Os Critérios Diferenciadores Entre a Mera Inadimplência do ICMS Recolhido em Operações Próprias e a Apropriação Indébita Decidida pelo STF no RHC 163.334

Anderson Torquato Scorsafava

Resumo: O enunciado da tese firmada pelo STF no RHC 163.334 terá repercussões relevantes no meio empresarial, na situação financeira dos cofres públicos estaduais e no próprio Poder Judiciário visto que houve a criminalização do não recolhimento do ICMS apurado em regime próprio quando ocorrer de forma dolosa e contumaz. Há  diferenças entre os julgados do STF e o proferido no HC 399.109 pelo STJ que tratam do mesmo tema. Os requisitos para a configuração do crime de apropriação indébita e sua diferenciação da conduta do mero inadimplemento são o tema do presente artigo.

Palavra-chave: Apropriação indébita, mera inadimplência, contumácia, dolo.

 

Abstract: The pronouncement of the STF decision in RHC 163.334 will have relevant repercussions on the business environment, on the financial situation of the state public coffers and on the Judiciary itself, as there was a criminalization of the non-payment of ICMS calculated in its own regime when it is intentional and persistent. There are differences between the judged of the STF and the one given in HC 399.109 by the STJ that deals with the same theme. The requirements for configuring the crime of misappropriation  and its differentiation in the conduct of mere default are the subject of this article.

Keywords: misappropriation, mere default, contumacy,deceit.

 

Sumário: Introdução. 1.  A literalidade da tese do STF e ementa do STJ. 2.  Análise do Ementa do HC 399.109 do STJ e Fundamentações do Ministro Relator. 2.a) Da irrelevância do registro, apuração e declaração do imposto recolhido e a consumação do tipo pela conduta omissiva.2. b) Do sujeito ativo do crime e do elemento subjetivo da conduta.2.c) Dos termos “cobrado ou descontado” a limitar o sujeito ativo do crime.2.d) Da origem histórica dos termos “cobrado” ou “descontado.2.e) Do tratamento Isonômico do Contribuinte e do Substituto tributário.2.f) Da exclusão de ilicitude e comprovação do dolo em inquérito judicial.3. Da elementar “contumácia” acrescida pelo STF.4. As motivações dos Ministros do STF. Conclusão.Referências.    

            

Introdução

A configuração da apropriação indébita tributária  sempre causou divergências no meio doutrinário e jurisprudencial, principalmente, em relação aos impostos envolvidos e  à sujeição ativa do crime previsto no art. 2º II da Lei 8.137/90

O julgamento do HC 399.109 no STJ pela Terceira Seção unificou os entendimentos contrários emanados da 5ª e 6ª turmas. Esta se posicionava no  sentido que apropriação indébita se constituia apenas nos casos de substituição tributária e  não alcançava os tributos devidos pelo próprio contribuinte. Aquela firmava a compreensão de  sujeição passiva da obrigação  tributária poderia ser atribuída ao substituto  tributário,  nos impostos  diretos, ou,  ao contribuinte, nos tributos indretos. Esta foi a tese que prevaleceu na Terceira Seção.

Pelo entendimento firmado no STJ,  o  contribuinte será sujeito ativo do crime de apropriação  quando não recolher o tributo cujo ônus financeiro houver  sido repassado ao adquirente da mercadoria ou serviço. Nesta sistemática, o valor do tributo pertence ao Estado, atuando o comerciante como mero intermediário. A carga tributária embutida no preço do produto, não se integra ao patrimônio do contribuinte, não se subsume ao conceito de receita ou faturamento estabelecidos pelo Direito Privado.

O STF, enfrentou a questão no RHC 163.334 e confirmou o julgado do STJ, porém, acrescentando que o crime somente se aperfeiçoaria se houvesse a  elementar “de forma contumaz”. O conceito jurídico de  contumácia ainda requer construção mais sólida na jurisprudência e na doutrina, sendo o tema objeto de discussão legislativa.

A tese firmada pacifica a divergência jurisprudencial até então existente. A conduta prevista no art. II da Lei 8.137/90 aplica-se ao não recolhimento de impostos indiretos de responsabilidade do contribuinte. Porém, do enunciado, surgem novos questionamento sobre sujeição passiva do crime, o tipo de dolo requerido, a existência de excludentes de ilicitudes e a elementar contumácia. Além disso, se a conduta não se adequar às exigências do tipo penal,  então se estará diante de mero inadimplemento de tributos, conforme súmulas 430 e 435 do STJ. Destarte,  o real questionamento que se apresenta  é diferenciar o mero  inadimplemento da apropriação indébita tributária.

 

1. A literalidade da tese do STF e ementa do STJ

A tese fixada pelo STF no RHC 163.334 foi a seguinte:

“ O contribuinte que, de forma contumaz, e com dolo de apropriação, deixa de recolher ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, incide no tipo penal do artigo 2, inciso 2, da Lei 8.137. ” (grifo nosso)

O  Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC 399.109 redigiu a seguinte ementa:

HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS POR MESES SEGUIDOS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA.ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. DECLARAÇÃO PELO RÉU DO IMPOSTO DEVIDO EM GUIAS PRÓPRIAS. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. TERMOS “DESCONTADO E COBRADO”. ABRANGÊNCIA.TRIBUTOS DIRETOS EM QUE HÁ RESPONSABILIDADE POR SUBSTITUIÇÃO E TRIBUTOS INDIRETOS. ORDEM DENEGADA.

  1. Para a configuração do delito de apropriação indébita tributária – tal qual se dá com a apropriação indébita em geral – o fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não pressupõe a clandestinidade.
  2. O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido. A motivação, no entanto, não possui importância no campo da tipicidade, ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial.
  3. A descrição típica do crime de apropriação indébita tributária contém a expressão “descontado ou cobrado”, o que, indiscutivelmente, restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, porquanto nem todo sujeito passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou contribuição social responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei n.8.137/1990, mas somente aqueles que “descontam” ou “cobram” o tributo ou contribuição.
  4. A interpretação consentânea com a dogmática penal do termo “descontado” é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo “cobrado” deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito.
  5. É inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como ocorreu no caso. Eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar há que ser esclarecida com a instrução criminal.
  6. Habeas corpus denegado.”

 

2.  Análise do Ementa do HC 399.109 do STJ e  Fundamentações do Ministro Relator

            Percebe-se pela literalidade do ementa do HC 399.109 ou do voto do relator que o STJ se debruçou sobre os temas envolvendo:

 

  1. a) a irrelevância da declaração do imposto recolhido e a consumação do tipo pela conduta omissiva;
  2. b) a identificação do  sujeito ativo do crime e do elemento subjetivo da conduta;
  3. c) a definição jurídica dos  termos “cobrado ou descontado” a limitar o sujeito ativo do crime;
  4. d) o histórico da expressão “ descontado ou cobrado”;
  5. e) o tratamento isonômico do contribuinte e do substituto tributário;
  6. f) a exclusão de ilicitude e comprovação do dolo em inquérito judicial.

Do voto do Ministro Relator Rogério Schietti Cruz se extrai os fundamentos essenciais para compreensão do tipo penal.

Inicialmente, o Ministro esclarece que o crime de apropriação indébita assemelha-se ao previsto no art. 168 do CP e  somente pode ocorrer com coisas móveis fungíveis e infungíveis, estas conforme preceituado no  art. 85 do CC).  Acrescenta ao tipo o  elemento normativo “coisa alheia” compreendida como coisa de propriedade atual de outrem, que não o agente do crime. Enfim, conclui que  “somente os bens móveis infungíveis podem ser objeto de apropriação indébita, na medida em que o agente, ao receber bem alheio móvel fungível em depósito não se apropria de algo que se tornou proprietário”.

            Entretanto, ele abre um a exceção para as coisas fungíveis que são entregues não para depósito mas para serem transferidas a terceiro. Neste caso, o apoderamento de  coisas fungíveis pode  suscitar a apropriação indébita. E, amparado, por decisões do STF e STJ, firma a compreensão de que “estará configurado o crime de apropriação indébita, quando o agente se apropria de coisa fungível que lhe foi confiada para transmissão a terceiro ou para outra finalidade que não o depósito” (grifou-se).

Efetua-se, na sequência, a análise individual dos itens da ementa:

 

2.a) Da irrelevância da declaração do imposto recolhido e a consumação do tipo pela conduta omissiva

            O item 1 do acórdão do STJ refere-se à irrelevância da declaração do imposto inadimplido visto que a “clandestinidade” não constitui elementar do tipo penal. Em verdade, a apropriação indébita em comento é crime formal aperfeiçoando-se com a conduta típica omissiva de “ deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontando ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. (art.2º-II- da Lei 8.137/90). Não exige a ocorrência do resultado para sua configuração como os crimes previstos no artigo 1º da referida lei.

Nesse sentido, abordando a conduta tipificadora da apropriação indébita leciona  LOVATTO  (2008,pág.129):

“A reprovabilidade não se situa no não-pagamento da dívida, mas na conduta de quem, por obrigação legal, cobra ou desconta o tributo e não o recolhe a quem de direito, ficando com aquilo que não lhe pertence. Daí que não se trata de penalização por dívida, mas, à semelhança da apropriação indébita, da conduta do agente  penalmente relevante”.

Na mesma esteira, defendendo a configuração do crime mediante a simples conduta DECOMANIN (2010, pág.360):

“O puro e simples não recolhimento do ICMS  pelo contribuinte figura o crime   previsto pelo art. 2º, II, da Lei 8.137/90.(…)

“Numa primeira abordagem, de cunho eminentemente econômico, deixando de parte discussões doutrinárias sobre os tributos conhecidos como diretos e indiretos, e levando em conta apenas o aspecto econômico a partir do qual são conceituadas essas espécies, ou seja, atentos ao fato de que existem tributos cujo ônus é imediatamente repassado pelo contribuinte a terceiro, em contrapartida a outros em que tal não ocorre, e sabendo-se que o ICMS inclui-se na categoria dos indiretos, ou seja, daqueles cujo montante é cobrado pelo contribuinte ao adquirente dos produtos tributados, encontrando-se a incidência tributária previamente embutida no próprio preço da mercadoria vendida, conclui-se que o não recolhimento do ICMS no prazo previsto pela legislação implica a ocorrência desse crime.

O contribuinte efetivamente repassou ao adquirente da mercadoria tributada o ônus representado pelo ICMS. Cobrou-o, portanto, a terceiro, devendo recolher aos cofres públicos o montante assim apurado.Se não o faz, comete crime examinado”(grifo nosso)

 

De ressaltar-se que para a configuração da fraude, sonegação e conluio há de se perquerir sobre a clandestinidade da conduta, a intenção de ludibriar a autoridade fiscalizadora. Tal exigência não se faz presente nos crime preceituados no artigo 2º da Lei 8.137/90. Acrescente-se, ainda, que se houver omissão da declaração haveria o crime de sonegação previsto no  art. 1º da citada com agravavamento da pena no intervalo de 02 a 05 anos. Se a pena ultrapassar os 04 anos ou houver reincidência, há impedimentos à substituição da pena de prisão por restritiva de direitos. Por tais razões, se conclui que não há benefícios para aquele contribuinte que opta por não declarar, bem como, que haverá incremento da sonegação com o julgado em exame.

 

2.b) Do sujeito ativo do crime e do elemento subjetivo da conduta

            Tem-se como pessoa legitimada a cometer a apropriação o sujeito passivo da obrigação tributária que tanto pode se originar da relação direta  com o fato gerador (contribuinte)   ou indireta (responsável tributário), com responsabilidade/dever atribuído por lei, em função de relacionamento com o contribuinte ou com fato gerador. (arts. 121 do CTN).

No caso sub examine, não se está se referindo ao  substituto tributário (art. 155-CF) mas àquele que repassou o ônus do tributo, cobrando do adquirente, na qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, mas não pagou ao Fisco. A apropriação indébita tributária perpetrada por substituto tributário ou responsável tributário já não suscitava dúvidas em sua aplicação.

É cediço que haverá a penalidade administrativa imposta pela própria Administração Pública consistente, de modo geral, em pecúnia (multa) e obrigação de fazer direcionada a pessoa jurídica. Já a penalidade criminal é competência do Poder Judiciário será direcionada ao agente pessoa física do sócio-administrador, com ciência do ilícito e poder diretivo na sociedade empresária, responsável pelo não recolhimento do tributo aos cofres públicos.

Aplicam-se a estes os mesmos critérios identificadores de responsabilidade tributária por infrações previstos nos artigos 134 e 135 do CTN observando-se os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários já consolidados em relação ao tema. Não houve inovação neste campo.

Diga-se, em relação ao elemento subjetivo da conduta, que não se exige dolo específico para configuração do ilícito, sendo bastante o dolo genérico. Destarte, não havendo exclusão de culpabilidade, motivos de caso fortuito ou força maior, inexigibilidade de conduta diversa ou  erro de proibição, bastará a ocorrência da omissão do repasse para tipicidade do crime. De ressaltar-se que mera dificuldade financeira da empresa não é suficiente para configurar a exclusão da culpabilidade, segundo o STJ. Porém, neste item específico, o STF exige  o comportamento reiterado da conduta inadimplente.

A conduta omissa do contribuinte em não recolher o imposto que reteve do adquirente é o que configura o elemento dolo exigido para a tipificação do crime. Pode pagar, mas não o faz.

 

Segundo EISELE (2002, pág. 175):

 

O art. 2º, II, da Lei 8.137/90, descreve a evasão tributária não fraudulenta (inadimplência) de tributos indiretos ou devidos por agentes de retenção. Trata-se de situação vulgarmente conhecida por “apropriação indébita tributária”. (…) Tal identificação decorre do fato de que, nos tributos indiretos (aqueles nos quais o contribuinte transfere sua repercussão financeira para terceiro), o sujeito passivo da obrigação tributária pode cobrar (ou, eventualmente, receber) de terceiro, a carga econômica correspondente ao valor do tributo, motivo pelo qual não suporta (em tese) seu custo (mediante o mecanismo da repercussão. Exemplo dessa situação ocorre no ICMS, eis que o contribuinte, ao vender uma mercadoria, destaca na nota fiscal o valor correspondente ao imposto que integrará o preço que será pago pelo adquirente. Nessa relação, o comprador é denominado (de forma aleatória) como “contribuinte de fato”, porque pagará ao vendedor o valor representativo do ICMS contabilmente incluído no preço, embora não sejam efetivamente, contribuinte do tributo, pois o único sujeito passivo da obrigação tributária é o vendedor, denominado (também de forma ilustrativa) como “contribuinte de direito”. Caso o contribuinte (vendedor) receba o preço da mercadoria (no qual se encontra inserido o valor correspondente ao ICMS) pago pelo adquirente e não efetue o recolhimento do tributo no prazo legalmente estabelecido, estaria, em tese, obtendo uma vantagem econômica ilícita decorrente do recebimento de um valor que deveria repassar aos cofres públicose que manteve em seu âmbito de disponibilidade.”

 

Sobre a inexigibilidade de dolo específico, o seguinte julgado do STJ:

 

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/1990. INADIMPLEMENTO. SÓCIOGERENTE. FALTA DE REPASSE DE ICMS DECLARADO EM REGIME DE SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. CONDUTA TÍPICA. TIPO PENAL QUE  NÃO EXIGE ESPECIAL FIM DE AGIR. RECURSO NÃO PROVIDO.

  1. Não há falar em atipicidade da conduta quando, nos termos do art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990, o acórdão impugnado estabeleceu que o réu, gerente na empresa da qual era sócio e agindo como substituto tributário, deixou de repassar aos cofres públicos ICMS descontado de terceiro.
  2. Para afastar as premissas fáticas do acórdão e acolher a tese de que houve mero inadimplemento de tributo próprio, seria necessário o reexame de fatos e provas, inviável no recurso especial, principalmente quando a questão não foi suscitada nem sequer por meio de embargos de declaração e, por tal motivo, deixou de ser previamente debatida pelas instâncias ordinárias.
  3. O tipo penal previsto no art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990 não exige elemento subjetivo específico, mas apenas o ato voluntário de deixar de repassar ao fisco o valor do tributo descontado ou cobrado de terceiro na qualidade de sujeito passivo da obrigação, ainda que declarado, sendo irrelevante o especial fim de se apropriar de tal numerário ou de obter proveito particular com o crime.
  4. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 772.503/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 18/02/2016, DJe 29/02/2016)” (grifo nossol)

 

Veja-se o recorte do voto do Ministro tratando da ausência de clandestinidade e  e da caracterização do elemento subjetivo ( dolo):

 

“Outro aspecto relevante diz respeito ao fato de que, na apropriação indébita, inexiste clandestinidade (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal,parte especial, v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 421), fraude ou qualquer outro ardil. Assim, o pressuposto do referido delito “é a anterior posse lícita da coisa alheia, da qual o agente se apropria indevidamente”(BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial, v. 3.São Paulo: Saraiva, 2003, p. 236).

Por fim, o sujeito ativo do delito é aquele que possui ou detém o bem móvel alheio. O elemento subjetivo é o dolo, caracterizado pela vontade livre e consciente de apropriar-se da coisa alheia móvel de que tem a posse em nome de outrem, ou seja, a vontade de não restituir ou de desviá-la de sua finalidade. Nas palavras de Magalhães Noronha, “[c]onsiste o dolo genérico na vontade de inverter o título, pelo qual se tem a posse ou a detenção,transformando-se de possuidor alieno domine em possuidor animus domine”(Direito Penal, vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1988-1991, p. 334).”

 

2.c) Dos termos “cobrado ou descontado” a limitar o sujeito ativo do crime

O artigo 2º-II da Lei 8.137/90 traz o seguinte enunciado:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (…)

II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de ‘’contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos” (grifo nosso).

O termo “descontado” é adotado peros jurisconsultos quando da existência do instituto da substituição tributária, sistemática pela qual a lei atribui a um integrante do arranjo produtivo (substituto/substituinte)   o dever de arrecadar tributo devido pelos demais contribuintes (substituídos). É dizer, o  agente substituto “desconta” o imposto devido pelos demais contribuintes (substituídos) que ocupem posição anterior ao fator gerador (substituição regressiva ou “para trás”) ou posterior ( substituição progressiva ou “para frente”).

Já o termo “cobrado” na nova acepção jurisprudencial refere-se ao repasse do ônus financeiro de trituto indireto  ao adquirente da mercadoria ou serviço. Nos casos de tributos indiretos, é o consumidor quem paga de forma efetiva o referido valor. Arca com a repercussão econômica no preço do produto.

No caso do ICMS, os integrantes da cadeia produtiva embutem os custos, despesas e margem de lucro no preço de revenda, que pela própria natureza da mercancia, pressume-se mais elevado que o valor da aquisição. Embora o comerciante seja o contribuinte do imposto, ele atua apenas como mero arrecadador em nome do Estado, cobrando (retendo) o tributo para posterior envio aos cofres públicos.

Nos impostos indiretos não há coincidência nas figuras do contribuinte de direito (comerciante) e contribuinte de fato (adquirente). O repasse do ônus financeiro do tributo é essencial para tipificação do crime.

Nesse sentido, colaciona-se a lição de  LOVATTO (2008, pág. 128):

“Deve haver, para tipificar-se o fato, que o contribuinte tenha o dever legal de cobrar ou descontar quando a obrigação tributária seria daquele de quem se cobra ou desconta. Antecipa-se a cobrança ou o desconto. No caso do ICMS, o contribuinte de fato não deve o ICMS. A obrigação é do contribuinte de direito, com exceção, com se disse, da substituição tributária. (…)  Aquilo que é cobrado ou descontado não o é do contribuinte de fato, mas, tecnicamente, só se cobra ou se desconta de contribuinte de direito. E esta conduta é exercida em nome da pessoa jurídica de direito público por dispositivo legal, daí por que o substituto tributário (e não o consumidor) tem a obrigação de cobrar ou descontar o tributo e recolhê-lo aos cofres públicos. Se o tributo foi cobrado e  não recolhido, configurou-se o delito.

E se o tributo não foi cobrado ou descontado, configura-se o delito? O tipo penal não é deixar de recolher tributo que deveria ser cobrado, mas a qualidade do tributo que deixa de ser recolhido é de tributo cobrado ou descontado.

Consequentemente, se o tributo não foi cobrado, nem descontado, embora pareça estranho, não se configura o delito. Haverá ilícito tributário, contudo o ilícito penal não se configura por ausência de elementar fundamental.

Interpretação diversa funda-se num equívoco consistente em adotar a esfera penal para cobrança de tributo. Esta deve ficar restrita à execução fiscal. (…).” (grifo nosso)

 

Mais um vez,  recorre-se ao voto do  Ministro Relator Rogério Schietti Cruz no HC 399.109,  para  uma acepção mais acurada da  expressão “descontado ou cobrado” e sua conexão com a autoria do ilícito a partir da atribuição da capacidade ativa tributária do Estado para o contribuinte. Nesse sentido: :

 

Os termos “descontado ou cobrado” não correspondem,tecnicamente, ao fenômeno tributário originado pela relação jurídica que serve de substrato para a conduta descrita no tipo penal. Com efeito, nenhum sujeito passivo de obrigação tributária (direto ou indireto) “desconta ou cobra” tributo; na verdade, ele retém.

 

Sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento. A capacidade tributária ativa é a aptidão para figurar, por lei, na posição de sujeito ativo da relação tributária, ou seja, na posição de credor, com as prerrogativas que lhe são inerentes de fiscalizar o cumprimento das obrigações pelos contribuintes e de cobrar os respectivoscréditos tributários.

 

Há casos em que o Poder Público permite que o particular arrecade o tributo, sem que isso represente delegação da capacidade ativa tributária, já que o particular, nessa condição, apenas procede à exação (retenção).

 

Diante disso, é correto afirmar que somente o sujeito ativo da obrigação tributária é que pode cobrar tributo, cabendo ao agente de arrecadação, tão somente, a sua retenção para posterior recolhimento ao Fisco. Tal percepção tributária do termo “cobrar” descrito no tipo penal do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, acaba por se traduzir em uma deficiência de técnica legislativa na redação do dispositivo, porquanto sujeito passivo jamais cobra tributo.”

 

Sobre o termo “descontado”o Ministro esclarece que  o sujeito passivo da obrigação tributária na qualidade de substituto tributário retém tributo, não desconta “absolutamente nada” e recorre ao parágrafo único do  art. 158 do CTN para exemplificar que a ideia de desconto, advém da possiblidade do Estado, quando autorizaodo por lei, de conceder abatimentos nos casos de pagamento antecipado do crédito tributário. Outra possibilidade, segundo ele,  é tomar a palavra “descontado” como significado de diminuído, abatido, ou reduzido. Assim, o empregador abate/reduz/desconta/ o Imposto de Renda de seus empregados. E conclui: “ o termo “descontado” refere-se às operações tributárias que resultem diretamente na redução do valor a ser percebido pelo contribuinte que não pode repassar para outrem o ônus tributário.”

Jà o termo “cobrado”, continua o Ministro, remete à idéia de acréscimo, de adição. Segundo ele, “ essa percepção é apreendida nos tributos indiretos, cuja incidência acarretará o aumento do valor do produto a ser suportado pelo contribuinte de fato.” E exemplifica mais adiante:

 

“A título de exemplo, menciono o ICMS. O produtor, ao iniciar a cadeia de consumo, recolhe o imposto sobre operações próprias e é reembolsado desse valor com a transferência do encargo para o atacadista que, por sua vez, o transfere para o varejista e que, por fim, repassa para o consumidor final. Veja-se que nessa hipótese, mesmo no caso do ICMS incidente sobre operações próprias, o produtor “cobra” (é reembolsado pela retenção) do próximo adquirente do produto na cadeia de produção, até que o consumidor final, após sucessivas transferências de encargo, suporte o ônus de pagar o valor correspondente ao ICMS, que será acrescido ao valor final do produto”.

 

Após as ponderações acima, conclui o Ministro:

 

Assim, o significado da palavra “desconto” melhor se amolda, sob o prisma penal, aos casos de tributos diretos em que há a responsabilidade por substituição tributária (nas hipóteses em que o responsável pela retenção na fonte não recolhe o tributo). O termo “cobrado”, por sua vez, deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos, mesmo aqueles realizados em operações próprias, visto que o contribuinte de direito, ao reter o valor do imposto ou contribuição devidos, repassa o encargo para o adquirente do produto.”

Assim, em se tratando de  impostos indiretos, somente aquele  que “cobra” ou “desconta” tributo, por força de lei. pode ser o agente ativo do crime de apropriação indébita, se não efetua o recolhimento ao Estado no prazo legal, com dolo de apropriar-se da quantia

Conclui-se que  sujeito ativo do crime previsto no 2º-II da Lei 8.137/90, é constribuinte  de direito, sujeito passivo direto da obrigação tributária, que deixa de recolher tributo indereto retido (cobrado)  do adquirente do produto mercadoria ou serviço, de forma reiterada e com dolo de apropriação do que não lhe pertence.

 

2.d) Da origem histórica dos termos “cobrado” ou “descontado”

O projeto de lei elaborado pelo Poder Executivo e protocolado na Câmara dos Deputados sob o nº Lei 4788-B,  tendo como relator o deputado Nelson Jobim, tinha a seguinte redação original:

 

“Art..2º Constitui, ainda, crime contra a administração tributária:

 

IV- deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguintes ao término do prazo fixado, tributo ou contribuição que tenha retido na fonte;

 

V- deixar de recolher aos cofres públicos, nos sessenta dias seguintes ao término do prazo fixado, tributo ou contribuição recebido de terceiros mediante acréscimo ou inclusão no preço do produto ou serviços cobrados na fatura, nota fiscal ou documento assemelhado.” (grifou-se)

 

O Dep. Relator justificou a fusão dos incisos IV e V com base no princípio da legalidade penal e ausência de clareza na redação dos tipos penais e exemplificou:          “Assim, os modelos surgem imperfeitos ou, por demais, abertos (por exemplo art. 1, V; art. 2, V; art. 6, VIII). Ora a descrição surge vazia de conduta, socialmente desaceita; ora o comportamento proibido vem incompletíssimo.”

Muitos  juristas se valem da supressão do  inciso V para fundamentar que o objetivo do legislador era penalizar a conduta  de não recolher tributo indireto “cobrado” do adquirente.  No mesmo raciocínio, no inciso IV o fim era coibir o não recolhimento de imposto “descontado” ou retido de outro contribuinte.

Porém, pode-se concluir  que a fusão de ambas as condutas na expresão “cobrado ou descontado” resultou em maior discussão jurídica. Entende-se que a redação original era mais clara na definição dos tipos penais.

 

2.e) Do tratamento Isonômico do Contribuinte e do Substituto tributário

Os sujeitos passivos da relação tributária estão previstos no art. 121 do CTN e nos remete ao tema da responsabilidade tributária, inclusive aquela decorrente do cometimento de infrações. Veja-se a lição de renomados doutrinadores sobre o assunto:

Na doutrina de CASSONE (2018, pág.222):

No direito tributário, a expressão “responsabilidade tributária” é tomada em sentido estrito, com base no art. 121 do CTN, que define o sujeito passivo da obrigação tributária principal como sendo a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária, sendo qualificado como:

I –contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fatogerador;

II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra dedisposição expressa de lei.

Contribuinte é o sujeito passivo direto. Responsável é o sujeito passivo indireto”.

Mais adiante , o Autor tratando sobre responsabilidade tributária por substituição assim se manifestou:

Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário à terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.”

 

Pela simples leitura, percebe-se que a lei pode excluir o contribuinte do pagamento do tributo, para atribuir essa responsabilidade a uma terceira pessoa, desde que vinculada ao fato gerador.

 

“Terceira” (art. 121, II), porque primeira pessoa é o Fisco (art. 119) e segunda pessoa é o contribuinte (art. 121, I). Pode reunir a qualidade de terceira pessoa, de conformidade com o que dispuser a lei de imposição tributária: o pagador, o doador, o adquirente, o transportador, o armazenador, o depositário, o consignatário etc.

 

            Assim, a teor do art. 128 do CTN, responsabilidade tributária por substituição ocorre quando, em virtude de disposição expressa em lei, a obrigação tributária surge desde logo contra uma pessoa diferente daquela que esteja em relação econômica com o ato, fato ou situação tributados. Nessa hipótese, é a própria lei que substitui o sujeito passivo direto pelo sujeito passivo indireto.”

 

Caliendo (2019, pág. 489), tratatando sobre a distinção entre contribuinte e responsábel tributário, traz valioso ensinamento sobre o função exercida pelo consumidor quando o tributo envolvido é indireto. Veja-se:

 

“A distinção entre contribuinte e responsável tem sido apontada como duas formas de sujeição passiva: direta e indireta. Seria sujeito passivo direto o contribuinte que possui relação direta com o fato gerador, e seria sujeito passivo indireto o responsável que possui uma relação indireta com o fato gerador, permeada pela lei que lhe atribui em virtude do vínculo com o sujeito passivo direto (contribuinte).

Apesar de essa distinção ter se afirmado na doutrina601, entendemos que a distinção pode conduzir a equívocos. O primeiro seria a sua confusão com o sujeito passivo em tributos indiretos, em que existe uma cisão entre o contribuinte de fato e de direito. No caso, o sujeito passivo será o contribuinte de direito que reflexamente atinge o patrimônio de um terceiro, denominado de contribuinte de fato, que sofre o encargo econômico. Nos tributos indiretos, pode existir ainda a presença de um sujeito passivo indireto, ou seja, de um responsável que atua por substituição ou transferência em relação ao contribuinte de direito e que difere igualmente do contribuinte de fato. Assim nós teríamos a situação da presença de sujeitos passivos diretos e indiretos em tributos indiretos.”

Ainda sobre sujeição passiva, PAUSEN (2019,pág.211 ) aborda a questão do condumidor:

Não constitui sujeito passivo o mero pagador que, por liberalidade, paga tributo em nome de outrem. Também não é sujeito passivo o chamado contribuinte de fato, a quem é diretamente transferido o ônus econômico do tributo mediante destaque expresso do valor devido na operação, mas que não está obrigado ao pagamento e não pode ser demandado pelo Fisco. Por fim, tampouco pode ser considerado sujeito passivo o contribuinte econômico, ou seja, aquele que suporta mediatamente o ônus da tributação

 

Destaque-se que doutrinares renomados e parte da juriprudência consideravam que apenas o substituto tributário incidia em crime de apropriação indébita quando “descontava” o tributo do substituído e não recolhia a quantia correspondente ao Fisco..

Nesse caminhar, PAUSEN (2019, pág.709):

 

A  apropriação indébita tributária está estritamente relacionada à substituição tributária. Dá-se quando o substituto, ao realizar um pagamento ao contribuinte, procede à retenção do tributo devido por este último, porque a lei assim lhe determina, mas deixa de cumprir a obrigação de repassar tal montante aos cofres públicos. Ou seja, retém do contribuinte em nome do Fisco e se apropria dos valores em vez de dar-lhe a destinação legal. Também ocorrerá quando a regra matriz de substituição tributária determine que o substituto exija do contribuinte o montante do tributo para repassar aos cofres públicos e deixe de ser feito tal repasse.”

 

Desta forma, não apenas o substituto tributário pode ser o agente ativo do crime, podendo o contribuinte cometer ilícito penal nos casos de tributos indiretos, repassando o ônus financeiro ao adquirente e não recolhendo o  imposto ao Fisco com consciência do ilícito. Porém, existe uma diferenciação marcante entre contribuinte e substituto tributário. Aquele precisa agir com contumácia, segundo o STF. Este basta uma só conduta omissiva consistente no não recolhimento do imposto para responder pelo crime.

 

2.f) Da exclusão de ilicitude e comprovação do dolo em inquérito judicial

A autoridade fiscal, ao deparar-se com um ilícito penal tributário, aplicará penalidade administrativa consistente em multa pecuniária e/ou obrigação de fazer  e efetuará a notificação ao  Ministério Público para que este inicie a ação penal incondicionada objetivando a apuração dos fatos e criminalização da conduta. Caberá ao Ministério Público produzir provas de que a conduta é típica e antijurídica e averiguar a inexistência de causas extintivas da ilicitude.

No ICMS próprio, o lançamento ocorre por homologação. Logo, o próprio contribuinte informa no Livro Registro de Apuração do ICMS e o declara  na Guia de Informação e Apuração do ICMS e/ou DIME – Declaração do ICMS e do Movimento Econômico. Estes documentos comprovam  que o fato gerador e a transação financeira do recebimento se efetivaram. São provas da concretização do negócio e não meras expectavias de vendas. Provam que o ICMS foi incluso no preço da mercadoria/serviço.

Em não havendo causas excludentes de ilicitude, o conjunto probário citado  é sufiente para comprovar a conduta omissiva e o dolo subjetivo genérico visto tratar-se de  tipo penal que se aperfeiçoa com a simples omissão pelo contribuinte no repasse ao fisco do imposto cobrado.

Nesse entendimento, o julgado do TJSC, em consonância com o STJ, elenca  como excludentes de culpabilidade a inexibilidade de conduta diversa:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 2º,II, DA LEI 8.137/90, POR OITO VEZES, EM CONTINUIDADE DELITIVA. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PREJUDICIAL DE MÉRITO. PLEITEADO O RECONHECIMENTO DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, II, DA LEI 8.137/90, ANTE A PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL DE PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA.DESCABIMENTO. FALTA DE RECOLHIMENTO DE IMPOSTO ELEVADO À CATEGORIA DE CRIME. PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE QUE NÃO SE CONFUNDE COM PRISÃO CIVIL. CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA. ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DESTA CÂMARA.MÉRITO. PLEITEADA ABSOLVIÇÃO DIANTE DA NÃO COMPROVAÇÃO DE QUITAÇÃO DAS OPERAÇÕES ECONÔMICAS TRIBUTADAS. DISPENSABILIDADE. DECLARAÇÕES RELATIVAS AO ICMS QUE SÃO PRESTADAS PELA PRÓPRIA EMPRESA. SUSTENTADA A  TIPICIDADE DA CONDUTA, SOB O FUNDAMENTO DE QUE A OMISSÃO NO RECOLHIMENTO CONSTITUI MERO INADIMPLEMENTO TRIBUTÁRIO. INVIABILIDADE. APELANTE QUE, NA CONDIÇÃO DE RESPONSÁVELTRIBUTÁRIO, ASSUME A OBRIGAÇÃO DE REPASSAR OS VALORES RECOLHIDOS A TÍTULO DE ICMS AO FISCO, OS QUAIS SÃO ARCADOS PELO CONTRIBUINTE DE FATO. ALEGADA AUSÊNCIA DE DOLO.INVIABILIDADE. DELITO COM DOLO GENÉRICO, QUE DISPENSA A INTENÇÃO DE FRAUDAR O FISCO. ADEMAIS, CRIME QUE SE CONSUMA COM A SIMPLES OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DO TRIBUTO. PLEITO DE RECONHECIMENTO DA EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA EM RAZÃO DE DIFICULDADES FINANCEIRAS SUPORTADAS PELA PESSOA JURÍDICA. IMPOSTO INDIRETO, CUJA CARGA ECONÔMICA RECAI  SOBRE O CONSUMIDOR FINAL. EMPRESA ADMINISTRADA PELO APELANTE QUE DETINHA APENAS A OBRIGAÇÃO DE RECOLHIMENTO E REPASSE DAS VERBAS AOS COFRES PÚBLICOS. CONDENAÇÃO MANTIDA.(…..). RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.(TJSC, Apelação n. 0031202-81.2013.8.24.0038, de Joinville, rel. Des. ErnaniGuetten de Almeida, j. 09-08-2016).” (Grifo nosso).

 

Em    relação  à  excludente  de  ilicitude, crime não se configurará  quando a falta de recolhimento ocorrer em virtude de fato relevante e inevitável (caso fortuito ou força maior), independentemente, portanto, da vontade do agente.

 

3. Da elementar “contumácia” acrescida pelo STF

O ministro relator Luiz  Roberto  Barroso, relator do RHC 163.334/SC,  fez questão de destacar que “o inadimplente eventual é totalmente diferente do devedor contumaz, que faz da inadimplência tributária seu modus operandi”. Segundo o Ministro, se o contribuinte demonstra de forma objetiva que está em situação ruinosa, não se aperfeiçoa a criminalização, sendo considerada mera inadimplência de tributo.

Do site do STF, colhe-se:

O ministro Roberto Barroso assinalou em seu voto que o valor do ICMS cobrado em cada operação comercial não integra o patrimônio do comerciante. Ele é apenas o depositário desse ingresso de caixa, que, depois de devidamente compensado, deve ser recolhido aos cofres públicos. A falta desse recolhimento, para o ministro, não é mero inadimplemento tributário, mas apropriação indébita. Este crime, contudo, exige a demonstração do dolo (intenção de cometer o crime). Assim, é preciso examinar o caso concreto para distinguir os comerciantes que enfrentam dificuldades dos que adotam a prática incorreta. “O inadimplente eventual é totalmente diferente do devedor contumaz, que faz da inadimplência tributária seu modus operandi”, explicou.” (grifou-se).

Por devedor contumaz define-se aquele que tem a sonegação como modelo de negócio, pratica preços predatórios  e tem a intenção de apropriar-se do recurso pertencente aos cofres públicos, cobrado do consumidor no ato da venda da mercadoria ou prestação de serviços tributados pelo ICMS. É  aquele que não paga tributo de forma reiterada, pratica preço abaixo do valor de aquisição, utiliza-se de “laranjas”, aproveita-se da inadimplência para ganhar mercado e obstaculariza a ação fiscalizatória da fazenda.

Segundo SCAFFI (2019),  em artigo eletrônico  sobre o tema:

O problema ocorre quando a empresa adota como modelo de negócio a sonegação contumaz, que se torna o eixo central de sua atividade e de seu lucro. Nesta situação, constata-se facilidade do devedor se evadir da tributação regular, com dificuldades de arrecadação pelos entes públicos acerca de suas operações, e isso ocasiona distúrbios concorrenciais que podem levar ao domínio dos mercados, ao abuso de posição dominante e até mesmo a situações de insolvência por parte da concorrência”.

Mais adiante, o jurista, referindo-se ao artigo 2º do Projeto de Lei 1646/2019, em trâmite no Congresso Nacional, informa da inexistência previsão de sanções penais, apenas administrativas, e elenca os critérios identificadores do infrator contumaz:

“(a) de que uma pessoa jurídica tenha sido constituída para a prática de fraude fiscal estruturada, inclusive em proveito de terceiros; (b) de pessoa jurídica constituída por interpostas pessoas que não sejam os verdadeiros sócios ou acionistas (figura mais conhecida por laranja); (c) pessoa jurídica constituída com o propósito de se evadir da cobrança de tributos; ou (d) que a pessoa física, devedora principal ou corresponsável, deliberadamente oculte bens, receitas ou direitos com o propósito de não recolher tributos ou burlar mecanismos de cobrança fiscal”.

E finaliza, informando sobre as quantias sonegadas,  duração da situação irregular do crédito tributário e necessidade de aperfeiçoamento do projeto:

“Para fins do projeto de lei, considera-se inadimplência substancial e reiterada de tributos a existência de débitos, em nome do devedor ou das pessoas físicas ou jurídicas a ele relacionadas, inscritos ou não em dívida ativa da União, de valor igual ou superior a quinze milhões de reais, em situação irregular por período igual ou superior a um ano. Considera-se em situação irregular o crédito tributário que não esteja garantido ou com exigibilidade suspensa, conforme estabelecido pelo CTN.Trata-se de uma definição amplíssima, que deve ser aperfeiçoada, para não penalizar a mera inadimplência decorrente de crises empresariais e econômicas, bem como o planejamento tributário lícito = elisão fiscal.”

Cabe complementar, o caso concreto relativo os  HC 399.109 e RHC 163.334,  envolvia devedor que reincidiu em inadimplência por oito vezes no período de 09/2008 e 07/2010, tendo sido autuado pelo fisco estadual em 04/2009 e 10/2010. O montante inadimplido alcançou R$ 30 mil. Porém, conforme noticiado no portal do STF, o representante do Ministério Público afirmou que o acusado seria devedor contumaz,  já constituiu três empresas e tem uma dívida história de mais de R$ 700 mil.

Importante ressaltar  que o art. 2º, II, da Lei 8.137  já teve sua constitucionalidade declarada pelo STF nos recursos ARE 999.425 e HC 174.412 nos quais se interpretou que a conduta tipificada objetiva coibir atos fraudulentos praticados pelo contribuinte para burlar a ação fiscalizatória do fisco.  Não almeja  a punir o mero inadimplemento. Os casos analisados se referiam a contribuintes que praticaram atos fraudulentos de forma reiterada. Um deles com 45 ocorrências.

Conclui-se pelo exposto, embora não tenha ficado claro no RE 399.109, que houve a preocupação do STF em punir não o mero inadimplemento, mas aquele contribuinte contumaz, que faz da inadimplência de tributos um modelo de negócios,  prejudica a concorrência, obtém enriquecimento ilícito e  utiliza-se  de mecanismos fraudulentos como empresas de fachada, sócios “laranjas” e outros ardis.

 

4. As motivações dos Ministros do STF

No julgamento do RE 550.768, o STF , com o Ministro Joaquim Barbosa como relator, cassou o registro especial de uma indústria de cigarros que  reiteradamente práticava o não-recolhimento de tributos, utilizando-se da sistemática como vantangem competitiva indevida  num mercado altamente concentrado. O bem protegido era a livre concorrência de mercado.

Segundo notícias colhidas no portal do STF,  a fundamentação da apropriação indébita do ICMS próprio tem suas raízes fincadas no RE 574.706 de março/17, no qual o plenário deliberou sobre a exclusão do imposto da base de cálculo de incidência do PIS/COFINS sob a motivação de que não se pode considerar como ingresso tributável uma verba que é recebida pelo contribuinte apenas com o propósito de pronto repasse a terceiro, ou seja, ao Estado. O Ministro Fachin, cujo entendimento foi seguido pelas  Ministras Rosa Weber e Carmem Lucia,  citou o referido acórdão e afirmou que “não se trata apenas de inadimplemento fiscal, mas a disposição de recurso de terceiro”.

Cite-se, também, a preocupação com a situação de penúria dos cofres públicos estaduais e a necessidade de se extirpar do mercado a sistemática  sonegação de ICMS próprio por devedores contumazes de larga envergadura que comprometem a livre concorrência com seus preços predatórios. O julgado buscou erradicar essa fonte de enriquecimento ilícito.

É o que se extrai do artigo publicado pelo Ministro Luiz Roberto Barroso, publicado em 24.12.19, numa revista eletrônica:

O Pleno do Tribunal reconheceu como criminosa a conduta do contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz, o valor do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço. A decisão foi importantíssima para as finanças dos Estados e para a livre concorrência, já que os devedores contumazes se valem de forma sistemática da inadimplência como forma de financiar suas atividades, vender seus produtos abaixo do preço de custo e enriquecer ilicitamente. Não está abrangido pela criminalização o contribuinte que apenas deixou de recolher o tributo ocasionalmente.”

Além de unificar o entendimento jurisprudencial sobre o tema há o entendimento na  doutrina e jurisprudencial de que a inadimplência fraudulenta ou reiterada de impostos impede o Estado de concretizar os direitos fundamentais e coletivos previstos na Carta Magna.

O Ministro Luiz Roberto Barro, relator do RHC 163.334 emitiu a seguinte opinião extraída do portal do STF:

“Os crimes tributários impedem o país de melhorar a vida de seus cidadãos e que, e a falta de recolhimento intencional e reiterado do ICMS prejudica não só o Erário, mas a livre concorrência, pois uma empresa que sistematicamente deixa de recolher o tributo se coloca em vantagem competitiva em relação à que cumpre suas obrigações

Na mesma direção, trilham os seguintes doutrinadores;

Para FELDENS ( 2002, pág.86):

 

Como pode o Estado  cumprir com as funções – mínimas que sejam – que lhes são acometidas, fazendo chegar aos excluídos do “sistema” esse mínimo de democracia substancial? Em nosso contexto político-socioeconômico, em que os meios de produção de riqueza estão acometidos à iniciativa privada, há uma única e singela maneira: a arrecadação fiscal”.

 

Na mesma trilha, PINTO (2001, pág.75):

 

A justificação dos crimes contra a ordem tributária encontram-se no fato de que a conduta criminosa, além de causar um prejuízo imediato a integridade patrimonial do Erário Público (lesando a função pública da arrecadação), acaba por obstaculizar a realização do valor constitucional da solidariedade de todosos cidadãos na contribuição da manutenção dos gastos públicos e dificultando a efetivação do Estado Democrático de Direito”.

 

É dizer, que a criminalidade fiscal é obstáculo para que o Estado Democrático de Direito cumpra seus deveres constitucionalmente estabelecidos de implementação de uma política de justiça social e de livre concorrência no mercado, devendo coibir os crimes tributários distinguindo, com acuidade e robustez probatória,  os fraudadores dos empresários que incidiram em mera inadimplência.

 

 Conclusão

Os julgamentos do HC 399.109 do STJ e RHC 163.334 do STF apontam o substituto tributário, que “desconta” tributo dos substituídos, e o contribuinte, que “cobra”  (retém) tributo indireto do adquirente, como depositários transitórios dos impostos indiretos, tendo ambos o dever de efetuar o recolhimento aos cofres públicos  nos prazos legais.

O crime de apropriação de ICMS próprio difere-se do mero inadimplemento quando o contribuinte faz da inadimplência de impostos um modelto de negócio, pratica preços predatórios, utiliza-se de empresas de fachadas ou sócios “laranjas”. Enfim, tem um histórico operacional “contumaz” de não pagar tributo.

Os parâmetros estabelecidos nas cortes superiores devem ser observados sob pelas instâncias de 1º grau sob pena de termos a mera inadimplência transformada em ilícito penal. Tais decisões serão essenciais para a consolidação do conceito jurídico da elementar contumácia.

Enfim, a  tutela penal da ordem tributária encontra-se fundamentada no conccepção de que os direitos fundamentais sociais previstos nos art. 6º, 196 e 205 da Constituinção Federal ,  que tem como um de seus principais fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º-III), somente poderão ser implementados pelo Estado Democrático de Direito através da política de arrecadação de tributos.

Cuiabá-MT, 27 de janeiro 2020.

Anderson Torquato Scorsafava

Especializado em Direito Tributário pela Facudade Legale

 

Referências

BARROSO, Luiz Roberto.O Supremo ainda no olho do furacão. dez 2019. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-dez-24/luis-roberto-barroso-supremo-ainda-olho-furacao>. Acesso em 23 jan .2020.

 

CALIENDO, Paulo. Curso de direito tributário.2. ed São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

 

CÂMARA DOS DEPUTADOS – Substitutivo nº 4788/90 B- Nelson Jobim.Disponível em : <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD17MAI1990.pdf> e  Substitutivo 4788/90-A Disponível em:< http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD16MAI1990.pdf#page=56 >.Acesso em 27 jan 20020

 

 

CASSONE, Vittório.Direito tributário. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2018.

 

DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 360-361.

 

EISELE, Andreas. Crimes contra a ordem tributária.São Paulo: Dialética, 1998, p. 165).

 

EISELE, Andreas.Crimes contra a Ordem Tributária. 2ª ed., São Paulo: Dialética, 2002,p. 175).

 

FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 86).

 

MACHADO  SEGUNDO, Hugo de Brito. Manual de direito tributário.11. ed. – São Paulo:Atlas, 2019.

 

LOVATTO, Alecio Adão. Crimes tributários: apectos criminais e processuais. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. Pg. 129).

 

PINTO, Emerson de Lima. A criminalidade econômico tributária:a (des)ordem da lei e a lei da (des)ordem: por uma (re)legitimação dodireito penal no estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 75).

 

SCAFF, Fernando Facury.  “Tributação, concorrência e a criminalização do devedor contumaz”.Revista eletrônica Conjur.13.01.20.Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-jan-13/tributacao-concorrencia-criminalizacao-devedor-contumaz>  Acesso em 23 jan 2020.

 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. In:  Suspenso julgamento que discute criminalização do não recolhimento doloso de ICMS do imposto declarado. Dez 2019 Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=432563&ori=1 >. Acesso em 23 jan 2020.

 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). In: STF começa a julgar criminalização do não recolhimento de ICMS declarado. dez.19.Disponível em:< http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=432414&ori=1  >.Acesso em 23 jan 2020.

 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL- Processo Eletrônico- RHC 163.334. disponível em < https://sistemas.stf.jus.br/peticionamento/dashboard>. E < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5562955>. Acesso em 27 jan 20

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