Sumário: 1. Introdução – 2. Dos preconceitos na questão da terra – o macartismo e o privatismo – 3. Identificação da origem do problema do acesso à terra no pensamento jurídico pátrio – 4. A especulação imobiliária, a posse e a propriedade – 5. Sobre as falácias da interdição da discussão da especulação imobiliária – 6. Sobre a distinção entre posse e propriedade, as questões de registro e da tutela possessória – 7. A questão do uso da força na tutela da propriedade e da posse na doutrina mais aceita – 8. A questão das migrações internas e da caracterização do sem-teto como sujeito de direitos – 9. Prevenindo mal-entendidos – 10.Conclusão
Resumo: o presente texto visa à discussão, a partir de nota do Ministério da Justiça acerca do assassinato de morador de rua, dos preconceitos que cercam as questões da admissão do direito a uma moradia como direito humano e da necessidade das políticas públicas correspondentes como um mero caso de polícia desviante da ordem natural das coisas, demonstrando que sequer aos conceitos da dogmática tradicional têm guardado os veiculadores de tais preconceitos.
20.08.2004 – Nota à Imprensa sobre o crime contra Moradores de Rua de São Paulo
O Governo Federal repudia com veemência a atrocidade cometida ontem na cidade de São Paulo contra dez moradores de rua. A pedido do Presidente da República, telefonei ao Governador de São Paulo para prestar solidariedade e oferecer o auxílio da Polícia Federal. A União, o Estado e o Município não pouparão esforços para elucidar esse crime, encontrar os culpados e submetê-los ao crivo da Justiça. De acordo com as investigações em curso, os crimes foram cometidos em diferentes locais do centro e as vítimas não apresentaram sinais de terem tentado reagir aos golpes. É ultrajante para o Estado Brasileiro, defensor do princípio da dignidade humana, responsável pela promoção do bem-estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo cor ou quaisquer outras formas de discriminação, que uma ação vil como essa tenha atingido dez de seus cidadãos. O Governo Federal expressa sua profunda solidariedade às pessoas que foram vítimas dessa ação brutal e intolerável. Reafirma, por último, que não irá transigir com quaisquer formas de violações aos Direitos Humanos e que prestará todo auxílio para que os culpados sejam punidos. Márcio Thomaz Bastos Ministro de Estado da Justiça
1. Introdução
Em 20 de agosto de 2004, o Ministério da Justiça lançou nota à imprensa com relação ao homicídio de moradores de rua, na Cidade de São Paulo. Nota indignada com a violência perpetrada, com o desprezo pela vida humana, e na qual se fala na necessidade de apuração e punição de tal conduta, e que vai reproduzida na epígrafe. De acordo com a moral social vigente, ninguém, em sã consciência, ousaria discordar da nota em questão[1]. Mas há uma outra lesão, mais insidiosa, mais cruel, até, que antecede o homicídio. É a própria condição ostentada pelas pessoas mortas – “moradoras de rua” -. Com efeito, quando uma pessoa passa a morar na rua – dir-se-á que uma obviedade está sendo colocada aqui – é porque não tem ela acesso a uma casa de moradia. E por que não teria ela acesso a uma casa de moradia? Parece óbvia, também, a resposta: porque o valor do imóvel se coloca em níveis proibitivos para determinadas faixas salariais e, as mais das vezes, o sem-teto é também sem emprego. Edésio Fernandes[2], neste sentido, ilustra: “em termos jurídicos, a informalidade urbana tem acarretado todo tipo de implicações, mas destaque especial deve ser dado à falta de segurança da posse; sobretudo em países como o Brasil, onde o registro é constitutivo da propriedade, a falta de títulos registrados está criando dificuldades até para se arrumar emprego. Em Petrolina-PE, por exemplo, bóias-frias que procuram emprego em safras de uvas só não conseguem oportunidades porque não possuem um endereço oficial, isso por não serem juridicamente reconhecidos como legítimos ocupantes daquelas áreas urbanas informais onde habitam”. Não se pode esquecer que “na sociedade hodierna, quase todos os cidadãos estão vinculados, direta ou indiretamente, aos negócios imobiliários”[3]. Ricardo César Pereira Lira[4], por sua vez, alerta para este dado, que não é um fenômeno exclusivo do Terceiro Mundo, a bem de ver: “atente-se para a qualidade de vida no Bronx, um dos bairros da Grande Nova York. Vejam-se os ‘homeless’ londrinos. Nos países subdesenvolvidos e nos países em desenvolvimento, como o nosso, a ocupação do espaço urbano se faz marcada pelo déficit habitacional, pela deficiência da qualidade dos serviços de infra-estrutura, pela ocupação predatória de áreas inadequadas, pelos serviços de transporte deficientes, estressantes e poluentes, pela deslegitimação da autoridade pública, fomentando um sentimento generalizado de impunidade, sobretudo nas classes abastadas, como o demonstra episódio ocorrido há algum tempo em Brasília, quando jovens da alta classe média atearam fogo em um índio pataxó, que dormia na via pública, e fomentando em determinados centros urbanos um estado paralelo dominado pelo crime organizado, com espantoso poder de fogo, muitas vezes impondo-se à comunidade e ao próprio Estado formal. Esse Estado paralelo, pelo menos no seu braço visível, se instala, nas favelas, nas periferias, tornando-se cada vez mais difícil sua extinção, pela infiltração que consegue nos segmentos do mundo oficial”.
2. Dos preconceitos na questão da terra – o macartismo e o privatismo
Mas quando se fala na implementação de medidas voltadas precisamente a remediar tal situação, como a reforma agrária e a reforma urbana – sendo que esta somente teve, sintomaticamente, em 2001 veiculadas as suas normas gerais mediante a Lei 10.257, mais conhecida como Estatuto da Cidade, enquanto aquela vem sendo balizada por uma série de diplomas desde 1964 -, as reações se fazem sentir veementes, no sentido de visualizar na implementação destes expedientes de legitimação do próprio regime capitalista a “cubanização do Brasil”. Merecem transcrição algumas passagens do Dr Odilon Rebés Abreu[5], representante desta corrente – e que não se sentirá ofendido por dizermos expressamente que representa esta corrente, ao contrário, sentir-se-á não apenas elogiado como ainda nos acusará de panfletário, como o fez com pessoas de muito maior estatura do que o subscritor deste texto, embora não ousemos defender, jamais, as invasões, mas não consideremos que os problemas a elas concernentes se resolvam no âmbito estrito do conflito interindividual –: “Ao propor a interpretação dos dispositivos processuais de proteção à posse, subordinando-os à condição de demonstração do cumprimento do princípio da função social da propriedade, com inversão do ônus da prova, está-se incorrendo em inaceitável sofisma. O que, de fato, propõem não é uma interpretação dos dispositivos processuais para todo o universo de ameaças, esbulho ou turbação de posse, mobiliária, ou imobiliária, urbana ou rural. Mas a restrição ao caso específico das invasões coletivas de propriedades rurais pelos movimentos organizados dos autodenominados trabalhadores rurais sem terra” (p. 85). “Nas ações possessórias, por tal entendimento, passa-se a discutir a condição de exercício do direito de propriedade, quando tais ações se destinam à proteção do fato posse e do direito que tem o possuidor de nela ser mantido ou reintegrado e nada mais, nos casos em que é ameaçada, turbada ou esbulhada” (p. 85). “Quando o juiz admite a alegação, feita pelo invasor, de que a propriedade invadida não cumpre com a sua função social e, baseado nisto, rejeita a liminar, está legitimando a ação de milícias privadas, ao exemplo deplorável das brigadas do povo; o exercício arbitrário das próprias razões e garantindo a posse obtida pela violência, que não encontra guarida em qualquer disposição jurídica atual ou de antanho” (p. 86). “Como concluir, a partir da tendência moderna de exegese jurídica, que se possa admitir em juízo e dar voz a sedizentes movimentos sociais, que sequer informam sua forma de constituição; que não dizem como se estabelecem suas chefias, como e onde funcionam suas sedes, de onde provêm os recursos que os mantêm? Como permitir-lhes a ampla exclusão de punibilidade para o elenco de atos ilícitos que praticam, como porte ilegal de arma; danos ao patrimônio público e privado; ao meio ambiente; aos direitos de crianças e adolescentes, usados como escudos humanos nos confrontos; às leis de trânsito; às afrontas à autoridade e esbulho possessório?” (p. 89 – grifamos). “Não é a isto que se pode chamar de interpretação analítica e sistemática do direito, tal atitude será melhor entendida como mero esforço de dar sustentação judiciária para procedimentos que não têm escondido seu desiderato maior de suprimir todo o ordenamento democrático, começando pela propriedade, pelo desmonte da justiça, apodada de burguesa, pelos arautos da tese” (p. 90). “As presunções de fragilidade de uma das partes; de unção pela boa causa daqueles, a priori, tidos como desvalidos no conflito, têm na justiça especializada do trabalho conseqüências que redundam em prejuízo da própria parte que visam favorecer, pelo achatamento de salários e pelo desemprego” (p. 91). “Há curiosas peculiaridades na construção constitucional brasileira, que se materializaram na chamada Constituição Cidadã de 1988. O título dos Direitos e Garantias Fundamentais deveria ocupar-se dos direitos e garantias individuais, consagrado pelo processo civilizatório, nas grandes constituições democráticas, à proteção da fragilidade do indivíduo frente ao poderio do Estado. No embate entre esquerda e direita, a primeira fincou pé para introduzir, no capítulo que deles se ocuparia, a extensão ‘individuais e coletivos’. A direita, por sua vez, firmou posição no sentido de que deveriam figurar ali também os deveres. […] Faz-se esta alusão para acentuar o caráter de má sistemática de uma Constituição gerada sob a égide dos mais variados ‘lobbies’ e sujeita a todo tipo de negociações” (p. 93 – grifamos). Moacir Adiers[6], embora verberando as invasões, como autor antecedente e dentro da linha do equacionamento do conflito interindividual, apresenta razões mais acordes com a dogmática do Direito Civil, como se pode ver dos textos que vão transcritos logo abaixo: “o uso e a fruição da coisa trazem, assim, ínsita a idéia de uma dimensão e destinação social da coisa possuída, tanto que a posse não existe sem que haja sua expressão através de um efetivo uso e/ou uma efetiva fruição da coisa possuída. É através da ação ou da conduta do possuidor em relação à coisa possuída, dando-lhe uma destinação conforme a sua natureza ou destino, que a coisa cumpre a sua função social, por ser satisfativa de uma necessidade pessoal, ou de cunho social, ou de servir de ativadora da riqueza ou produtora de utilidades de natureza econômica” (p. 40). “A verificação da produtividade ou não-produtividade de uma área de terras se dá para fins de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. A previsão normativa tem esse indicado e específico objetivo. Não pode, por isso, ser usada com a finalidade de chancelar invasões de terras e de manter os invasores nas áreas invadidas, notadamente quando o confessado móvel impulsionador de tais atos não é o da tomada de terras e de nelas permanecer, mas o de provocar os órgãos governamentais federais encarregados de promover a reforma agrária para que procedam à desapropriação das áreas improdutivas, ou para que realizem os assentamentos nas áreas desapropriadas com tal finalidade. […] De qualquer sorte, isso não autoriza invasões de propriedade ou de áreas de posse e nem que a elas se dê respaldo, caracterizadoras que seriam, na melhor das hipóteses, da abolida prática da Justiça de mão própria ou do exercício arbitrário das próprias razões, pois sua admissão implicaria produzir grave ruptura na ordem social, ou atuaria como desestruturadora de um mínimo de organização social, as quais impõem preservadas, em sua essência, pelo Poder Judiciário” (p. 43).“A proteção jurídica reclama a existência efetiva da posse agregada a um exercício atual dos poderes possessórios, aferíveis no momento da prática do ato afirmado esbulhador. E a razão dessa exigência encontra sua justificativa no estado de permanência do exercício fático, que é característica da posse como situação de ordem fáctica. Se o possuidor, em qualquer momento, deixa de exercer os atos próprios e caracterizadores de posse, a própria posse, como situação fáctica, deixa de existir em sua esfera de interesses, afastando, por via de conseqüênca e, por isso mesmo, a tutela possessória em seu favor” (p. 46).
3. Identificação da origem do problema do acesso a terra no pensamento jurídico pátrio
Não se pense que a questão das invasões seria algo gerado pela Constituição de 1988, ou decorrência da eleição de governos estaduais vinculados a ideários considerados “de esquerda”. Edésio Fernandes[7], ao tratar da regularização de áreas informais, recorda a extrema onerosidade, sob o ponto de vista tanto financeiro como operacional de operações desta natureza, especialmente quando a situação dura há mais de 40, 50, 60 ou 70 anos: “um exemplo disso está em Belo Horizonte, cidade planejada inaugurada em 1897. Na época, o exercício de planejamento urbano era muito sofisticado, compreendendo até elementos do urbanismo de Paris. Mas os planejadores de Belo Horizonte se ‘esqueceram’ de reservar um lugar para os construtores da nova cidade que tinham imigrado do campo. Dois anos antes da inauguração de Belo Horizonte, em 1895, três mil pessoas já viviam em favelas, favelas essas que até hoje não foram regularizadas”. Orlando Gomes[8], saudoso civilista baiano e udenista militante, observou, ainda na vigência da Constituição de 1967: “a propriedade fundiária, institucionalizada sem especialização nas leis civis, passou a ser objeto da lei agrária (Estatuto da Terra) e a propriedade urbana, nas grandes cidades, tem na invasão o meio de acesso das camadas mais pobres da população. O argumento dos invasores é que a necessidade de habitação deve prevalecer sobre o direito de propriedade inaproveitada. O Estado tem se rendido circunstancialmente a esse argumento, mas desapropriando por interesse social a área invadida, para não desalojar os ocupantes”. Tércio Sampaio Ferraz Júnior[9], Procurador-Geral da Fazenda Nacional aos tempos da Presidência de Collor de Mello, por seu turno, relata casos concernentes aos limites do Direito oficial: “os casos mencionados se referem à pesquisa em curso na Universidade Federal de Pernambuco, a propósito de conflitos de propriedade produzidos por invasões de terrenos urbanos na área do Recife, por parte de populações de baixo e ínfimo poder aquisitivo. Dos casos levantados pela pesquisa restringimo-nos ao 1) da Vila das Crianças, em que uma propriedade privada invadida por 300 famílias de baixa renda ocasionou ação de reintegração de posse pela empresa proprietária, com a remoção e expulsão dos invasores por força policial (Bairro dos Afogados, Recife, outubro-dezembro de 1979); 2) da Rede Ferroviária, em que a invasão da propriedade pertencente à empresa pública (Rede Ferroviária S. A.) foi contornada através da negociação e indenização, removendo-se a maior parte dos invasores (Bairro de Imbiribeira, Recife, maio de 1979 até hoje); 3) do Skylab, caso de invasão de propriedade privada por 300 famílias de baixa renda, em que, inicialmente, foi utilizada força particular e policial e depois negociação, formando-se então, com os invasores, contrato de locação do solo invadido, permanecendo os invasores no local (Bairro de Casa Amarela, Recife: julho de 1979); 4) da Vila Camponesa, caso de invasão de propriedade pública federal e estadual (CHESF e CELPE) por 2 mil famílias de baixa renda, em área localizada sob fios de alta tensão, em que uma ação de reintegração de posse ainda está pendente (Bairro do Curado, Recife, novembro de 1979 até hoje); 5) do Dendê, caso de invasão de terreno pertencente à Prefeitura Municipal do Recife por 24 famílias de baixa renda, com tentativa de expulsão e ameaça de derrubada dos mocambos, estando as medidas suspensas atualmente (Bairro dos Afogados, Recife: outubro de 1979 até hoje)”. Mesmo não se defendendo – como não defendemos – as invasões, não podemos dizer sejam elas desprovidas de causa e, mais do que isto, não podemos pura e simplesmente reduzir à questão ao acicate da inveja, como o fazia Adam Smith para justificar a necessidade de se manter o aparato estatal como condição de existência da própria economia de mercado. O encarecimento do solo, ao contrário, foi fruto de uma política deliberada, como se pode ver nesta passagem de Caio Mário da Silva Pereira[10], subscritor do Manifesto dos Mineiros – documento que deu origem à UDN – e colaborador de Milton Campos: “o Brasil atravessa presentemente uma fase de enorme desenvolvimento do mercado imobiliário. Acredito mesmo que jamais o imóvel atraiu tanto. Os preços atingem níveis muito altos e, não obstante isso, os lançamentos de edifícios de apartamentos (freqüentíssimos) encontram plena receptividade. As construções são levadas a bom termo e normalmente em tempo curto. Os adquirentes não faltam com as suas prestações. Presentemente, compra-se imóvel para residência própria, para revenda e como investimento de boas perspectivas de futuro. Reina, assim, enorme otimismo no setor”. De acordo com Álvaro Pessoa[11], jurista pós-graduado em Yale, um dos objetivos do regime instalado no Brasil em 1964 era o “estímulo à construção civil, natural empregadora da mão-de-obra numerosa e desqualificada. Esta, ficando ociosa em decorrência da reorientação da economia que se ia proceder, constituía perigosa ameaça para a funcionalidade do modelo. […] Quando, afinal, aprendemos, ou pelo menos quase, que não se removem indiscriminadamente favelas e muito menos pelos métodos iniciais, graças aos trabalhos científicos de Gilda Blank, Lícia Valadares e Janice Pearlman, muitas comunidades e famílias destroçadas já haviam pago altíssimos preços. Em Vila Kennedy, por exemplo, dois anos após as remoções, mais de 50% das famílias haviam sido abandonadas pelo chefe, elevando a níveis alarmantes a incidência de prostituição”.
4. A especulação imobiliária, a posse e a propriedade
Daí se entende perfeitamente o fator axiológico de legitimação da postura narrada por Jacques Távora Alfonsín[12], no que se refere ao louvor à especulação imobiliária em antigo julgado do Tribunal de Alçada riograndense: “há um voto prolatado em 26 de dezembro de 1982, na apelação cível 28711, distribuída à 1ª Câmara Cível do TARGS, que, embora posteriormente reformado por força de embargos infringentes interpostos pelos réus apelantes, também parece desconsiderar a função social da propriedade como matéria passível de cogitação judicial. Para negar provimento à dita apelação dos réus – multidão pobre que constituíra uma ‘vila de casas’ sobre 42 hectares de uma área situada na periferia de Canoas/RS, a qual invocava em seu favor, entre outras coisas, a função social da propriedade descumprida pelo estado de abandono da área possuída, afirmou o referido voto: ‘inexiste mal algum na aquisição de imóvel para esperar a valorização dele e depois negociá-lo. Todos fazem isto. É o investimento cuja finalidade é o lucro ou a manutenção da expressão monetária. Todos especulam’. Cumpre antecipar-se, porém, como determinadas censuras dirigidas a sentenças e acórdãos que se permitem buscar fundamentos axiológicos para seus julgamentos, especialmente nos casos em que os réus constituem um grande número de pessoas pobres, traem um marco categorial teórico de interpretação da realidade e da lei, para o qual disposições como a do art. 5º da LICC, acima lembrado, não alcançam a mínima possibilidade de consideração. O que tais censuras acusam de ‘metajurídico’, em todos os avanços que os julgados obtêm no reconhecimento da eficácia do princípio da função social da propriedade, a elas próprias servem de aviso, na exata proporção em que, inconscientemente que seja, submetem-se a valores extra ou até anti-jurídicos do sistema econômico dominante, sem outra base ‘legal’ que não a de uma ‘lei’ já introjetada pelo intérprete como ‘normal’ ou ‘natural’, do tipo ‘metacódigo’ verberado por F. Müller”. Querendo-se ou não, o fato está documentado: a consideração da especulação imobiliária como decorrente da natureza das coisas, a redução da questão social a um caso de polícia, estas são questões metajurídicas que, entretanto, ingressam no discurso do aresto para serem louvadas pelos autores que chamam de panfletários os que deles discordam. E, por outro lado, no caso narrado pelo Procurador do Rio Grande do Sul por último citado, até mesmo no âmbito da dogmática civilística o voto se mostrou desbordante, pois é claro que o abandono, por si mesmo, já se mostra apto a descaracterizar o exercício de fato de qualquer dos poderes inerentes à propriedade, isto é, o exercício da posse. E, por outro lado, não existe, mesmo para o clássico Direito Civil, somente a modalidade de aquisição mediante o consentimento do proprietário. Como salienta Carlos Alberto Alvaro de Oliveira[13], “na aquisição originária, ainda que haja, antes, esse direito de outrem, o do aquirente não depende dele. É a despeito dele, em vez de ser devido a ele”. E, dentre elas, consoante Adroaldo Furtado Fabrício[14], “a usucapião assume particular importância. No Brasil, em especial, duas razões concorrem para acentuar essa importância. Uma, de caráter histórico-geográfico, relaciona-se à grande extensão do território e à época relativamente recente de sua ocupação, de tal sorte que a estrutura fundiária ainda não se definiu por inteiro e bem longe está da segurança e estabilização que alcançou em países de modesto território e ocupação milenar. Outra, de ordem jurídica, pois o sistema registral imobiliário em vigor, à parte as notórias deficiências de execução, prende-se a um princípio de causalidade e não de abstração: daí que a ‘fé pública’ oriunda do registro é sempre relativa, e a ele se podem opor, com certo desembaraço, as mais variadas alegações – o que não ocorre em sistemas registrais abstratos, de modelo alemão, onde escassas são as objeções a priori oponíveis à cártula. Mesmo em condições outras, a usucapião é instituto necessário à segurança das relações jurídicas, exatamente como a prescrição liberatória, no sentido e na medida em que evita a perpetuação de situações de pendência e de dúvida. De resto, se a usucapião está justificada objetivamente por essa contribuição à certeza das relações jurídicas, não é menos certo que, de um ponto de vista subjetivista, ela se legitima na idéia de recompensa à determinação e à utilidade social de quem possui, e da eventual punição à inércia do proprietário”. É de se observar, ainda em relação à aquisição originária da propriedade por usucapião, que esta passa a assumir, em determinados diplomas – caso do Estatuto da Cidade -, um caráter de instrumento de ordenação do espaço urbano, como salientado por Francisco Loureiro[15]: “o usucapião individual tem a finalidade precípua de regularização fundiária da população de baixa renda e de explicitar pontos duvidosos da figura prevista no artigo 183 da Constituição Federal. Já ao usucapião coletivo incumbe dupla tarefa: não só regularizar a situação fundiária, mas permitir a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda, alterando o perfil socialmente indesejável de determinados núcleos habitacionais urbanos”. Este caráter diferenciado da usucapião urbanística em face da tradicional é vislumbrado por Sílvio de Salvo Venosa[16]: “o usucapiente não poderá ser proprietário de outro imóvel, urbano ou rural, em qualquer local do território nacional”. Também assim a usucapião especial agrária, consoante se pode verificar na obra de Armando Roberto Bezerra Leite[17]: “a usucapião especial apresenta quatro objetivos essenciais: constituir e consolidar a pequena propriedade rural; fixar o rurícola; aumentar a produção e diminuir as tensões sociais no campo”. Tércio Sampaio Ferraz Júnior[18] traz alguns exemplos notáveis desta postura voltada exclusivamente a reduzir o acesso à terra à demanda solvente: “a questão se torna um problema de força: ‘com o processo de abertura, o cara ganha o direito de falar mais grosso’ (Diretor do Programa Especial da Secretaria de Habitação). ‘Veja só: ninguém vai derrubar uma casa com gente dentro. É uma defesa. Eles não têm dinheiro para pagar advogado’ (Delegado-chefe da Divisão de Operações da SSPE). […] Diz o Diretor do Programa Especial da Secretaria da Habitação: ‘não se pode apoiar invasões, porque é problema de segurança pública…é uma excrescência, do ponto de vista social, os latifúndios urbanos…a tensão do conflito forçou o acordo’”. A abertura a que se refere a autoridade, a propósito, diz respeito ao período da Presidência do General João Baptista de Oliveira Figueiredo, que sucedeu à revogação do Ato Institucional nº 5 e principiou o processo de anistia aos que eram desafetos do regime instaurado em 1964. Álvaro Pessoa[19] refere também que “o processo de abertura e a necessidade dos votos populares alterou a forma de procedimento das autoridades. É significativo o depoimento do Coordenador do Programa de Recuperação de Favelas da Secretaria de Habitação: ‘nossa política atual é diferente da do governo anterior. Nós temos interesse em deixá-los onde estão e oferecer melhores condições de vida’. ‘Agora os votos vão para a oposição. Para essa turma que se aproveita dos pobres. O que mais me revolta é o fato da esquerda usufruir das vantagens ao invés do Governo’ (Proprietário da área invadida – Caso Skylab).” . E existem algumas situações concernentes à moradia que vêm a extrapolar a própria questão das invasões. Guilherme José Purvin de Figueiredo[20] recorda que “nos grandes núcleos urbanos – e aqui nos ateremos aos exemplos da Grande São Paulo – as áreas de mananciais por muitos anos resistiram à ocupação humana por se encontrarem ainda afastadas dos limites periféricos do meio ambiente urbano. Assim, até o início da década de 1970, os arredores das represas Billings e Guarapiranga eram áreas verdes bastante atraentes e ocupadas apenas por algumas poucas residências – casas de campo relativamente luxuosas e que tinham certo interesse em promover a proteção desses ambientes. O crescimento da população e das desigualdades sociais durante os últimos trinta anos na cidade, aliado a uma retumbante ineficiência dos Poderes Públicos Municipais, contudo, modificou radicalmente o quadro original. Hoje, imensas áreas de proteção de mananciais de águas estão ocupadas por favelas. A vegetação escasseia. Os dejetos domésticos correm a céu aberto em valas e, como nos adverte Luís Paulo Sirvinskas, ‘a descarga de esgoto doméstico e de efluente industrial sem tratamento e a disposição de resíduos sólidos nos cursos de água e nos mananciais vem comprometendo, cada vez mais, a qualidade dos recursos hídricos, dificultando e acarretando custos crescentes para atender aos objetivos do fornecimento de água de boa qualidade’. Barracos e casas de alvenaria sem alicerces pendem dos barrancos e estão sujeitos a desmoronamento durante as chuvas. A violência grassa em razão da absoluta falta de perspectiva de conquista de condições dignas de vida para a população local. Enfim, temos um quadro de completa degradação social e ambiental. Como é sabido, a ocupação humana nas áreas de mananciais decorre da criação de loteamentos clandestinos. Ou seja, a população que acorre a essas áreas muitas vezes desconhece que essas áreas não podem ser urbanizadas”.
5. Sobre as falácias da interdição da discussão da especulação imobiliária
Agora, reconhecida a existência do fato, poderia vir a seguinte observação: a de que mesmo sendo a especulação imobiliária uma realidade, caracterizadora de uso anti-social da propriedade, sua desconsideração se impõe a quantos não queiram que os inimigos da lei, da ordem e da natureza das coisas tenham razão, com o que só os “esquerdistas engajados” e os “inocentes úteis” podem continuar a discutir isto. Entretanto, esta objeção tem o mesmo sabor daquela que fez com que a Inquisição não permitisse a Galileu provar, mediante o telescópio, que a Terra girava em torno do Sol, com o que se verifica que não se tem, verdadeiramente, uma objeção, mas um argumentum ab utile, uma das falácias não formais mais empregadas para se ganhar uma discussão à falta de argumentos mais consistentes. Mas, admitindo que seja válida a objeção, fica complicado aceitá-la, quando se vê um sincero defensor do latifúndio como Augusto Zenun[21] afirmar que “a fisionomia fundiária, em termos de distribuição de terras, apresenta-se, no Brasil, com algumas desproporções, porque uns poucos dominam grandes áreas sem cultivá-las, as quais são conservadas para fins especulativos, tornando a terra verdadeira mercadoria. […] A balbúrdia reinante nos estudos apresentados por ilustres tratadistas tem sua procedência no desconhecimento da realidade brasileira, quando investem contra os latifúndios, condenam os minifúndios, ressaltam a propriedade familiar, para, a seguir, desfazerem cada uma dessas categorias. Para nós, toda propriedade é boa e respeitável, pouco importando sua área, desde que se apresente bem explorada, atendendo ao chamamento da função social – e é isto que constitui sustentação ao desenvolvimento”. O ruralista Carlos Roberto Martins Brasil[22] reconhece que “é sabido que a grande propriedade e a propriedade mal explorada não são agregadoras de grandes contingentes de mão de obra”. Afrânio de Carvalho[23], ao verberar a tentativa de Ruy Barbosa instituir entre nós o Registro Torrens, diz que “a circulação rápida, fácil, instantânea da terra, como se fora apenas um valor de bolsa, consideração primacial do sistema que se sobrepõe a qualquer outra, não mais constitui um ideal da legislação, que, ao contrário, procura balanceá-la com a conveniência de estabilização dos ruralistas em suas glebas em benefício da produção econômica. A mobilização excessiva do valor territorial por título que pode ser transmitido de mão em mão deixou de ser uma aspiração louvável para tranformar-se num perigo evitável, visto como o que convém é precisamente a permanência da terra nas mãos daqueles que sabem trabalhá-la e conservá-la”. Sílvio de Salvo Venosa[24], mesmo considerando a propriedade decorrência da natureza humana, diz, com todas as letras: “bem não utilizado ou mal utilizado é constante motivo de inquietação social. A má utilização da terra e do espaço urbano gera violência”. Paulo Torminn Borges[25], quando fala na usucapião pro labore, vai a pontos que não seriam nem sonhados pelos adjetivados de panfletários, sustentando que “a terra ocupada por quem não é dono nem a ocupa por título advindo do dono é terra abandonada pelo proprietário. E a humanidade, faminta, não pode tolerar mais imóvel rural afastado dos caminhos da produtividade”. Outro entusiasta do Movimento de 1964, M. Linhares de Lacerda[26] chega a afirmar que “terra ociosa, por ação ou omissão do proprietário, sem se cogitar de sua extensão (latifúndio ou minifúndio), é terra de uso ilegal. É verdade que algumas extensões territoriais, em virtude de circunstâncias especiais, apesar de apropriadas para a produção rural, podem conservar-se ociosas quanto a este destino, mas isto só acontecerá quando a ociosidade da terra represente um concurso mais valioso para o bem-estar social ou bem comum”. Aproxima-se tal concepção do exercício de fato das prerrogativas inerentes à propriedade, isto é, da posse, daquela adotada por Saleilles no início do século XX, e que foi desta forma refutada por Adroaldo Furtado Fabrício[27]: “pode-se ser autêntico possuidor sem explorar economicamente a coisa, seja por não prestar-se a mesma a tal finalidade, seja por não ser esse o interesse do possuidor, mas outro (afetivo ou estético, por exemplo)”. O eminente Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, neste particular, pressupôs, com certeza, que utilização econômica, na visão do civilista francês, traduziria, necessariamente, a condição de bem de produção, quando a utilização do imóvel como bem de consumo também se traduz como uma destinação econômica. Veja-se que a fundamentação da propriedade posta por Clóvis Bevilacqua[28] é justamente enfatizando o uso enquanto bem de consumo: “o verdadeiro fundamento da propriedade é o instinto de conservação, que leva a criatura humana a se apoderar das coisas que lhe servem, a princípio, para satisfazer a fome e, depois, as múltiplas necessidades de ordem física e moral”. Mas, de qualquer sorte, pensamos haver demonstrado que a admissão do fato da especulação como uso anti-social da propriedade não está interditada a quem não tenha quaisquer simpatias por partidos de “esquerda”.
6. Sobre a distinção entre posse e propriedade, as questões de registro e da tutela possessória
Note-se que, muitas vezes, quando se trata destas questões concernentes a possessórias envolvendo invasões, os debates travados pelos terceiros aos processos refogem à própria questão central, isto é, a comprovação do efetivo exercício de posse. O clássico Lafayette Rodrigues Pereira[29] recorda, insistentemente, que “o domínio e a posse são duas entidades radicalmente diferentes”. A posse decorre do fato, como aliás, observa Adroaldo Furtado Fabrício[30], com apoio em Savigny: “o que caracteriza a posse é o prescindir, para torna-la digna de proteção jurídica, se corresponde ou não à existência de um direito”. O domínio, no que tange aos bens imóveis, decorre somente do título jurídico, devidamente registrado, justamente pelo seu caráter de restrição aos direitos de terceiros, como se pode verificar nesta passagem do Des. Hamilton de Moraes e Barros[31]: “é da essência da propriedade que ela seja definida, absoluta e exclusiva. Ius in re, é necessário que se conheça bem a coisa sobre a qual o direito de propriedade se exerce. Se bem não se conhecerem suas estremas, quando se trata de propriedade territorial, ou fica prejudicado o titular do domínio, por usar de menos o que seriam as dimensões todas da coisa, ou prejudicado seria o confrontante, já que, num uso dilatado, além dos limites legítimos, justos, estaria invadida e, conseqüentemente, apoucada a esfera de disposição ou de fruição do confrontante. Além disso, indefinidos os limites da coisa e da esfera de ação dos titulares do direito, instala-se e permanece uma fonte permanente de incerteza, de insegurança e de conflitos. Convém, pois, à paz social e ao direito individual de propriedade que se aparte com nitidez o que pertence a cada proprietário, ou seja, que se fixe logo o que pertence a uma pessoa e o que pertence a outra. A razão disso é ser a superfície do globo terrestre dividida e subdividida, retalhada mesmo, vinculada ao patrimônio das pessoas”. Já aos tempos das Ordenações, dizia Lafayette Rodrigues Pereira[32]: “a nossa lei, porém, é absoluta; declara o domínio insubsistente em relação a quaisquer terceiros, antes do registro. Se não há domínio contra terceiros, não o há entre os contratantes”. Afrânio de Carvalho[33], ao tratar da essencialidade do registro imobiliário, observou acerca da isenção deste, que fora instituída por diploma de 1864, em relação a transmissão mortis causa e atos judiciais: “nesse regime, nenhum adquirente podia sentir-se seguro de sua aquisição, pois muita vez se abria no curso de direito uma encruzilhada, em que ele era conduzido, à direita, pelo titular legítimo, e, à esquerda, pela variante das transmissões causa mortis e dos atos judiciais, por outro ilegítimo, sem que em certo negócio o interessado tivesse meio de distinguir a sua ilegitimidade, dada a cobertura formal da documentação”. Esta situação parece ter contribuído sensivelmente para que verificasse, corriqueiramente, a presença de irregularidades e dúvidas no que tange à regularização da propriedade de imóveis, como salientado por Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[34]. Atualmente, parece a expressão adotada por Wilson de Souza Campos Batalha[35] traduzir consenso: “a preocupação fundamental do registro imobiliário tem sido, em nosso país, assegurar a certeza e a publicidade das transferências imobiliárias, sob quaisquer títulos, de molde a manter a continuidade registrária do domínio”. Note-se que, no que diz respeito às políticas de regularização fundiária, a questão do registro aparece como um ponto de estrangulamento, removível somente mediante a adoção de expedientes de concertação, como observa Edésio Fernandes[36]: “se, por um lado, existem os cartórios que se recusam a se envolver nos processos de regularização, por outro existe a falta de compreensão das prefeituras de que é fundamental a presença dos cartórios no processo de regularização e de que, nesse sentido, é preciso que avancemos com a formação de parcerias”.
Claro que a dogmática civilística admite tanto a posse direta como a posse indireta como tuteláveis pela via possessória. Entretanto, como observa o insuspeito José Carlos Moreira Alves[37], “a posse indireta pressupõe sempre a existência de posse direta, pois o possuidor direto é mediador da posse do possuidor indireto, razão por que a doutrina germânica, por vezes, o denomina Besitzmittler”. Isto significa, por outras palavras, que não pode o proprietário que simplesmente tenha deixado o terreno sem qualquer utilização fazer uso da tutela possessória. Mas o problema não se mostra de tão fácil solução, como aparenta. Quando o proprietário resolve constituir uma reserva particular de preservação natural, não estará ele exercendo uma das prerrogativas inerentes ao direito de propriedade – o direito de disposição – e, portanto, não estará exercendo posse? Embora estejamos a dizer uma obviedade aparente, observa-se, aqui, um exemplo claro de como a matéria probatória, em sede do exame da dinâmica do exercício dos direitos reais, é que, realmente, assume importância e, por isto mesmo, hão que se ter como temerários os juízos que se façam acerca do acerto ou erro das decisões no que diz respeito à posse, a não ser que se os faça em sede de apriorismos. Fábio Maria de Mattia[38], outrossim, embora voltando seu estudo aos direitos de vizinhança, aponta para as dificuldades inerentes à caracterização jurídica do uso da propriedade imóvel, sobretudo porque – diz, com apoio em Sílvio Rodrigues – “a doutrina não se satisfaz em circunscrever a idéia de abuso de direito aos casos de dolo, equiparando os atos emulativos aos abusivos. Viu seu progresso, entendeu ser abusivo não só o ato em que dolosamente visa o agente a causar um dano a outrem, como também aqueles em que tal dano é causado em virtude do titular exercer seu direito de maneira inconsiderada, irregular, em desacordo com sua finalidade social”. Seria, talvez, de se acusar de “panfletária” ou “esquerdizante” esta tese defendida em 1976 na tradicional Faculdade do Largo São Francisco, em plena vigência do Ato Institucional nº 5? Talvez mereça tal pecha, também, Clóvis Bevilacqua[39], ao dizer que “o interesse social, quando em conflito com o individual, deve prevalecer porque a sociedade é o meio em que o homem vive; não há homem fora da sociedade”. Ou ainda Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida[40], que, um pouco antes de invocarem em seu prol a autoridade de Carlos Alberto Bittar para verberarem as invasões de terras, ofertam ao conceito de propriedade produtiva – caracterização que imunizaria, em tese, o imóvel à desapropriação com títulos da dívida pública para fins de reforma agrária – a seguinte interpretação: “propriedade produtiva não é a que produz no interesse exclusivo e particular do proprietário. A produção há de atender aos interesses da coletividade, há de ser feita de forma solidarista, na feliz expressão de Gustavo Tepedino. Se ela tiver cunho especulativo, não atenderá sua função social, podendo ser desapropriada”. Ou Carlos Maximiliano[41], que disse, expressamente, acerca do uso dos bens de raiz: “o egoísmo é temperado; porque além do uso normal se toma em apreço a necessidade social. O dano, portanto, é relativo à noção de excesso; deve apreçar-se de acordo com os usos locais, a situação e a natureza dos imóveis”. Recorde-se, acerca do autor por último transcrito, que figurou dentre os que, no Supremo Tribunal Federal, entenderam que a gravidez de prisioneira política não era empecilho à sua extradição, como estrangeira perigosa ao interesse nacional[42], com o que também se mostra, aqui, não estar proibida aos que não esposem posturas “esquerdizantes” a adoção de qualquer posicionamento que não seja o de reconhecer a condição de déspota ilimitado a quem esteja investido na condição de proprietário imobiliário. Em publicação especificamente dedicada ao Pontal do Paranapanema, José Roberto Fernandes Castilho[43] fala a respeito da atuação do Estado de São Paulo, durante uma sucessão de Governos do PMDB e do PSDB: “o assentamento de trabalhadores decorre de uma demanda social antiga, antes fluida e informal e hoje organizada em vários movimentos sociais (além do MST e ‘Esperança Viva’, de Mirante; ‘Brasileiros Unidos Querendo Terra’, de Wenceslau; ‘Terra e Pão’, de Santo Anastácio; ‘Terra e Cidadania’, de Tarabai – v. a tônica na palavra ‘terra’). O processo de sua formação é bastante conhecido. Em meados da década de 80, a desaceleração da construção concomitante de três usinas hidrelétricas (Rosana, Taquaruçu e Porto Primavera) gerou um grande contingente de desempregados que permaneceram na região, acampados à margem de rodovias. Daí a constituição da Gleba XV de Novembro, desapropriada em 1984 (Governo Montoro). Depois – sem dúvida em razão da insegura questão dominial –, o MST se instala no início dos anos 90. A fazenda Santa Clara, no 11º Perímetro de Mirante do Paranapanema, foi reivindicada em 1992, durante o Governo Fleury. Foi a primeira vez que o Estado reivindicou terras devolutas no Pontal e é o primeiro assentamento ‘do MST’ na região. No dia 31 de dezembro daquele ano foi homologado o acordo para pagamento das benfeitorias (para um resgate histórico das lutas sociais por uma testemunha ocular, v. Lourdes Azedo, A questão das lutas sociais no Pontal do Paranapanema, Revista Justiça e Cidadania, n. 3, p. 35-40, dez 1996). Para a arrecadação de terras destinadas aos assentamentos, o Estado tem buscado o meio judicialmente adequado que é a ação reivindicatória de terras devolutas. No entanto, é certo que a ação titular do domínio(Sá Pereira) não se constitui no meio socialmente mais adequado para o caso. Como visto , a Justiça é extremamente morosa (a ação discriminatória do 14º Perímetro levou 7 anos para chegar até a sentença) e a necessidade dos acampados é premente: deve-se, pois, buscar um ‘atalho’. Num exercício de engenharia jurídica, este ‘atalho’ são os acordos nas ações reivindicatórias – ou mesmo discriminatórias (v. g., Fazenda Bom Pastor, maio/97) – mediante os quais o Estado indeniza as benfeitorias feitas de boa fé e ingressa na posse do imóvel. Desde 1995, já foram feitos quase 50 acordos do tipo, com recursos provenientes do INCRA”.
7. A questão do uso da força na tutela da propriedade e da posse na doutrina mais aceita
Se o preço da manutenção do caráter sagrado e inviolável da propriedade imobiliária for a morte dos sem-teto, será, para os que sustentam tais posições, um preço até muito barato, porque, afinal de contas, daí decorrerá a segurança dos “homens de bem”[44], dando-se uma extensão aos conceitos de legítima defesa da posse e desforço incontinenti que não é aceita pela doutrina mais ortodoxa. A explicação para a consideração do preço barato, efetivamente, pode deitar raízes nas teses smithianas da acumulação primitiva do capital, assim expostas por António José Avelãs Nunes[45]: “sendo todos os homens iguais, acumulam e enriquecem os que sejam trabalhadores (industriosos), poupados (parcimoniosos) e inteligentes; estão condenados a ser pobres os que são preguiçosos, perdulários e incapazes (pouco inteligentes). E esta teoria smithiana da ‘previous accumulation’ […] serviria depois para ‘explicar’ as desigualdades que o capitalismo industrial acentuou, glorificando os vencedores e degradando os perdedores e pobres, que não merecem qualquer piedade (a mendicidade foi mesmo considerada um delito punido pelo Estado, e muitos milhares de ‘mendigos’ e ‘vagabundos’ foram executados pelo ‘crime’ de serem pobres e, por isso, socialmente perigosos)”. Não se pode esquecer que a palavra inglesa “loser” – perdedor, fracassado -, nos EUA, especialmente, constitui um labéu de desprezo que se lança ao indivíduo. O saudoso Desembargador Celso Gaiger[46] narra um fato que mostra, efetivamente, a questão do preço que se considera barato diante do sacrário da propriedade: “participando de um Curso sobre Ações Possessórias em Goiânia, promovido com apoio da Faculdade de Direito, resolveram os participantes acompanhar a audiência de justificação liminar em ação de manutenção de posse promovida por diversas famílias de posseiros contra um grande proprietário-advogado e que seria realizada na semana do Curso na Comarca de Goiás Velho; antes da audiência, a surpresa pela informação de que a parte ré seqüestrara um dos casais autores, levando-os ao seu escritório e proibindo o contato com seus advogados; o juiz vacilou em tomar as providências requeridas, concordando, porém, em ir até o escritório do advogado, localizado ao lado do Fórum, persuadindo o referido casal – pessoas idosas e simples – a não assistirem à audiência, ficando, assim, liberadas do constrangimento a que foram submetidas, sem qualquer conseqüência para o autor da violência. Durante a audiência as portas e janelas do salão do Júri – onde a mesma se realizou – estavam guarnecidas por pistoleiros, ostensivamente armados, e diante do protesto dos advogados dos posseiros, o Juiz informou que se tratava de policiais, por ele requisitados para garantir a ‘ordem’; no decurso da audiência, na inquirição de uma testemunha dos AA., perguntada esta se o tratorista invasor da área de posse não se fazia acompanhar de jagunços armados, o Juiz, observando que não se tratava de jagunços, mas de seguranças, indeferiu a pergunta sob o fundamento de que lá todos andam armados e que, portanto, esta circunstância não caracterizaria a suposta violência”. Outrossim, temos de mostrar a ortodoxia do pensamento que estamos a exteriorizar acerca dos atos própria mano de defesa da posse: Orlando Gomes[47], por exemplo, ensina que “em caráter excepcional, admite-se a autodefesa, quando a agressão à posse se realiza em circunstâncias que exigem pronta, enérgica e imediata repulsa”. Sobre o direito de autodefesa, diz Maria Helena Diniz[48]: “o possuidor molestado, seja ele direto ou indireto, pode reagir, pessoalmente ou por sua própria força, contra o turbador, desde que tal reação seja incontinenti ou sem demora, e se dirija contra ato turbativo real e atual, mediante o emprego de meios estritamente necessários para manter-se na posse (CC, arts. 1.210, § 1º, e 188, I). Essa autodefesa só pode ser exercida contra o próprio autor da turbação, e não contra terceiros”. Tito Fulgêncio[49], depois de afirmar que “dada a iminência do perigo e a impossibilidade de a justiça intervir para proteger a posse turbada, deve reconhecer-se lícita a defesa privada, que, substituindo-se por um instante à pública ação da lei, impede que a violência prevaleça sobre o direito”, lança logo a advertência de que “a autodefesa destina-se precisamente a evitar o mal da violação do direito, e não pode ser transformada em instrumento de violação de direito alheio”. Pontes de Miranda[50] também se pronuncia deste modo: “em regra, porém, a resistência (em caso de turbação) ou o desforço (caso de esbulho) – a defesa, em suma, há de executar-se asinha, ex continenti, non ex intervallo”. Washington de Barros Monteiro[51] põe nestes termos seu alerta: “essa defesa, excepcionalmente concedida ao particular, deve ser exercida com presteza ex continenti, non ex intervallo. Se o possuidor se mostra moroso, tardio, preferível se torna se socorra das vias judiciais, ao invés de lançar mão de recursos que podem ser fonte de atritos e de lutas. Como bem disse o Ministro Orosimbo Nonato, a força empregada extemporaneamente reveste caráter de vingança privada, inimiga do Direito”. J. M. Carvalho Santos[52] assim se posiciona: “é preciso ter em vista que, se o intervalo é grande, já não há mais necessidade nem vantagem em se tolerar ainda o desforço, que quase sempre provoca conflitos e perturbações da ordem geral”. Lafayette Rodrigues Pereira[53], mesmo escrevendo antes de entrar em vigor o Código Civil de 1916, comentando a Ordenação Livro 4, T. 58, § 2, assim põe o seu ensinamento, após falar a respeito da atualidade da agressão como indispensável ao exercício do direito de desforço: “por incompatível com as teses da nossa Constituição política, não prevalece mais a distinção que fazia a citada Ord. entre pessoas de pequena condição e fidalgos e cavalheiros para dar a estes maior espaço para o desforço”. Este dado é de ser tomado em consideração a cada vez que se toma como menos grave do que as invasões a criação de loteamentos informais de alto luxo ou a ereção de barreiras contra vistorias por órgãos públicos competentes para tanto. Como se vê, não estamos discordando do pensamento exposto por Lenine Nequete[54] no sentido de que “repelir pela força uma turbação causada à posse não é exercer um ato violento de posse; porque, ao fazê-lo, ao repelir a violência, ao impor o respeito à minha posse, não usei senão um direito”. Estamos, apenas, buscando demonstrar que a defesa própria mano da posse deve ser entendida como exceção e, como tal, deve ser considerada autorizada em termos restritivos e não em termos latíssimos, dentro da clássica regra de hermenêutica: “como é uma exceção aos modos normais de defesa e garantia, ele tem que ser entendido em termos restritos e definidos”[55].
8. A questão das migrações internas e da caracterização do sem-teto como sujeito de direitos
Já tivemos a oportunidade de, mais de uma vez, ouvir de pessoas “de bem” a assertiva segundo a qual os autores da morte de menores que dormiam nas proximidades da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, mereciam uma medalha, porque os mortos não cresceriam e não se tornariam os perigosos bandidos do morro…o advogado Carlos Roberto Schlesinger[56] faz o seguinte comentário à postura da qual esta é detalhamento: “temos a opinião popular de que ‘bandido não merece direitos humanos’, ‘onde estão os direitos humanos das vítimas?’, além do clamor ignorante pela pena de morte como forma única de satisfação à sociedade quanto aos crimes praticados por aqueles a quem se pretende assassinar sob o manto da legalidade. No caso do Brasil, isto parece ainda mais claro, quando a clientela das Comissões de Direitos Humanos, sejam da OAB ou de outras entidades civis, é composta de grande maioria de presidiários, sem assistência judiciária ou com assistência deficiente. Isto não quer dizer sejam eles privilegiados, mas sim, ao contrário, de que eles são os despossuídos de direitos no momento da intervenção; o que é importante é que não se confunda a assistência a quem teve os seus direitos violados, seja ele presidiário, paciente de repressão psiquiátrica ou exilado político, com a concordância com a prática do crime”. Assim nos pronunciamos em evento realizado na Guatemala em 1997: “pode-se aplicar tanto ao migrante como à sua descendência o raciocínio desenvolvido por Celso Lafer a partir de Hannah Arendt para os refugiados: a perda dos lares, do trabalho, retirou-lhes o lugar no mundo e, pois, têm afetada a sua própria condição humana. Não se trata, pura e simplesmente, pois, de punir os malfeitores para infundir terror em quantos pretendam rebelar-se contra a mais que perfeita estrutura de poder consagrada pela ordem natural das coisas, cuja expressão máxima é o mercado. Os malfeitores, antes apavorados, passam a reagir, com o que os responsáveis pela segurança dos homens de bem, além de se engajarem na guerra contra eles, passam a fazer vítimas inocentes, a fim de mostrarem o poderio do aparelho repressivo do Estado. O ataque a pessoas independentemente da conduta – melhor ainda se forem inocentes e/ou inofensivas -, apenas por se enquadrarem num determinado estereótipo como apto a caracterizá-las como um inimigo objetivo, mostra-se fundamental à manutenção de qualquer dominação totalitária. E quando se fala em dominação totalitária, tem-se em vista não apenas o exercício do poder estatal, como também o do próprio poder econômico privado, cuja força para dobrar aquele não pode ser ignorada em absoluto. Esta visão, consoante Ela Wiecko Volkmer de Castilho, não contradiz em nada os supostos do Estado liberal, já que este é onipotente, desde que respeite e preserve a liberdade de empresa e a propriedade privada. Aliás, somente é possível a sobrevivência de um liberalismo econômico em toda sua plenitude quando a atuação do poder econômico privado não encontre qualquer tipo de oposição razoável. Hayek não hesita em dizer que considerar quaisquer formas de pensar que não se enquadrem no ideário liberista por ele sustentado como pura e simplesmente inferiores constitui condição indispensável à sobreviência da sociedade. A rebelião dos excluídos através da ação tipificada como criminosa, em que pese o clima de insegurança que efetivamente cria, serve paradoxalmente ao desiderato do titular do poder econômico privado, no sentido de se criar o clima para se aceitar como algo natural as arbitrariedades perpetradas pelos Poderes Públicos, para se considerar como um verdadeiro crime de lesa-Divindade manifestar qualquer tipo de oposição ao Estado benfazejo, mesmo que esteja desbordando dos limites juridicamente estabelecidos. De outra parte, o terror instalado implica a possibilidade de se anular qualquer poder de negociação daqueles que dependem do titular do poder de controle sobre os bens de produção, o que implica a redução mais confortável de um dos fatores do custo de produção: o salário. Este mesmo terror passa a ser, inclusive, convertido em fonte de lucros, pois proliferam, prestando serviço inclusive ao próprio Estado, as empresas privadas de segurança e a indústria armamentista – também em mãos de particulares -. Herbert Marcuse, a este respeito, observa que seria contrário à própria lógica do sistema voltado a disciplinar a natureza em prol do egoísmo dos titulares do poder econômico não considerar os demais indivíduos como integrantes de uma massa que só poderia ser considerada como um meio para possibilitar-lhes a aquisição de bens de consumo e dos confortos da técnica. Embora o terror sirva à exclusão, não se pode negar a capacidade de, dentro do próprio capitalismo, fazerem-se os necessários sacrifícios aos desejos da massa para que ele se salve. Assim, a princípio, o Judiciário está aberto a todos, pondo o Estado, inclusive, à disposição dos excluídos, quando violados em seus direitos, a assistência judiciária, para evitar que a rebelião termine por ultrapassar os limites necessários à fundamentação da manutenção do sistema, com o que o sonho marxista de que o sistema seja destruído por quem nele esteja inserido se esboroa. Deixar a criação de empregos e a fixação de salários pode, a longo prazo, diminuir o mercado consumidor e, assim, retardar o retorno do investimento. O êxodo rural, por seu turno, mostra-se determinante não só da baixa salarial como também do aumento de consumidores virtuais sem poder aquisitivo, diminuindo a produção agrícola pela falta de braços no campo e contribuindo para a escassez dos produtos alimentícios, conseqüentemente, para a alta dos preços respectivos. O excesso de contingente populacional, outrossim, se possibilita, por um lado, a formação de um exército de reserva que permite manter os salários baixos, por outro, pode ser apto a tornar a massa insuscetível de contenção, com o que passa o planejamento familiar a desempenhar um papel importante para evitar que o sistema chegue à insuportabilidade. A exploração irracional e predatória dos recursos naturais, a comprometer a qualidade de vida dos seres humanos, não deixa de ter suas conseqüências prejudiciais quanto ao turismo e ao desaparecimento da própria matéria-prima que possibilita o próprio exercício da atividade econômica. A ausência de políticas públicas do desenvolvimento regional, de eliminação de causas conducentes à migração forçada, coloca-se como uma das principais causas de exclusão da cidadania, com o que se entende ir além do campo da mera declaração de princípio a inscrição no art. 170. VII, da Constituição brasileira de 1988 do dever de se promover a redução das desigualdades regionais”[57].
9. Prevenindo mal-entendidos
Alguns esclarecimentos se fazem necessários, antes que resolva “mandar prender os suspeitos de costume”. Quando falamos na rebelião dos excluídos mediante a ação definida em lei como crime, não estamos a perpetrar o reducionismo comum de que a origem do delito se encontra na condição social – porque isto implicaria ignorar que beneficiários do sistema também cometem crimes, por um lado, e, por outro, implicaria lançar a falsa premissa de que a condição social é determinante da culpabilidade -, mas sim na inexistência de qualquer motivo para que os excluídos não pratiquem qualquer ação que se mostre antagônica a uma sociedade que desde logo se lhes declara hostil. Os fatos descritos por Ricardo César Pereira Lira[58] falam por si: “(a) a par do crescimento vegetativo, que, aliás, em alguns países, inclusive no nosso, não se vem elevando no mesmo gradiente de outrora, ocorre um significativo incremento da população urbana, em decorrência da industrialização; (b) a falta de uma política habitacional faz com que o assentamento dessa população nas cidades se processe de maneira inteiramente desordenada, sem qualquer planejamento e racionalidade; (c) o assentamento não é somente desordenado, mas iníquo, realizado sob o domínio da chamada ‘segregação residencial’, por força da qual as populações carentes e de baixa renda são ejetadas para a periferia do espaço urbano, onde vivem em condições as mais dilacerantes, agravadas pela inexistência de uma política de transporte de massa, recebendo as áreas de assentamento da população abastada e de classe média a concentração dos maiores benefícios líquidos da ação do Estado; (d) considerável atitude especulativa, em que os donos de extensas áreas urbanas, valendo-se do atributo da perpetuidade do direito de propriedade, por força do qual o não-uso é forma de exercício do domínio, criam um verdadeiro banco de terras em suas mãos particulares, entesourando lotes e glebas, enquanto aguardam o momento de locupletar-se, através da venda de áreas estocadas, com as mais-valias resultantes dos investimentos de toda a comunidade nos equipamentos urbanísticos e comunitários, financiados com os impostos pagos por todos nós”. Quando falamos em exclusão, estamos, na esteira de Washington Peluso Albino de Souza[59], conferindo ao conceito de “exclusão social” um conceito mais amplo do que o de “excluído do mercado”, até porque é perfeitamente possível ser incluído no mercado, porém excluído de direitos e excluído do mercado mas não excluído de direitos. O falido é excluído do mercado mas não é pechado com a despersonalização com que um sem-terra ou um sem-teto normalmente são, embora não excluídos do mercado[60]. E note-se que não estamos, com isto, a apoiar os movimentos desempenhados pelas massas que se aglutinam em torno dos problemas, mas apenas a apontar para o fato de que estes movimentos não surgiram sem uma causa e, não enfrentada, efetivamente, para além da mera questão de polícia, assim referida por Paulo Bonavides[61]: “pela segunda vez, a história do Brasil é testemunha de que a questão social – desta vez, por obra do neoliberalismo – tende a se converter numa questão de polícia. Ou, com mais propriedade, a transformar-se em algo que ultrapasse, em descaso e abandono, as ocorrências da década de 20, porquanto agora jazem, desamparados na degradação humana dos cortiços e favelas, 60 milhões de infelizes, condenados a atravessar o século e o milênio sem pão, sem teto, sem escola, sem saúde e sem emprego”. Quando falamos em “Estado benfazejo”, devemos tomar em consideração as pessoas em relação às quais ele se mostra benfazejo, que muitas vezes até mesmo o submetem. Aquelas pessoas que verberam a incompetência estatal quando atua na economia e, simultaneamente, bradam pelo auxílio público sem o qual não teriam forças para prosseguirem no mercado, aquelas pessoas que enfatizam “a necessidade de se regularizarem os loteamentos fechados”, com a “criação de desenhos urbanos que sirvam de proteção contra marginais”[62], aquelas pessoas que perpetuaram a cultura que, nas palavras de Luiz Vicente de Vargas Pinto[63], “escrevia catálogos de direitos e garantias individuais entre refeições servidas por escravos”. Pessoas que consideram um verdadeiro evangelho a pregação da Escola de Chicago, bem exposta por Avelãs Nunes[64]: “a solução passaria pela restauração da concorrência, pela morte do Big Government, pela privatização do sector empresarial do estado e dos serviços públicos, pela separação da esfera política (que competiria ao estado) da esfera económica (do foro exclusivo dos particulares), pela ‘libertação da sociedade civil’. E passaria, também, por um controlo social através de uma nova pedagogia de ‘disciplina’ dos professores e de reforço do papel dos pais nas escolas, pelo controlo das fontes de informação, pela marginalização dos intelectuais nocivos e dos grupos que lhe são próximos. É notório que esta lógica transporta no seu seio uma crítica à filosofia informadora e à prática concretizadora da democracia econômica e social que ganhou foros de constitucionalidade em bom número de países, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. E é notório também que ela arrasta consigo projectos de orientação totalitária, considerados como que o fruto necessário do excesso de carga do governo e da ingovernabilidade das democracias, do excesso da democracia e da crise da democracia, mas considerados também e talvez primordialmente como a solução desejada para acabar com o escândalo dos opressivos monopólios do trabalho por parte de quantos proclamam que ‘os sindicatos começam a ser incompatíveis com a economia de livre mercado’, e para abater os inimigos internos, i. é, todos aqueles que, embora cheios de boas intenções, cometem o ‘crime’ de querer transformar a sociedade, de pretender que o estado seja agente de transformações sociais no sentido de uma sociedade mais justa e mais igualitária. Salve-se o mercado, fonte pura e única da liberdade econômica e da liberdade política, e acabe-se com os sindicatos, com a contratação colectiva, com as políticas de redistribuição do rendimento e com as políticas de pleno emprego, com as garantias da segurança social, com a legislação reguladora dos despedimentos e com todas as ‘imperfeições’ e ‘impurezas’ que perturbam o bom funcionamento de uma sociedade que se ficciona ser composta por homens livres e iguais. E acabe-se também, é claro, com tudo o que esteja a serviço destas conquistas históricas das sociedades humanas. E domestiquem-se os professores. E controlem-se as fontes de informação. E marginalizem-se os intelectuais nocivos…e promovam-se os intelectuais bem comportados”. A referência do ilustrado Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra ao controle das fontes de informação traz à tona a preocupação posta por Liza Bastos Duarte[65], no sentido de que “se os processos midiáticos estão alterando a compreensão da realidade, influenciando a produção cultural, modificando valores sociais, éticos, estéticos, morais, e alterando comportamentos, é preciso ter presente que a mídia age pela construção de mitos; sua estratégia é transformar em natural o que é cultural. Assim, propõe papéis a serem adotados e estimula a produção de novos costumes, que se transformam em consenso, influenciando a norma legislativa e o próprio julgador”. Quando falamos na questão do êxodo rural, estamos tomando em consideração justamente a questão dos danos decorrentes não só dos obstáculos que se criam à realização da reforma agrária – que, longe de traduzir uma expressão “comunista”, está, antes, voltada a conferir à propriedade privada, enquanto instrumento de poder, um título de legitimação[66] – e que contribuem para legitimar a inércia governamental na adoção de qualquer iniciativa que lhe dê concreção, como também da própria degradação ambiental, que torna impossível o aproveitamento dos recursos ofertados pela terra, seja para fins de extração vegetal, seja para fins agropecuários. Como observa Washington Peluso Albino de Souza[67], “chega a ser incompreensível como a existência de volumosa legislação não tenha conseguido garantir ao País uma posição de verdadeiro desenvolvimento tecnológico e, ao contrário, sendo essa elevada produção legislativa marcada por processos atrasados e incapazes de garantir a permanência das grandes massas trabalhadoras no campo. As lutas e os ‘lobbies’ levados a efeito durante os trabalhos constituintes revelaram pouco ou nenhum interesse, bem como alheamento, da classe política e da administração por estas reformas, assim como a intransigência do empresariado, a despeito das leis e dos dispositivos constitucionais”.
10. Conclusão
Em tudo e por tudo, pois, quando se fala nestes temas, não há a necessidade de questionamento do sistema em seus aspectos puramente formais – isto é, da conformação jurídica das relações de poder -, não há a necessidade, pois, de se fazer a revolução: o que há, sim, é a necessidade de dar operatividade à integral proteção dos direitos humanos, no sentido de, como dito por Antônio Augusto Cançado Trindade[68], “atacar não apenas as conseqüências, mas igualmente – e talvez com maior atenção – as causas dos problemas da não-realização e da violação dos direitos humanos e da degradação ambiental. O aperfeiçoamento e fortalecimento dos sistemas de proteção internacional – dos direitos humanos e do meio ambiente – hão de fazer-se acompanhar da promoção e proteção não formais e não institucionalizadas dos direitos humanos e do meio ambiente no seio da sociedade civil”. Não está dito que se devam negligenciar as conseqüências, mas sim que nada adianta atacar a estas se as causas permanecem incólumes, podendo produzi-las a mais não poder. No que diz respeito ao tema desta pequena provocação, isto significa o seguinte: não adianta que se prendam os responsáveis pelo homicídio dos párias que não têm teto, nem tampouco que se lhes ofereçam depósitos de gente sob o nome de abrigo, se, efetivamente, não forem atacadas as causas da falta de moradia e de trabalho em condições compatíveis com a dignidade humana. No âmbito legislativo, os instrumentos aí estão, previstos tanto nas leis agrárias como no Estatuto da Cidade[69]. Já vão longe os tempos em que Cícero[70] considerava as leis agrárias dos Graco a maldição sobre o povo romano e louvava os que os mataram como benfeitores da República. Não se assentando mais a propriedade do solo no fato de os ancestrais estarem ali enterrados, como o era aos tempos de Cícero, e reconhecendo-se a limitação material do solo, por maior que seja o território nacional, não há como deixar de reconhecer a procedência do asserido por Nelson Saule Júnior[71]: “o Brasil sofre um grave problema do acesso à terra, demonstrado pelos vários conflitos de posse, seja na área urbana, seja na área rural, causando muitas vezes violência física e morte dos posseiros e das famílias envolvidas nos conflitos. Diante do elevado número de propriedades ociosas sem função social, o princípio da função social da propriedade deve ser aplicado pelas instituições e agentes públicos da União e demais entes federativos como princípio que deve nortear a solução dos conflitos sociais existentes nas cidades com relação à moradia, propriedade e meio ambiente”.
Informações Sobre o Autor
Ricardo Antônio Lucas Camargo
Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais – Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico.