Os efeitos da contratação de trabalhadores pela administração sem a aprovação em concurso público: Um necessário reexame do tema

1. Delimitação do tema


Prática comum por parte da Administração Pública nas esferas federal, estadual e municipal, a contratação de trabalhadores sem a prévia aprovação em concurso público enseja uma onda de reclamações trabalhistas, tendo por objeto o reconhecimento da respectiva relação de emprego, bem como o pagamento de todos os direitos decorrentes do contrato de trabalho.


Ante os expressos termos do § 2º do artigo 37 da Constituição, que atribui a pecha de nulo ao contrato de trabalho celebrado em semelhantes condições, o Poder Judiciário trabalhista, em decisões majoritariamente uniformes, tem sido enfático ao proclamar a inviabilidade de se proceder ao reconhecimento do vínculo empregatício.


Quanto aos efeitos decorrentes da contratação, contudo, a questão têm sido objeto de grandes divergências. A fim de pacificar o dissenso, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio de sua Súmula nº 363, firmou em sua jurisprudência o entendimento de que: “A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”.


Embora pacificado no âmbito da mais alta Corte Trabalhista, o tema volta novamente à baila, agora perante o Supremo Tribunal Federal, em razão de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pelo Governador do Estado de Alagoas[1] contra o artigo 9º da Medida Provisória nº 2.164-41.[2] Referido diploma legal, emprestando nova redação à Lei nº 8.036/90, instituiu a obrigação de recolhimento dos depósitos para o FGTS, bem como a possibilidade de o trabalhador movimentar a sua conta vinculada, na hipótese de o contrato de trabalho encontrar-se eivado de nulidade por ausência de concurso público (CF, art. 37, II, § 2º).[3]


Frente a esse cenário, a questão ganha nova perspectiva, merecendo, assim, ser revisitada pela doutrina. E isso porque o Supremo Tribunal Federal, para o fim de apreciar a constitucionalidade do artigo 9º da Medida Provisória nº 2.164-41, necessariamente terá que adentrar o exame do tema, fixando, à luz do artigo 37, II, § 2º, da Lei Maior, quais os efeitos produzidos pelo contrato de trabalho celebrado com a Administração Pública sem a prévia aprovação em concurso público.


Este é o tema que nos propomos brevemente a examinar.


2. Contrato de Trabalho celebrado com a Administração Pública sem concurso público. Nulidade. Efeitos


O contrato de trabalho celebrado com a Administração Pública sem a prévia aprovação do trabalhador em concurso público é nulo. Isto é o que textualmente dispõe o artigo 37, II, § 2º, da Constituição. Questão tormentosa, contudo, reside na fixação dos efeitos que decorrem da contratação que, não obstante eivada de nulidade, produziu reflexos no plano da realidade. Nesse particular, três correntes propõem soluções para o tema.


A primeira apega-se ao argumento de que os atos nulos são totalmente insuscetíveis de produzir efeitos. Nesse contexto, a invalidação do ato o nulifica desde a sua constituição, gerando, assim, efeitos ex tunc.  Consoante o magistério de Diógenes Garparini: “A invalidação, como ato que retira outro, por ilegal, do ordenamento jurídico, cria uma utilidade pública. […] Seus efeitos alcançam o ato administrativo inválido no seu nascedouro, já que não há nulidade superveniente. São, portanto, retroativos. Operam desde então, ou ex tunc”.[4] Celso Antônio Bandeira de Mello, em página clássica, conduz-se na mesma linha: “Os efeitos da invalidação consistem em fulminar ab initio, portanto, retroativamente, o ato viciado ou seus efeitos. Vale dizer: a anulação opera ex tunc, desde então. Ela fulmina o que já ocorreu, no sentido de que se nega hoje os efeitos de ontem”.[5]


Importante observar, contudo, que, ao eivar de nulidade o ato de investidura no emprego público, a Constituição não pode inviabilizar a percepção pelo trabalhador da contraprestação pelo labor despendido em prol da Administração, ante a total impossibilidade de se restabelecer em sua integralidade o status quo ante.


Por essa simples e definitiva razão é que não se pode fazer incidir, no caso, a nulificação do contrato com efeitos ex tunc, já que o dispêndio de energia física e mental levado a efeito pelo trabalhador não pode ser restituído. Partindo dessa premissa, duas outras correntes balizam o entendimento doutrinário e jurisprudencial a respeito do tema.


A primeira, abarcada pela Súmula nº 363 do Tribunal Superior do Trabalho, estabelece como efeitos decorrentes do contrato irregularmente celebrado, tão-somente o pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, bem como dos valores referentes aos depósitos do FGTS. Este é o posicionamento adotado, no plano doutrinário, por Alice Monteiro de Barros.[6]


Uma outra corrente, mais liberal, preconiza que, diante da impossibilidade de se restituir a força de trabalho despendida, vigora, em relação ao Direito do Trabalho, o princípio da irretroatividade das nulidades, de sorte que o contrato de trabalho, ainda que nulo, produz efeitos até que o vício seja invalidado. Nas palavras de Délio Maranhão:


“Atingindo a nulidade o próprio contrato, segundo os princípios do direito comum, produziria a dissolução ex tunc da relação. […] Acontece, porém, que o contrato de trabalho é um contrato sucessivo, cujos efeitos, uma vez produzidos, não podem desaparecer retroativamente.”[7]


Nesse mesmo sentido, José Augusto Rodrigues Pinto preconiza a plena produção de efeitos do pacto laboral enquanto não declarada a sua nulidade, justificando sua posição frente a circunstância de que “ao empregado será de todo impossível receber de volta a prestação entregue, que é sua força pessoal de trabalho”. Por essa razão, prossegue o ilustre jurista baiano: “a teoria da nulidade, na sua sanção mais característica, em se tratando de nulidade absoluta, seria decididamente prejudicial ao trabalhador, favorecendo, pelo contrário, o empregador com um enriquecimento sem causa, ou mesmo ilícito, num desafio a todos os princípios norteadores do Direito do Trabalho”.[8]


Importante observar que o princípio da irretroatividade das nulidades, corolário do princípio protetor, encontra ressonância no direito alienígena, conforme noticia o clássico magistério de Mario De La Cueva:


“El art. 2226 del Código Civil previene que ‘cuando se pronuncie por el juez la nulidad, los efectos que se hubiesen producido serán destruidos retroactivamente’; […].


Esa solución no podría aplicarse al derecho del trabaho, pues la decisión que pronuncie la nulidad de una relación laboral por no haber alcanzado el menor la edad mínima de admisión al trabajo o por no haber obtenido el patrono el consentimiento del padre o tutor, si bien podría impedir que se continúe prestando el trabajo, no puede lograr que se restituya al trabajador la energía de trabajo que entregó al patrono, de donde resultaría absurdo ya no que se obligara, sino simplesmente que se planteara la devolución de los salarios que recibió. En estas condiciones, desaparece toda posibilidad de destruir retroactivamente los efectos que se hubiesen producido por la aplicación de las leys laborales a la prestación del trabajo; por lo contrario, su aplicación debe ser total, lo que quiere decir que el trabajador deberá recibir todos los beneficios que correspondan al trabajo que hubiese prestado: salarios, primas o una indemnización en el caso infortunado de que resulte víctima de un riesgo de trabajo.”.[9]


Essa mesma orientação é prestigiada por Alfredo Montoya Melgar, ao analisar o tema à luz da legislação laboral espanhola:


“Frente a la regla clásica de que «lo que es nulo no produce ningún efecto», la legislación laboral establece que la nulidad del contrato de trabajo sólo surte efectos ex nunc, esto es, desde el momento de su declaración hacia el futuro, y no ex tunc, es decir, hacia el pasado. Ello significa que los efectos del contrato producidos antes de la declaración de su nulidad quedan convalidados, como si de un contrato eficaz se tratase.”.[10]


Sob o prisma do ordenamento jurídico brasileiro, é importante observar que o artigo 37, § 2º, da Constituição mostra-se absolutamente compatível com a teoria da irretroatividade das nulidades. E isso porque, a despeito de preconizar a nulidade do ato de investidura no emprego público, quando a contratação se efetivar sem concurso público, o dispositivo constitucional determina, como única conseqüência, seja efetuada a punição tão-somente da autoridade pública responsável, circunstância que põe o trabalhador a salvo dos efeitos da invalidação do contrato de trabalho.


Realmente, a norma constitucional é clara ao preconizar que os efeitos decorrentes da declaração de nulidade do pacto laboral terão por destinatário apenas a autoridade pública responsável pela contratação. Em verdadeiro silêncio eloqüente, portanto, o artigo 37, § 2º, da Lei Magna preserva o trabalhador e convalida os efeitos produzidos pela relação de emprego, até o momento em que declarada a sua invalidade.


Nesse contexto, se o contrato de trabalho, enquanto não nulificado, produz todos os efeitos, como se válido fosse, é inegável que ao trabalhador deve ser assegurada a percepção da integralidade dos créditos decorrentes da relação trabalhista mantida com a Administração, bem como aqueles pertinentes à repectiva rescisão contratual.


Por outro lado, não se pode perder de vista que muitos dos direitos decorrentes da relação de trabalho encontram-se catalogados na Constituição (art. 7º), ocupando a elevada posição de direitos fundamentais.[11] E, frente a essa perspectiva, assume especial relevo a dupla posição ocupada pelo Estado, como garante do cumprimento e do respeito aos direitos fundamentais e como empregador.


Realmente, se ao ocupar a primeira posição, cabe ao Estado não só respeitar os direitos fundamentais, mas também fazê-los respeitados[12], dele não se pode esperar outra conduta quando atuar como empregador. Por essa razão, não se pode admitir que o ente estatal paute sua atuação mediante uma ética dúplice e vacilante, e que em nenhuma medida o dignifica.


Em outras palavras, não há como se conceber possa a Administração Pública contratar trabalhador sem a promoção de concurso público, para exercer atividades idênticas àquelas exercidas por trabalhadores concursados, sem pagar a ambos remuneração equivalente. Nulidade do contrato de trabalho por infringência do artigo 37, inciso II, da Constituição não é sinônimo de apropriação da força e do suor do trabalhador, nem de convalidação da fraude a direitos fundamentais em benefício das finanças do Estado.


E é precisamente nesse aspecto que a Súmula nº 363 do TST labora em equívoco, porquanto, a pretexto de solucionar a lesão perpetrada ao texto constitucional pelo Estado, como decorrência da celebração de contrato de trabalho sem concurso público, produz uma nova e mais grave violação, desta vez ao sonegar ao trabalhador a integralidade do catálogo de direitos fundamentais a ele outorgados pela Lei Maior.


3. Conclusão


O ordenamento constitucional brasileiro, a despeito de nulificar a celebração de contrato de trabalho com Administração Pública, sem a prévia aprovação do trabalhador em concurso público, o faz com efeitos ex nunc. Por essa razão, o contrato de trabalho, ainda que nulo, produz efeitos até que o vício seja invalidado.


E assim o faz porque o dispêndio de energia física e mental levado a efeito pelo trabalhador não pode ser restituído, evidenciando a total impossibilidade de se restabelecer, em sua integralidade, o status quo anterior ao início da relação laboral.


A referendar essa conclusão, o artigo 37, § 2º, da Constituição, a despeito de preconizar a nulidade do ato de investidura no emprego público, quando a contratação se efetivar sem concurso público, determina, como única conseqüência, seja efetuada a punição tão-somente da autoridade pública responsável. Em verdadeiro silêncio eloqüente, portanto, a Lei Magna preserva o trabalhador e convalida os efeitos produzidos pela relação de emprego, até o momento em que declarada a sua invalidade.


Por outro lado, considerando que os direitos decorrentes da relação de trabalho catalogados na Constituição (art. 7º) ocupam a elevada posição de direitos fundamentais, assume especial relevo a dupla posição ocupada pelo Estado, como garante do cumprimento e do respeito aos direitos fundamentais e como empregador.


Sob essa perspectiva, se ao ocupar a primeira posição, cabe ao Estado promover a concretização dos direitos fundamentais, dele não se pode esperar outra conduta quando atuar como empregador, por ser inadmissível ao ente estatal pautar sua atuação mediante uma ética dúplice e vacilante, e que em nenhuma medida o dignifica. Disso decorre que a Administração Pública, mesmo quando irregularmente contratar sem a prévia realização de concurso público, não poderá sonegar ao trabalhador a integralidade do catálogo de direitos fundamentais que a ele, em virtude dessa condição, foram outorgados pela Lei Maior.


 


Referências Bibliográficas

BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 4ª ed. – São Paulo: LTr, 2008.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, et. al. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

DE LA CUEVA, Mário. El Nuevo Derecho Mexicano del Trabajo. 21ª ed. – México: Porrúa, 2007, tomo I.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 4ª ed. – São Paulo: Saraiva, 1995.

MARANHÃO, Délio et. al.. Instituições de Direito do Trabalho. 15ª ed. – São Paulo: LTr, 1995, v. 1.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. 2ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos  Tribunais, 1990.

MONTOYA MELGAR, Alfredo. Derecho del Trabajo. 27ª ed. – Madrid, Editorial Tecnos, 2006.

PINTO, José Augusto Rodrigues. Tratado de Direito Material do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007.

SARLET. Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001.

 

Notas:

[1] Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.127, Relator: Excelentíssimo Senhor Ministro Cézar Peluso.

[2] Publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 27/8/2001.

[3] “Art. 9º. A Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:

‘Art. 19-A. É devido o depósito do FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo nas hipóteses previstas no art. 37, § 2º, da Constituição Federal, quando mantido o direito ao salário.

Parágrafo único. O saldo existente em conta vinculada, oriundo de contrato declarado nulo até 28 de julho de 2001, nas condições do caput, que não tenha sido levantado até essa data, será liberado ao trabalhador a partir do mês de agosto de 2002.’ (NR)

‘Art. 20…………………………………………………………………

II – extinção total da empresa, fechamento de quaisquer de seus estabelecimentos, filiais ou agências, supressão de parte de suas atividades, declaração de nulidade do contrato de trabalho nas condições do art. 19-A, ou ainda falecimento do empregador individual sempre que qualquer dessas ocorrências implique rescisão de contrato de trabalho, comprovada por declaração escrita da empresa, suprida, quando for o caso, por decisão judicial transitada em julgado;’.”.

[4] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 4ª ed. – São Paulo: Saraiva, 1995, p. 99.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. 2ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos  Tribunais, 1990, p. 145.

[6] BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 4ª ed. – São Paulo: LTr, 2008, p. 516.

[7] MARANHÃO, Délio et. al.. Instituições de Direito do Trabalho. 15ª ed. – São Paulo: LTr, 1995, p. 249, v. 1.

[8] PINTO, José Augusto Rodrigues. Tratado de Direito Material do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007, 238.

[9] DE LA CUEVA, Mário. El Nuevo Derecho Mexicano del Trabajo. 21ª ed. – México: Porrúa, 2007, p. 208, tomo I.

[10] MONTOYA MELGAR, Alfredo. Derecho del Trabajo. 27ª ed. – Madrid, Editorial Tecnos, 2006, p. 273.

[11] SARLET. Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p.

[12] BRANCO,  Paulo Gustavo Gonet, et. al. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 170.


Informações Sobre o Autor

Alexandre Simões Lindoso

Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em Brasília perante os Tribunais Superiores.


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