Parecer sobre a utilização de subsolo municipal

Assunto: Utilização de subsolo municipal para abertura de túnel     interligando os prédios situados ao longo das vias públicas mediante permissão de uso a título oneroso. Viabilidade Jurídica.


1 – C O N S U L T A


A consulente pretende construir um túnel de interligação fazendo a conexão entre os prédios de sua propriedade  mediante a utilização do subsolo municipal para passagem de pedestres.


Consulta-nos quanto à possibilidade jurídica de pleito junto à Prefeitura Municipal de São Paulo solicitando permissão de uso do subsolo municipal a título oneroso.


2 – P A R E C E R


2.1 Introdução


Uma das matérias mais controvertidas na doutrina e na jurisprudência diz respeito à natureza jurídica da exação cobrada pelo Poder Público Municipal pela utilização do seu solo, subsolo e espaço aéreo.


Alguns doutrinadores lhe conferem natureza tributária a exigir a instituição de retribuição pecuniária por meio de lei em sentido estrito, em atendimento ao princípio da legalidade tributária (art. 150, I, da CF). No caso, seria a instituição de taxa fundada no poder de polícia para a fiscalização de obras executadas na propriedade municipal (solo, espaço aéreo ou subsolo). Essa taxa corresponde àquela prevista na primeira parte do art. 77, do CTN. Ela não se confunde com a taxa pela prestação de serviço público específico e divisível, efetivamente prestado ao usuário ou colocado à sua disposição, prevista na segunda parte do art. 77, do CTN.


Outros estudiosos sustentam que a retribuição pecuniária referida tem a natureza jurídica de preço público, categoria de direito privado, regida pelo princípio da autonomia da vontade e da licitude ampla, o que dispensa a instituição de sua cobrança por lei em sentido estrito.


A jurisprudência de nossos tribunais ora exige lei em sentido estrito entendendo tratar-se de taxa, ora permite a cobrança da retribuição por preço público, dispensando sua instituição por lei, porém, limitada essa cobrança a hipóteses de remuneração pelos serviços prestados e pelo desenvolvimento de atividades comerciais e industriais. Há casos, ainda, em que a proibição de cobrança do preço público está fundada na alegação de que o subsolo pertence à União.


Reina a confusão generalizada.


Em primeiro lugar, o que pertence à União não é o subsolo, mas os recursos minerais, inclusive os do subsolo (art. 22, IX, da CF).


De fato, desde a Constituição Federal de 1946 os recursos naturais foram desvinculados da propriedade do solo. O art. 176 da Constituição Federal de 1988 deixa isso bem claro.


 Outrossim, a jurisprudência do STJ admite a cobrança de preço público por Decreto, porém, apenas para a remuneração de um serviço público de natureza comercial ou industrial. Essa jurisprudência está atrelada à doutrina clássica dos financistas que só enxergam o preço público ou tarifa para remunerar a prestação de serviço público (não essencial) e para remunerar a atividade comercial ou industrial desenvolvida pelo poder público.


Transcrevemos as Ementas de dois Acórdãos do STJ para melhor compreensão:


“Ementa:


COMPETÊNCIA – Mandado de Segurança – Hipótese em que se objetiva a caracterização de preço público como tributo e conseqüente suspensão da exigibilidade do crédito tributário – Matéria não sujeita à apreciação do E. Tribunal de Justiça – Competência deste Primeiro Tribunal de Alçada Civil.


TAXA – Ocupação do solo urbano – Município de São Paulo – Utilização de vias públicas por concessionária de serviço público de distribuição de energia elétrica – Instalação de postes, linhas, torres e subestações de energia elétrica – Inadmissibilidade – Decreto nº 38.139/99 revogado pelo Decreto nº 40.532/01 – O segundo nada inovou em relação ao primeiro, apenas dele retirou os termos “fato gerador” e “alíquota” (que constavam dos incisos I e II do art. 9º), com o propósito de descaracterizar a natureza tributária da taxa então cobrada – Taxa em questão, não pode ser considerada porque não há serviço algum do Município, sem o exercício do poder de polícia – Caracterização como preço público – Inviabilidade – Se o uso privativo de um bem público pode acarretar à Administração a prestação de um serviço de fiscalização decorrente do exercício do seu poder de polícia, a cobrança só é possível por meio de taxa, que se afigura indevida na espécie por não estar prevista em Lei, mas em simples Decreto – Se aceita a alteração da natureza da imposição, passaria a ser não-tributária, pois resultaria de exploração econômica do patrimônio público e só se justificaria a cobrança como preço se se tratasse de remuneração por um serviço público de natureza comercial ou industrial, o que não ocorre na espécie – Tem a impetrante o direito de usar as vias públicas, para a transmissão de energia elétrica, independentemente de qualquer pagamento – Segurança concedida – Recurso improvido” (Resp nº 802.428-SP, Rel. Min. Francisco Falcão, J. em 02-05-2006, DJ de  25-05-2006, p. 181).


“Ementa:PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO.   RECURSO ESPECIAL.  EXPLORAÇÃO DO SERVIÇO TELEFÔNICO. PREÇO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA. INSTITUIÇÃO POR DECRETO MUNICIPAL. AUSÊNCIA DE PODER DE POLÍCIA OU SERVIÇO PÚBLICO. PREÇO PÚBLICO. USO DE BEM PÚBLICO. CONCESSÃO.INEXISTÊNCIA DE SERVIÇO COMERCIAL OU INDUSTRIAL. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA.1. A intitulada “taxa”, cobrada pelo uso de vias públicas, inclusive, solo, subsolo e espaço aéreo, para a instalação de equipamentos que permitem a prestação dos serviços de telecomunicações, não pode ser considerada como de natureza tributária porque não há serviço algum do Município, nem o exercício do poder de polícia, além do fato de que somente se justificaria a cobrança como “preço” se se tratasse de remuneração por um serviço público de natureza comercial ou industrial, o que não ocorre na espécie. Precedentes da Corte: REsp 802.428/SP, DJ 25.05.2006;       REsp 694.684/RS, DJ 13.03.2006; RMS 12.258/SE, DJ 05.08.2002; RMS 11.910/SE, DJ 03.06.2002; RMS 12081/SE, DJ 10.09.2001.2. Mandado de segurança preventivo, com pedido de liminar,  impetrado por concessionária de serviço público de telefonia fixa,            contra ato de  Secretário da Fazenda Municipal, consubstanciado          na cobrança de retribuição pecuniária mensal, instituída pela Lei    Municipal    nº 1964/01, editada em 31.12.2001, pelo uso de vias públicas, inclusive, solo, subsolo e espaço aéreo, para a instalação de que permitam o cumprimento da prestação dos serviços de telecomunicações.3. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o tribunal de origem pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos     autos. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os  fundamentos        utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão.4. Recurso especial provido.” (Resp nº 881937/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 14-4-2008).

Verifica-se da primeira Ementa transcrita que foi afastada a exação cobrada pelo Município por ausência de lei instituindo a taxa pelo exercício regular do poder de polícia (primeira parte do art. 77, do CTN). Afastou-se, igualmente, essa cobrança sob a ótica de preço público, porque ele só se presta para remunerar serviço público de natureza comercial ou industrial.


Quanto à segunda Ementa transcrita o V. Acórdão não vislumbrou nenhum serviço prestado pelo Município, nem o exercício do poder de polícia que pudesse justificar a cobrança de taxa. Acrescentou que a cobrança de preço só se justificaria “se se tratasse de remuneração por um serviço público de natureza comercial ou industrial, o que não ocorre na espécie”.


A expressão remuneração por um serviço público de natureza comercial ou industrial”, que consta de ambas as Ementas transcritas é, data vênia, criticável. Cabe falar em prestação de serviço expressando uma obrigação de fazer (circulação de bem de natureza imaterial), porém, descabe a cogitação de prestação de serviço de natureza industrial ou comercial. As atividades industrial ou comercial expressam uma obrigação de dar (circulação de bem de natureza material), nunca uma obrigação de fazer, que expressa a prestação de um serviço. Serviço nada mais é do que o esforço humano aplicado à produção de bem de natureza imaterial. “É fruto da atividade humana destinado à satisfação de uma necessidade (transporte, espetáculo, consulta médica) mas que não se apresenta sob forma de bem material” (Cf. Grande Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Delta, 1970, vocábulo serviço).


A hipótese versada na Ementa retrotranscrita não cuida de cobrança de taxa fundada no poder de polícia (taxa de polícia), pois não está a fiscalizar coisa alguma, nem se trata de retribuição pecuniária pela prestação de serviço público específico e divisível (taxa de serviço).


Na verdade, essa matéria não pode ser examinada à luz da doutrina clássica da Ciência das Finanças que enumerava as três receitas originárias do Estado: cobrança de tarifa ou preço público pela prestação de serviço público de natureza não essencial; cobrança de preço pelo desempenho de atividade comercial; e cobrança de preço pelo exercício da atividade industrial, como sustentado na Ementa do V. Acórdão proferido pelo STJ.


Essa questão da utilização do subsolo municipal há de ser analisada por meio de interação de normas de Direito Civil, de Direito Tributário, de Direito Administrativo e de Direito Financeiro. É o que faremos.


2.2 A propriedade municipal segundo o Código Civil


Nos termos do art. 79, do Código Civil o Município é proprietário do solo urbano, quer em decorrência de desapropriação (art. 5º, i, do Decreto-Lei nº 3.365/41), quer em conseqüência de registro do loteamento (art. 22 da Lei nº 6.766/79), quer, ainda, em virtude de doação de particulares. Pode, ainda, o Município incorporar ao seu patrimônio bens imóveis na hipótese de herança vacante, nos termos do art. 1.844 do CC.


Definindo o alcance e o conteúdo dessa propriedade, dispõe o art. 1.229 do Código Civil:


“A propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las”.


Logo, o subsolo da via pública, assim como o respectivo espaço aéreo, pertencem ao Município na profundidade e na altura úteis ao exercício do direito de propriedade.


Como se sabe, os bens públicos são de uso comum do povo, de uso especial ou dominical. Os bens de uso comum são aqueles destinados à livre utilização de todos, como praças, ruas, rios, mares etc. Os bens de uso especial são aqueles ocupados pelas repartições públicas em geral para prestação de serviços públicos.  Os bens imóveis de natureza dominical correspondem ao patrimônio privado do poder público sendo disponíveis, podendo ser locados, arrendados ou dados em comodato, bem como alienados mediante autorização legislativa precedida de certame licitatório (art. 101 do Código Civil).


Os bens de uso comum do povo e os de uso especial, também, podem ser convolados em bens de natureza dominical mediante desafetação.


2.3 Instrumentos jurídicos de utilização de bem público por particular


Os bens dominicais, exatamente porque integram o patrimônio disponível do Poder Público, servem de fontes de receitas públicas. Podem ser objetos de autorização de uso, de permissão de uso, ou de concessão real de uso a título gratuito ou oneroso. O uso desses institutos de direito administrativo tem merecido a preferência dos administradores públicos em relação aos institutos de direito privado, como a locação, o arrendamento e o comodato. A locação só é utilizada na hipótese em que o poder público figura como usuário de imóvel de natureza particular.


Os bens de uso comum do povo também podem se constituir em fontes de receitas públicas, independentemente de sua convolação em bens dominicais.


Exemplos disso são as autorizações ou permissões de uso das calçadas para instalação de bancas de revistas e jornais; para abrigar canteiro de obras; uso de boxes em mercados públicos; uso de vias públicas para bancas de feiras livres; uso privativo de vias públicas por um determinado espaço de tempo (Zona Azul) etc. Em todos esses casos há retribuição pecuniária representada por preço público, que não se confunde com a taxa, quer em sua modalidade de exercício regular do poder de polícia, quer em sua modalidade de prestação de serviço público específico e divisível.


Examinemos em rápidas pinceladas os principais instrumentos jurídicos para a utilização de bem público por um particular a título oneroso ou gratuito.


(a) Autorização de uso


É ato administrativo discricionário e precário, pelo qual a Administração consente que um particular utilize privativamente um bem público. Normalmente o prazo de uso é curto, podendo ser revogado a qualquer tempo. É a modalidade mais precária de utilização privativa de bem público.  Exemplos: uso de área para instalação de circo; uso de área como canteiro de obras.


(b) Permissão de uso


É ato administrativo discricionário e precário pelo qual se atribui ao particular o uso privativo de um bem público. Pode ser outorgado por prazo certo ou indeterminado. No primeiro caso haverá indenização se revogada sem justa causa.


(c) Concessão de uso


É o contrato administrativo pelo qual a Administração outorga ao particular o direito de utilizar-se privativamente de um determinado bem público. Depende de autorização legislativa e na maioria dos casos de licitação na modalidade de concorrência pública.


(d) Concessão de direito real de uso


É o contrato pelo qual a Administração transfere a utilização remunerada ou gratuita de terreno público ao particular para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo ou qualquer outra exploração de interesse social (art. 7º do DL 271, de 28.2.67).


2.4 A confusão entre o preço público e a taxa


A confusão entre um e outra ocorre porque na prática o preço público é denominado, ou melhor, é apelidado de taxa. Entretanto, o preço público é categoria de direito privado, regido pelo princípio da autonomia de vontades, ao passo que, a taxa é categoria de direito público submetida ao regime jurídico tributário.


À luz da Constituição Federal de 1967 o STF editou a Súmula 545 para distinguir preços públicos da taxa:


“Preços de serviços públicos e taxa não se confundem, porque estas, diferentemente daquelas, são compulsórias e têm uma cobrança condicionada a prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu.”


A compulsoriedade é o traço distintivo da taxa. Mas, não é só.  A exação pecuniária pela prestação de serviço público não essencial tanto pode revestir natureza jurídica de taxa, como pode revestir a natureza jurídica de preço ou tarifa, à livre opção do legislador. É o critério do regime jurídico do pagamento de que fala Geraldo Ataliba: “um pagamento, juridicamente, configura o preço ou a taxa, conforme seu regime jurídico”[1]. Marco Aurélio Greco, por sua vez, propõe um critério distintivo fundado no regime jurídico de atuação estatal: determinada atuação se submete a regime de direito público configurando serviço público, ou se submete a regime de direito privado, dando lugar a preço.[2]


Esses dois critérios só permitem distinguir o preço da taxa depois de elaborada e aprovada a lei. Há, na verdade, um critério material que apontamos e que permite essa distinção antes da instituição da retribuição pecuniária. O atendimento do interesse público primário, que corresponde às atividades essenciais e indelegáveis do Estado (atividade legislativa, atividade jurisdicional, atividade de segurança pública etc.) só pode se desenvolver sob o regime de direito público dando origem à taxa. O interesse público secundário articula-se com as atividades não essenciais, não inerentes ao Estado. Estas podem ser exercidas, quer diretamente pelo Estado, quer por meio de empresas concessionárias. Quando essas atividades secundárias são desempenhadas diretamente pelo poder público, existe a liberdade de o legislador criar a exação como taxa, ou como preço dentro do critério proposto por Geraldo Ataliba[3]. Entretanto, em havendo utilização compulsória de determinado serviço falece ao legislador a liberdade de escolha, devendo dar ao pagamento, nesta hipótese, a estrutura tributária. É o caso, por exemplo, da utilização obrigatória dos serviços de esgotos, prevista no art. 11, da Lei nº 2.312, de 3-9-1954[4].


Essas distinções foram feitas em função dos julgados examinados. Contudo, ela não tem pertinência direta com o tema da consulta que não se refere à prestação de serviço público, mas de exploração de bem público.


No que diz respeito ao tema pertinente à consulta objeto deste parecer  é oportuna a lição de Regis Fernando de Oliveira, que teceu as considerações adiante mencionadas para afastar a confusão entre a taxa e o preço público pela utilização de via pública na chamada “Zona Azul”:


Não se pode falar em poder de polícia, porque não está restringindo o direito de propriedade, nem a liberdade dos indivíduos. Simplesmente, explora seu próprio bem, possibilitando que os indivíduos, durante certo tempo, usem-no, em seu prol, mediante pagamento de um preço.


O exercício do poder de polícia estará na fiscalização de trânsito, que é de competência do Município (inc. V do art. 30), e não no uso do espaço físico de estacionamento.


Nada impede que o Poder Público utilize seu bem para exploração econômica. Ao contrário, deve fazê-lo, diante dos problemas financeiros que pode encontrar”.[5]


Como se verifica, o ilustre titular da cadeira de Direito Financeiro da FADUSP, ante as dificuldades financeiras enfrentadas pelo Poder Público, situa a cobrança de preços pela utilização de bens públicos no âmbito do poder-dever da Administração Pública.


Conferiu-se caráter de obrigatoriedade àquela faculdade prevista no art. 103 do Código Civil:


“O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for legitimamente estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem”.


O novo estatuto material não deixa margem de dúvida quanto à possibilidade jurídica de exploração econômica de bens de uso comum do povo.


Veremos, oportunamente, que o Município de São Paulo estabeleceu diretrizes para utilização de vias públicas e dos respectivos subsolo e espaço aéreo prevendo a cobrança de preço público.


Julgados que reclamam a presença de lei para cobrança de preço público pela utilização de bem público, e não são poucos os julgados nesse sentido, confundem a taxa pelo exercício regular do poder de polícia com o preço relativo à exploração econômica do bem público.


Deixando de lado a extensa definição enumerativa do art. 78, do Código Tributário Nacional preferimos definir sinteticamente o poder de polícia como sendo a “atividade inerente do poder público que objetiva, no interesse geral, intervir na propriedade e na liberdade dos indivíduos, impondo-lhes comportamentos comissivos ou omissivos”[6].


O poder de polícia é sempre discricionário, mas tem por limite a lei.


Certamente, o poder público municipal pode criar taxa de fiscalização de obras executadas por particulares, concessionárias de serviços públicos ou não, nas vias públicas e nos subsolos. Impõe-se, no caso, a observância de regime de direito público, mais precisamente,  do regime jurídico  de direito tributário, pois a  exação cobrada pelo poder público reveste a natureza jurídica de receita pública derivada. Vale dizer, corresponde à receita pública compulsória que resulta do exercício regular do poder de polícia: a fiscalização de obras executadas por concessionárias ou empreiteiras. É dever do Município fiscalizar a execução dessas obras. Por isso, ele responde civilmente em casos de acidentes causados nas vias públicas em virtude de buracos abertos e fechados de forma defeituosa por parte de concessionárias e empreiteiras.


Entretanto, essa taxa de polícia, que só pode ser instituída por meio de uma lei em sentido estrito, nada tem a ver com a cobrança de preço público decorrente de exploração econômica do bem público regida por normas de direito privado.


Outrossim, julgados que admitem a cobrança do preço público, mas que limitam essa cobrança às hipóteses de remuneração de serviços públicos ou de atividades industriais e comerciais do poder público[7] apegam-se à antiga doutrina da Ciência das Finanças que não mais pode subsistir a partir do advento da Lei nº 4.320, de 17-3-1964, que instituiu Normas Gerais de Direito Financeiro.


O art. 11 da Lei nº 4.320/64 classifica a receita pública em duas categorias econômicas: receitas correntes e receitas de capital. O § 4º desse art. 11, por sua vez, classifica as receitas por fontes. Tanto a receita tributária, como a receita patrimonial, a receita agropecuária, a receita industrial e a receita de serviços integram a categoria de receitas correntes.


As receitas industriais, comerciais e de serviços são aquelas geradas pelo Estado no exercício da atividade empresarial. Essa atividade é atípica do Estado e é motivada por inúmeras razões: desinteresse do setor privado no desenvolvimento de determinada atividade, quer pelo vulto do investimento necessário, quer pela demora no retorno de capital investido; imperativos de segurança nacional; enfim, o crescente intervencionismo estatal conduziu o poder público a posicionar-se como gestor de empresas industriais e comerciais, ora assumindo feição concorrencial, ora assumindo feição monopolítica.


As receitas patrimoniais, como o próprio nome está indicando, são aquelas geradas pela exploração do patrimônio do Estado. O patrimônio estatal compõe-se de patrimônio mobiliário e patrimônio imobiliário. O patrimônio mobiliário é composto de títulos representativos de crédito e de “ações” que representam parte do capital de empresas. Esses valores mobiliários rendem juros ou dividendos. Podem, também, esses valores mobiliários serem alienados com o fito de obter a receita originária. Na prática, essa venda do controle acionário dá-se por meio de privatização que esteve em moda na década de noventa.


As rendas do patrimônio imobiliário, no âmbito municipal, são as representadas pela exploração econômica do bem público, como as vias públicas e os respectivos subsolos: Zona Azul; autorização de uso da calçada para colocação de mesas e cadeiras diante de bares e restaurantes; autorização, permissão e concessão real de uso de bens públicos de natureza dominical, permissão de passagem de pedestres através de túnel executado no subsolo etc. Outrossim, os bens públicos de natureza dominical podem até serem alienados para o fim de obtenção de receita pública originária.


Logo, a jurisprudência que veda a cobrança de preço público pela exploração de seu patrimônio imobiliário pelo poder público contraria Normas Gerais de Direito Financeiro. Ela merece revisão à luz do direito positivo desvinculando-se da posição doutrinária dos financistas clássicos.


No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a matéria dividiu as opiniões dos julgadores, mas há forte corrente no sentido da possibilidade jurídica de o Município cobrar das concessionárias de serviços públicos a permissão de uso de bens municipais. Nesse sentido vejam-se as ementas abaixo:


“CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇOS DE TV A CABO – Instalação de cabos subterrâneos e utilização de postes – solo, subsolo e espaço aéreo municipal – cobrança de preço mensal de permissão de uso – lei municipal 4.544/2001 – competência – natureza do tributo – legalidade – Recurso da autora ao qual se nega provimento” (Ap. Civ. nº 946.162/5/5-00. Rel.Des. Luciana Bresciani)


Cumpre esclarecer que a despeito do que está na Ementa a hipótese versada é a de cobrança de preço pela permissão de uso de bens municipais, como está esclarecido no corpo do acórdão.


“Mandado de Segurança – Uso remunerado das vias públicas – Município de São Paulo – Possibilidade de cobrança – Inocorrência de tributação extraordinária – Autonomia municipal preservada – Recurso oficial e voluntário providos” (Ap. nº 277.935.5/1-00. Rel. Des. Borelli Thomaz).


“MANDADO DE SEGURANÇA. Cobrança. Utilização de subsolo. Município de Sumaré. Instalação de equipamentos necessários à transmissão do serviço de TV a cabo. Legalidade. Competência da Municipalidade para legislar sobre a utilização de subsolo. Hipótese em que tal serviço não se caracteriza como um serviço público essencial, mas sim como um serviço de utilidade pública. Sentença mantida. Recurso não provido” (Ap. Civ. Nº 994.09.232979-5. Rel. Des. Vera Angrisani).


“MANDADO DE SEGURANÇA. Prestadora de serviços de TV por assinatura. Permissão de uso das vias e logradouros públicos incluídos o espaço aéreo e o subsolo, para a passagem de cabos. Cobrança de contribuição pecuniária pelo uso privativo e econômico de bem público. Admissibilidade. Exigência de natureza administrativa, caracterizada como preço público. Inexistência de direito líquido e certo. Sentença mantida. Recurso não provido” (Ap. Civ. Nº 833.055-5/8, Rel. Des. Peiretti de Godoy, j. em 11-11-2009).


Finalmente, nos autos do incidente de inconstitucionalidade de Lei nº 77.847-0/2-00 da Comarca de Assis, o Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por expressiva maioria, julgou improcedente o incidente de inconstitucionalidade firmando a tese de que “pode a Municipalidade cobrar pela permissão de uso de bens municipais por concessionárias de serviços públicos” (Relator: Des. Barreto Fonseca).


No caso, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu que não houve criação de taxa pelo poder de polícia que o Município não tem sobre os serviços e instalações de energia elétrica, mas, tão-só se estipulou preço pela permissão de uso de bens municipais, o que pode a Municipalidade fazer (incisos I e VIII do art. 30, em combinação com o caput do art. 182, ambos da Constituição da República e inciso VI do artigo 2ºda Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001”.


2.5 Da legislação municipal


No Município de São Paulo foi editada a Lei nº 13.614, de 2 de julho de 2003 que estabelece as diretrizes básicas para a utilização de vias públicas municipais, inclusive dos respectivos subsolo e espaço aéreo, e das obras de arte de domínio municipal, para  a implantação e instalação de equipamentos de infra-estrutura urbana destinados à prestação de serviços públicos e privados.


Essa lei prevê em seu art. 8º a retribuição mensal pelo uso das vias públicas municipais, incluindo os respectivos subsolo e espaço aéreo, e das obras de arte de domínio municipal”.


O citado instrumento normativo tem matriz constitucional no inciso I, do art. 30 em combinação com o caput do art. 182 da Constituição Federal.


De fato, é da competência legislativa do Município regular a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes fixadas em lei para ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.


A Lei municipal nº 13.614/2003 tem, também, amparo no art. 2º da Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade – que regulamenta em âmbito nacional o disposto no art. 182 da Constituição Federal.


Como vimos, uma lei que permite a cobrança do preço pela utilização de bens públicos por concessionárias ou não tem pleno amparo na jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.


Portanto, a pretensão da consulente de executar um túnel de interligação mediante utilização de subsolo municipal tem guarida na Constituição Federal, na lei e na jurisprudência.


Cabe à consulente elaborar o projeto técnico do Túnel de Interligação para análise e parecer do Conselho Técnico de Análise de Projetos e Obras, órgão integrante do Departamento de Controle de Uso de Vias Públicas – CONVIAS – da Secretaria da Infra-Estrutura Urbana – SIURB (arts. 4º e 5º).


2.6 Precedentes


No âmbito do Município de São Paulo há pelo menos dois precedentes outorgando a permissão de uso de subsolo municipal, a título oneroso, para passagem subterrânea.


O primeiro precedente refere-se ao Decreto nº 35.309, de 16 de janeiro de 1996, pelo qual ficou permitido à “Itaú Seguros S/A o uso, a título precários e oneroso, de trechos do subsolo da Praça Alfredo Egydio de Sousa Aranha e da Avenida Armando de Arruda Pereira, para a interligação dos blocos dos edifícios que integram o Centro Empresarial Itaú Conceição” (art. 1º – Doc. anexo).


O segundo precedente refere-se ao Decreto nº 47.510, de 26 de julho de 2006, pelo qual ficou “permitido à Urbanizadora Continental S/A Comércio, Empreendimentos e Participações o uso, a título precário e oneroso, da área de propriedade municipal correspondente a trecho de subsolo da Avenida Leão Machado, no Distrito do Jaguaré, Subprefeitura da Lapa, para passagem subterrânea destinada exclusivamente à circulação de pedestres, ligando o Continental Shopping Center ao seu estacionamento, vedada a utilização de quaisquer atividades comerciais, inclusive exposição de mercadorias”. (art. 1º -Doc. anexo).


3 Conclusão


Do exposto, respondemos afirmativamente à consulta formulada entendendo viável do ponto-de-vista jurídico pleitear junto ao órgão competente da Prefeitura de São Paulo a permissão de uso a título precário e oneroso de trechos dos subsolos das vias públicas apontadas, para execução do túnel de interligação de prédios da consulente exclusivamente para passagem de pedestres.


Notas:


[1] Considerações em torno da teoria jurídica da taxa. Revista do Direito Público, v. 9, p. 53.

[2] Distinção entre taxa e preço, RT-456/42.

[3] Cf. nosso Direto financeiro e tributário. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 44-45.

[4] A Lei paulista de nº 9.580, de 30-12-66 adotou o regime tributário para cobrança dos serviços de águas e esgotos da Capital, então prestados pelo DAE. Posteriormente, quando aqueles serviços foram transferidos para a Superintendência de Águas e Esgotos da Capital – SAEC – a Lei nº 10.399, de 18-5-1971 conferiu ao pagamento a estrutura tarifária que continua até hoje.

[5] Receitas não tributárias. 2ª  ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 130.

[6] Ob. cit. p. 7.

[7] Resp nº 802.258/SE, Resp nº 694.684/RS, Resp nº 881937/RS; RMS 11910/SE, RMS 12081/SE, RMS nº 12.081/SE; AgRg no Resp nº 1195374/RJ.


Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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