$ 16.200,00, que ultrapassa (muito) o valor do próprio carro. Aqui visualizamos a hipótese de um “pacto comissório às avessas”: a cláusula penal acaba sendo, em sua mera formalidade, legal (não ultrapassa o valor total da obrigação), ao passo que o “Banco S.A.” se torna credor de importância de, v. g., 200 ou 300% superior ao valor do carro no mercado. Ora, a finalidade de proibir o pacto comissório não é, justamente, o de “evitar a usura”[131], ou, então, o de vedar – por força constitucional – a privação da liberdade de bens sem o devido processo legal (art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal)[132]? Há histórico na jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo que vale menção, embora não tenha sido o caso de alienação fiduciária em garantia:
“COMPROMISSO DE VENDA E COMPRA. Rescisão. Obrigação de devolução das prestações recebidas. Cláusula penal que prevê descontos compensatórios excessivos. Nulidade. Equivalência a pacto comissório. Retenção de apenas 20%, em tendo ocorrido ocupação da coisa. Restituição de 80% corrigidos. Provimento ao recurso para esse fim. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Aplicação do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor. Rescindindo compromisso de venda e compra de imóvel, deve o promitente vendedor, quando tenha havido ocupação da coisa, restituir, corrigidos, 80% (oitenta por cento) das prestações que recebeu, porque, equivalendo a pacto comissório, é nula a cláusula de perda substancial das parcelas, a título de descontos compensatórios”[133].
Nas situações que soem semelhantes, o Juiz tem o dever de, equitativamente, reduzir a cláusula penal “se a obrigação tiver sido cumprida em parte” ou, ainda, “se o montante da penalidade for manifestadamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio” (art. 413 do Código Civil). É com apego nesse dispositivo que se defende, pois, a tarefa jurisdicional de redução da cláusula penal. Vale o bom lembrete de Flávio Tartuce, que, seguindo os passos de Jorge Cesa Ferreira da Silva, ensina que “o que fundamento o art. 413 do CC é […] a razoabilidade, e não a estrita proporcionalidade matemática”[134], porque o próprio art. 413 leva em consideração a natureza do negócio e seus fins.
Um caminho científico seguro para o Magistrado atender ao “fim” do negócio está em atrelar o assunto à “função social do contrato” (art. 421 do Código Civil), um aspecto inovador do Código Civil de 2002 pelo qual, diz Miguel Reale, há um combinar do “individual com o social de maneira complementar, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções eqüitativas e concretas” [135].
Finalmente, cabe salientar que o art. 1.364 do Código Civil resolve a inadimplência facultando ao credor a venda judicial[136] ou extrajudicial do automóvel. No preço, deve-se aplicar o pagamento do próprio crédito e as despesas de cobrança. Eventual saldo é remanejado ao devedor. O problema, aqui, está no “preço justo de venda”[137], que pode (e deve) sempre ser discutido pelo interessado[138]. O fato de a venda não ser necessariamente judicial abre margem para abusos[139]. Uma forma de demonstrar boa-fé, sendo credor, está em seguir critérios de média de preço nacionalmente aceitos, como no caso da Tabela divulgada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, usualmente chamada de “Tabela FIPE”.
4.1.6. A aplicabilidade da “Tabela Price” ou de outros métodos de amortização
A questão envolvendo a “Tabela Price” ou outras formas de amortização (exemplos: Sistema de Amortização Real Crescente [SACRE]; Sistema de Amortização Constante [SAC]; Sistema de Amortização Misto [SAM] etc.) é mais um campo de grandiosa divergência (nas literaturas contábeis e jurídicas), razão essa que torna o assunto mais um campo de guerra em diversos tipos de negócios e contratos[140]. A primeira grande dúvida que ecoa nos Tribunais pátrios é a de saber se a Tabela Price carrega, em si, juros compostos.
Em julho de 2004, Professores de Economia de grandes Universidades brasileiras[141] e que integravam, à época, o Sindicato dos Economistas de São Paulo (SINDECONSP), escreveram e publicaram o que se chamou de “Declaração em defesa de uma Ciência Matemática e Financeira”:
“Nós, abaixo identificados, professores de matemática financeira, autores de livros e de outros trabalhos sobre essa importante ciência, preocupados com posições equivocadas assumidas por pessoas e entidades, frequentemente divulgadas pela imprensa ou contidas em laudos periciais envolvendo cálculos financeiros, declaramos que a fórmula utilizada para o cálculo das prestações nos casos de empréstimos ou financiamentos em parcelas iguais, de aplicação generalizada no mundo, e que no Brasil é também conhecida por Tabela Price ou Sistema Francês de Amortização, é construída com base na teoria de juros compostos (ou capitalização composta), sendo a sua demonstração encontrada em todos os livros de matemática financeira adotados nas principais universidades brasileiras […]””[142].
Por outro lado, como avisamos, há posições divergentes. Para Obed de Faria Junior, “as condições decorrentes da aplicação da Tabela Price não redundam, consideradas em si, na capitalização de juros e, portanto, não há sentido lógico em combater-se o anatocismo através do afastamento dos resultados da fórmula matemática que decorre do dito sistema de amortização”[143].
O problema dessa falta de encontro de informações está em colocar no Juiz a angustiante dúvida sobre como fazer o seu papel profissional principal: jurisdicionar e, assim, dizer direitos. Um bom Magistrado sempre anseia buscar o justo (aqui compreendido o que é jurídico), e, ao se deparar em suas pesquisas com esses debates quase sempre acalorados, de alto nível crítico e acadêmico, de escritores especialistas no assunto, acabam lidando com teses opostas sem a necessária clareza.
A solução do jurista acaba sendo muito restrita: se apegar ao que é majoritariamente aceito na jurisprudência (principalmente do STJ); às conclusões de eventual perícia judicial; ou, ainda, procurar uma “saída processual” para resolver a lide (eventual revelia, p. ex.).
O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que “a mera utilização da Tabela Price não basta para se comprovar a existência de capitalização ilegal de juros”[144], embora uma franca parcela da bibliografia abarcada pela matemática financeira aduza que “o método de amortização gerado pela TP é tecnicamente perfeito, mas embute o cálculo de juros compostos”, sendo isso “uma constatação científica, e não uma teoria ou um entendimento” [145]. Também tem se ponderado que “as teses que defendem que a Tabela Price não incorpora a teoria dos juros compostos têm se baseado, fundamentalmente, na alegação de que com o pagamento da prestação, os juros vencidos são totalmente quitados; por esta razão não sofrem a incidência de novos juros”, advindo dessa assertiva um “grande equívoco”, já que ocorrem conflitos conceituais em juros devidos Vs. juros vencidos:
“[…] em qualquer modelo de amortização em prestações, o saldo devedor (capital e juros acumulados) só vence (por completo) ao final do prazo contratado (última prestação = vencimento do contrato). O que existe na verdade é uma convenção entre as partes, onde fica definido que o saldo devedor (capital e juros acumulados) será amortizado ao longo do prazo contratado. Por esta mesma convenção cada prestação entraria em mora se não paga da data convencionada e incorreria na cobrança de encargos moratórios[146].
Em uma espécie de “meio termo”, o economista Deraldo Dias Maragnoni defende que “a existência ou não da capitalização composta é consequência da forma de utilização da Tabela Price e não um requisito de sua aplicação”[147]. Parece ser essa a visão do Superior Tribunal de Justiça, que na decisão do Agravo Regimental no Agravo nº 1425074/DF, de relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti (cf. rodapé de nº 144, supra) concluiu que a utilização da Tabela Price, por si só, não serve para comprovar que houve em uma relação jurídica a capitalização ilegal de juros. O Superior Tribunal de Justiça acaba não adentrando nesses “assuntos concretos”, por força das Súmulas nº 5 e 7 (cf. rodapés 121 e 122 e explicações a respeito no subcapítulo 4.1.5. deste trabalho).
A cognição jurisdicional em primeiro grau e em fase de recurso de apelação acaba demandando, assim, uma apreciação de casos concretos, e não (apenas) do Direito Objetivo em jogo. Por tais razões, há, por exemplo, uma parcela da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná que praticamente presume que, necessariamente, na aplicação da “Tabela Price” há capitalização de juros. Talvez por isso se registra uma tendência em afastar a “Tabela Price” dos contratos vinculados ao “Sistema Financeiro de Habitação”:
“Conforme jurisprudência dominante desta Corte, o sistema que orienta a Tabela Price faz com que os juros cresçam em progressão geométrica, o que revela a incidência de juros sobre juros, sendo referida sistemática incompatível com a finalidade dos contratos vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação, sobretudo porque resulta em multiplicação perversa da dívida do mutuário, em contrapartida de vantagem indevida em favor do mutuante”[148].
No referido julgado, pareceu ter havido, no caso concreto, imprópria utilização (= execução) do método Tabela Price, com consequente capitalização indevida[149].
No julgamento do Recurso Especial nº 973.827/RS (2ª Seção do STJ), o voto da Ministra Maria Isabel Gallti levou em conta o aspecto tradicional e histórico da Tabela Price, para quem se trata de “método amplamente adotado, há séculos, no mercado brasileiro e mundial”, e que não lhe parecia favorável aos direitos do consumidor a proibição da Tabela Price para substituí-la por outra fórmula desconhecida[150].
Segundo pensamos, não há problema em se utilizar, contratualmente, a Tabela Price, de modo que coadunamos com os argumentos lançados a respeito da possibilidade de, p. ex., capitalizar os juros remuneratórios[151]: será de rigorosa observância, contudo, que na relação que tiver com os consumidores, constem nos contratos redação expressa, didática e ostensiva de que na relação contratual que ali está sendo criada incidirão juros, “no método Tabela Price” dentre outras especificações. Nessa opinião fica implícito, ainda, que o problema não está na previsão “em abstrato” da Tabela Price: há que se verificar abuso de eventual execução inapropriada dos cálculos.
4.1.7. A questão (i)legalidade das tarifas bancárias e a liminar do STJ no Recurso Especial nº 1.251.331/RS: o futuro do assunto
A viva divergência dos assuntos envolvendo a venda de veículos com alienação fiduciária em garantia (e assim em todos os negócios bancários) também recai em outro ponto que pode ser resumido com a seguinte pergunta: quando o fornecedor cobrar, do consumidor, tarifas como “de Abertura de Crédito / de Cadastro / de Contratação”; TEC; e assemelhadas, está ele afrontando o art. 46 do Código de Defesa do Consumidor[152]?
O Tribunal de Justiça do Paraná vinha decidindo, com frequência, que ali era estabilizado o “entendimento […] que os custos cobrados pelas mencionadas taxas [TAC; TEC; TC etc.] devem ser suportados pela instituição financeira, pois que decorrem da própria atividade desempenhada pela instituição financeira, possuindo, portanto, caráter administrativo” [153]–[154].
Ainda, o Conselho Monetário Nacional, em 22 de novembro de 2007, por meio da Resolução nº 3.517/2007[155], proibiu, desde abril de 2008, expressamente, “às instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil a cobrança de tarifa em decorrência de liquidação antecipada nos contratos de concessão de crédito e de arrendamento mercantil financeiro”. Para fins essencialmente hermenêuticos, vale o argumento de que tal Resolução surgiu justamente por se ter notado que os bancos embutiam, com a TAC/TEC/TC e assemelhadas, valores de comissão de venda pagos a agentes que realizavam a operação[156]. De um lado, oferecia-se ao consumidor uma taxa de juros atrativa. De outro, incluía-se tarifas que encareciam o custo do financiamento total, sendo exemplo típico disso a TAC[157]. Alguns juízes, assim, consideravam que esse lado da “TAC” não podia ser ignorado, ainda mais se se apegar aos nortes mais fundamentais da tutela consumerista[158].
Mesmos argumentos valiam para as precisões contratuais de “serviços de terceiro”, tarifa que fora considerada abusiva porque “transfere à parte hipossuficiente da relação contratual as despesas administrativas inerentes à própria atividade da instituição financeira”[159].
Assim é que as tarifas de contratação e de cobrança bancária foram tidas como abusivas porque se destinavam, em tese, “ao custeio de serviços ínsitos à operação bancária”, e deveriam, nesse compasso, “ser suportados pela instituição financeira”[160].
Todavia, essa linha de raciocínio chegou a perder força no Superior Tribunal de Justiça, onde constam julgados que lidam diferentemente com as tarifas de abertura de crédito (TAC) e emissão de carnê (TEC), “por […] ostentarem natureza de remuneração pelo serviço prestado pela instituição financeira ao consumidor, quando efetivamente contratadas, consubstanciam cobranças legítimas, sendo certo que somente com a demonstração cabal de vantagem exagerada por parte do agente financeiro é que podem ser consideradas ilegais e abusivas”[161]–[162]. Entendemos que, no caso de acolhimento irrestrito dessa última tese na prática forense, o Magistrado não poderá perder de vista que, tais tarifas, se tidas como legítimas, não dispensam a necessidade de estar “efetivamente contratadas” (= escrito, estipulado, pactuado, expresso). Indiretamente, nossa defesa se baseia na recente Súmula nº 44 do Tribunal de Justiça do Paraná, de 22 de novembro de 2012, a qual prevê que “a cobrança de tarifas e taxas pela prestação de serviços por instituição financeira deve ser prevista no contrato ou expressa e previamente autorizada ou solicitada pelo correntista, ainda que de forma genérica”[163].
A discussão chegou a nível tão crítico que, por ordem da Ministra Maria Isabel Gallotti, do próprio Superior Tribunal de Justiça, em sede de liminar no Recurso Especial nº 1.251.331/RS, em decisão datada de 23 de maio de 2013 (acompanhada de esclarecimentos posteriores, de 07 de junho de 2013), estendeu às ações de conhecimento que tramitassem na Justiça Comum a suspensão desses processos, atendendo-se, assim, ao requerimento do FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos), o qual se figura na condição de “amicus curiae”. Segundo a própria decisão, há cerca de 285 mil ações que abrangem o assunto[164], que deveriam permanecer sobrestadas até o julgamento final do representativo da controvérsia.
No fim das contas, decidiu-se, em 30 de agosto de 2013, que era lícita a cobrança de TAC e TEC até 30 de abril de 2008, mas que a partir de então, e graças à vigência da retro mencionada Resolução nº 3.517/2007, não mais seriam admitidas esses encargos, uma vez que tal norma do Conselho Monetário Nacional proíbe, de modo expresso, essa prática.
4.1.8. Cláusulas contratuais que preveem encargos de cobrança e honorários
Alguns contratos de financiamento de veículos com alienação fiduciária em garantia tem previsões que determinam, por razão de eventual inadimplência, a faculdade de o credor cobrar extrajudicialmente honorários advocatícios em “x” por cento sobre saldo devedor ou sobre uma base de cálculo qualquer. Outros instrumentos vão além, e chegam a estipular que, judicialmente, esse valor terá acréscimo de custas processuais, além dos próprios honorários de sucumbência.
Tal previsão é, por evidente, nula, devendo ser afastada em sede jurisdicional[165]. Não é diverso o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, para quem “a competência para a fixação de honorários advocatícios é privativa do magistrado, constituindo-se em cláusula abusiva a que prevê tal providência por parte das instituições financeiras”[166]. A insistência na prática da redação dessas cláusulas, porém, denota que a ideia é desencorajar o consumidor (porque leigo) a ingressar em juízo.
Sobre o assunto, a Portaria nº 4/1998 da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça tipificou como abusiva a cláusula contratual que obriga o consumidor ao pagamento de honorários advocatícios, sem ajuizamento de ação (item 9):
“CONSIDERANDO o disposto no artigo 56 do Decreto nº 2.181, de 20 de março de 1997, e com o objetivo de orientar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, notadamente para o fim de aplicação do disposto no inciso IV do art. 22 deste Decreto;
CONSIDERANDO que o elenco de Cláusulas Abusivas relativas ao fornecimento de produtos e serviços, constantes do art. 51 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, é de tipo aberto, exemplificativo, permitindo, desta forma a sua complementação, e
CONSIDERANDO, ainda, que decisões terminativas dos diversos PROCON’s e Ministérios Públicos, pacificam como abusivas as cláusulas a seguir enumeradas, resolve:
Divulgar, em aditamento ao elenco do art. 51 da Lei nº 8.078/90, e do art. 22 do Decreto nº 2.181/97, as seguintes cláusulas que, dentre outras, são nulas de pleno direito: […]
9. obriguem o consumidor ao pagamento de honorários advocatícios sem que haja ajuizamento de ação correspondente”[167].
Lembre-se, por fim, que a “Secretaria de Direito Econômico” passou a ser o SENACON (Secretaria Nacional do Consumidor), criado em 28 de março de 2012, pelo Decreto nº 7.738/2012, passando a ser abarcada pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC). Esse fato é razão imperiosa para que o conteúdo da Portaria seja encarado como sendo de boa índole interpretativa, junto ao art. 51 do Código de Defesa do Consumidor e ao art. 22 do Decreto nº 2.181/1997.
O trabalho em mesa, embora não tem a pretensão de esgotar o assunto, regista bem a tendência de a alienação fiduciária em garantia substituir as garantias reais aqui chamadas de “clássicas” (penhor, anticrese e hipoteca), uma vez que sua estrutura jurídica na seara do Direito Obrigacional e do Direito das Coisas se mostra vantajosa para credor e para devedor, o que favorece a expansão do crédito e, por conseguinte, o mercado envolvendo veículos automotores. A alienação fiduciária em garantia, porém, chamou para si assuntos que antes não eram consigo relacionados após o advento e a influência do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de financiamento de veículos com esta modalidade de direito real de garantia. A História do Direito se deparou, assim, com realidades antagônicas em um mesmo contexto do Direito negocial: de um lado, o setor bancário, organizado e encorado por tutelas jurisdicionais que lhe são próprias e eficazes (com a explicada ação de busca e apreensão); e de outro, o consumidor, hipossuficiente e com o anseio de uma legislação que pode ser definida como parte do “pós-moderno” jurídico. No meio deste “cabo de guerra”, há o notório papel de outras fontes do direito, que vão desde regulações do Conselho Monetário Nacional e/ou do Banco Central do Brasil até a jurisprudência. Assim é que o Poder Judiciário acabou enfrentando temas que, embora atrelados ao Direito Contratual, acabam extrapolando o próprio seio da Ciência Jurídica, com assuntos das Ciências Matemáticas, Contábeis e Econômicas. Daí o vasto número de ações judiciais com pretensão revisional que ocorrem também, e mesmo que às avessas, nas ações de busca e apreensão dos veículos. A prática forense registra um rol variado desses temas, aí contidos os aspectos atinentes aos juros remuneratórios, capitalização, atualizações e amortizações (v. g. “Tabela Price”), despesas moratórias, taxas de caráter bancário e aspectos do direito consumerista. Em verdade e ao que parece, os problemas parecem se reduzir em uma faceta que é dual aos contratos bancários: i) as formas das redações desses instrumentos, o que acaba levando em conta a maneira, a didática e a clareza das disposições que as partes celebram; e ii) na viva divergência que parece migrar da literatura contábil para a jurisprudência. O mérito da pesquisa está em desenvolver uma política legislativa, no sentido de auxiliar o Legislador e, principalmente, o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central do Brasil a tentar regular as matérias com maior precisão e, também, como ferramenta de auxílio metodológico para que os Juízes encarem cada situação com a atenção que um caso concreto merece em sua vasta particularidade.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Pichioli da Silveira
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá/PR. Assessor de Juiz de Direito Tribunal de Justiça do Paraná