Resumo: Hodiernamente, não há mais uma concepção una do que é a família. Consagra-se contemporaneamente como uma instituição mutável, se formando através dos vínculos afetivos dos seus integrantes, e não mais apenas, pelos vínculos sanguíneos. Ante a diversidade de famílias, que não seguem mais um padrão em sua formação, tem-se como referencial de filiação a socioafetividade com base, principalmente, na realidade social. O entendimento jurisprudencial moderno reconhece a paternidade sociológica através da comprovação da posse de estado de filho. Dentre as paternidades socioafetivas ressalta-se a existente entre madrastas, padrastos e seus enteados. Após a declaração da paternidade socioafetiva, aglutinam-se a ela todos os direitos e deveres inerentes à paternidade, inclusive a obrigação alimentar que deve compreender o mínimo vital ao alimentando, respaldando-se no princípio da dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: família, paternidade socioafetiva, posse do estado de filho, fundamentos e efeitos, alimentos.
Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução do instituto família. 2.1. Evolução histórica. 2.2. Conceito de família. 2.3. Espécies de família. 2.3.1. Tradicional. 2.3.2. União estável. 2.3.3. Monoparental. 2.3.4. Homoafetiva. 2.3.5. Substituta. 2.3.6. Adotiva.2.3.6.1. Adoção à brasileira. 2.3.6.2. Enteados versus padrastos. 3. Paternidade socioafetiva. 3.1. Conceito. 3.2. Posse do estado de filho. 3.3. Fundamentos e efeitos. 3.3.1. Fundamentos normativos para o reconhecimento da paternidade socioafetiva. 3.3.2. Efeitos jurídicos. 3.4. Socioafetividade entre enteado e padrasto. 4. A questão alimentar versus socioafetividade. 4.1. Conceito de alimentos. 4.2. Sujeitos da obrigação alimentar. 4.3. Alimentos na paternidade socioafetiva. 5. Considerações finais.
1. Introdução
O presente estudo traz à baila um dos assuntos atualmente suscitados pelo Direito de Família: a existência ou não de paternidade socioafetiva entre padrastos, madrastas e enteados e a obrigação alimentar decorrente desta relação.
Hodiernamente a doutrina e jurisprudência, em resposta e adequação à realidade social, já reconhece a paternidade socioafetiva que está baseada em laços de afeto, independente dos laços biológicos. Apesar de ainda gerar polêmica na seara jurídica, tal posicionamento tende a se pacificar.
Destarte, torna-se necessário ao entendimento deste assunto, verificar a evolução do instituto família, em breve análise de sua evolução histórica; e do conceito de família e suas espécies (tradicional, união estável, monoparental, homoafetiva, substituta e adotiva), lastreando-se sempre na análise do vínculo socioafetivo entre padrastos, madrastas e enteados em face da existência primeva de um vínculo por afinidade.
Em seguida proceder-se-á a análise da paternidade socioafetiva quanto ao conceito, comprovação através da posse do estado de filho, seus fundamentos normativos e efeitos jurídicos e a afinidade e conseqüente socioafetividade entre padrasto e enteado. A seguir abrangerá a questão alimentar decorrente da socioafetividade, para tanto, explanará acerca do conceito de alimentos, sujeitos da obrigação alimentar e, enfim, alimentos na paternidade socioafetiva.
Espera-se demonstrar que a paternidade, deve espelhar a realidade sociológica, não se atendo simplesmente à realidade genética, ou seja, à comprovação da filiação por DNA. Compreende-se, pai não é aquele que necessariamente partilhou sua carga genética, mas aquele que efetivamente participou do crescimento, educação, formação do seu filho, dando-lhe amor, afeto, atenção.
Fecha-se este trabalho com a demonstração da existência ou não da paternidade socioafetiva entre padrastos, madrastas e enteados e suas implicações na seara jurídica. Buscando-se através deste estudo, estimular a discussão e pesquisa acerca do tema, almejando contribuir de forma concreta para o surgimento de novos paradigmas no direito de família.
2. Evolução do instituto família
2.1. Evolução histórica
A família tradicional era espelhada no liberalismo, tendo como paradigma de filiação a origem biológica. Atualmente, ante a diversidade de “famílias”, que não seguem mais um padrão em sua formação, tem-se como referencial de filiação a socioafetividade.
O ordenamento jurídico pátrio passou a prever e tutelar essa nova situação familiar com o advento da Constituição Federal de 1988, sendo reafirmada, timidamente, pelo Código Civil de 2002.
Neste contexto, surgem discussões e teorias sobre a paternidade socioafetiva, como demonstra excerto doutrinário abaixo:
“O desempenho perene da função de pai ou de mãe, com a criação de laços afetivos recíprocos com a criança e o desempenho das atividades de educação e cuidado passa a ser visto como suporte fático da filiação, concepção esta que ganharia força após a Constituição de 1988 e sua regulamentação das relações familiares com especial atenção aos princípios da liberdade, da igualdade e da afetividade”.[1]
A família contemporânea é mutável adequando-se à realidade social que está inserida, concebe-se a partir do afeto, advindo do estado de família, independente de laços genéticos e ideias preconcebidas. Fundamenta-se em preceitos sociológicos e afetivos, tendo por objetivo maior, a dignidade da pessoa humana e a felicidade de seus membros.
Neste contexto, apresentam-se entidades familiares como a união estável, homoafetivas, monoparentais, substitutas, adotivas e aquelas que despontaram por último, e ainda não receberam classificação, como as formadas por um casal e seus filhos exclusivos e comuns.
Foi se o tempo em que as madrastas eram más, como as dos contos “Cinderela” e “Branca de Neve”. Hoje, as relações entre enteados e madrastas e padrastos é amena, feliz e afetuosa. Em face da evolução da sociedade e da grande quantidade de divórcios observados é natural que se formem famílias com esta composição.
2.2. Conceito de família
Consultando-se o vocábulo família no dicionário ter-se-á por definição “Conjunto de todos os parentes de uma pessoa, e, principalmente, dos que moram com ela. Em sentido mais restrito, marido, mulher e filhos.”[2]
Depreende-se deste conceito que a família em sentido amplo decorre do parentesco, podendo ser, também, entendida, como aquela que decorre da convivência na mesma moradia, aquela fundada em preceitos de convivência e afetividade. Percebe-se ainda que restritamente, família é aquela formada por marido, mulher e filhos, ou seja, trata-se da concepção tradicional de família.
A conceituação jurídica de família também se fulcra, precipuamente, no parentesco, sendo definida por VENOSA (2007), como:
“Desse modo, importa considerar a família em conceito amplo, como parentesco, ou seja, o conjunto de pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar. Nesse sentido, compreende os ascendentes, descendentes e colaterais de uma linhagem, incluindo-se os ascendentes, descendentes e colaterais do cônjuge, que se denominam parentes por afinidade ou afins”.[3]
2.3. Espécies de família
Com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a dissolubilidade do casamento e a tutela às uniões livres, as famílias começaram a se estruturar de maneiras diversas. Modernamente, não há que se falar em família, mas, em famílias.
A concepção tradicional de família decorrente do casamento perdeu espaço, surgiram novas estruturas familiares fundadas no afeto, igualdade, liberdade e melhor interesse da criança. Pois, a formação da família não advém somente do matrimônio, como bem explícita MUNIZ (1993:77):
“A família à margem do casamento é uma formação social merecedora de tutela Constitucional porque apresenta as condições de sentimento da personalidade de seus membros e à execução da tarefa de educação dos filhos. As formas de vida familiar à margem dos quadros legais revelam não ser essencial o nexo família-matrimônio: a família não se funda necessariamente no casamento, o que significa que casamento e família são para a Constituição realidades distintas, a Constituição apreende família por seu aspecto social (família sociológica). E do ponto de vista sociológico inexiste um conceito unitário de família”.[4]
Aponta de maneira brilhante, a jurista DIAS (2001) como são as famílias contemporâneas:
“As famílias modernas ou contemporâneas constituem-se em um núcleo evoluído a partir do desgastado modelo clássico, matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, patrimonializado e heterossexual, centralizador de prole numerosa que conferia status ao casal. Neste seu remanescente, que opta por prole reduzida, os papéis se sobrepõem, se alternam, se confundem ou mesmo se invertem, com modelos também algo confusos, em que a autoridade parental se apresenta não raro diluída ou quase ausente. Com a constante dilatação das expectativas de vida, passa a ser multigeracional, fator que diversifica e dinamiza as relações entre os membros”.[5]
2.3.1. Tradicional
A família tradicionalmente concebida é aquela advinda do matrimônio e consubstanciada no núcleo formado pelo casal e seus descendentes. Por muito tempo, foi o único modelo familiar aceito pelo Estado impregnado pelos dogmas liberais e cristãos.
Contudo, devido às constantes mudanças sociais, que se refletiram na Constituição de 1988; “dentre as quais vale destacar a substituição do modelo tradicional de família, de ordem patrimonial, centrada no casamento civil, para uma família formada com base na afetividade”[6]; o Estado passou a tutelar, além da família tradicional, outras formas de entidade familiar.
2.3.2. União estável
“É interessante observar que no passado qualquer referência jurídica à família tomava por base o casamento. Só mais recentemente a família foi observada pelos juristas sob o prisma de instituição, abrangendo as uniões sem casamento”.[7]
A Carta Maior consagrou em seu art. 226, § 3º, a união estável como entidade familiar, apregoando “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
Tendo seus pressupostos dispostos no art. 1º da lei n.° 9.278/96, que diz: “É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.”
Portanto, a união contínua, duradoura e pública entre pessoas de sexo diferente com o fito de constituir família, forma entidade familiar que deve ser protegida pelo Estado. Corrobora com este entendimento a seguinte posição jurisprudencial:
“UNIÃO ESTÁVEL. CONVIVÊNCIA SOB O MESMO TETO. PARTILHA DE BENS. 1- Configura união estável a convivência contínua e pública de um homem e uma mulher, com o objetivo de constituir família. Essencial que tenha aparência de casamento. Dispensável, contudo, a convivência sob o mesmo teto. 2- Comprovada a união estável, os bens adquiridos e as dívidas contraídas na sua constância devem ser partilhados entre os conviventes. 3- Apelação da autora provida em parte”.[8]
2.3.3.Monoparental
“Entende-se por entidade familiar aquela formada por apenas um dos pais e seus descendentes, é a denominada família monoparental”.[9] Tal formação familiar está consubstanciada na CF, art. 226, § 4º: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” e demonstra a adequação da família à realidade social em que está inserida.
No Brasil, segundo dados do IBGE[10] (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2007, para cada quatro casamentos foi registrada uma dissolução (divórcios diretos sem recurso e separações). Após 30 anos de instituído, o divórcio atingiu sua maior taxa desde 1984. Ante tal situação, é natural que muitas famílias sejam formadas apenas por um dos genitores e sua prole, merecendo, também, a tutela estatal.
2.3.4. Homoafetiva
Apesar, do grande repúdio social, ainda, existente e das reações homofóbicas as uniões entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade que se apresenta. Devendo ser tuteladas e protegidas, pois, quando se fundam em preceitos afetivos e de assistência mútua, formam famílias (núcleos de cuidado e proteção) como qualquer outra entidade familiar.
Defronte a ausência de previsão legal, deve-se utilizar a analogia a fim de reconhecer e declarar tal união, não havendo normas expressas que as tutelem e a jurisprudência ainda é tímida quanto à sua concepção.
Consoante entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da união estável entre pessoas, também denominada união homoafetiva, demonstra a possibilidade de reconhecimento por analogia desde que presentes as demais condições, devida a ausência de vedação expressa:
“PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. 1. Não há ofensa ao princípio da identidade física do juiz, se a magistrada que presidiu a colheita antecipada das provas estava em gozo de férias, quando da prolação da sentença, máxime porque diferentes os pedidos contidos nas ações principal e cautelar. 2. O entendimento assente nesta Corte, quanto à possibilidade jurídica do pedido, corresponde à inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. 3. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. 4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. 5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. 6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. Recurso especial conhecido e provido (grifos nossos)”.[11]
Como explicita DIAS (2001), estas relações são premidas pelo preconceito:
“Muito raras têm sido as decisões judiciais que acabam por extrair conseqüências jurídicas dessas relações, mostrando-se ainda um tema permeado de preconceitos. Mas é preciso que se reconheça que em nada se diferencia a convivência homossexual da união estável. Ainda que haja restrição em nível constitucional, imperioso que, por meio de uma interpretação analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionável que se trata de um relacionamento, que resta por se constituir como uma unidade familiar. A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana”.[12]
Reafirma o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o julgado do TJRS, onde alguns magistrados têm elevado a relação homoafetiva à condição de união estável, desde que, preenchidos os requisitos desta:
“EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. CASAL HOMOSSEXUAL. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. CABIMENTO. A ação declaratória é o instrumento jurídico adequado para reconhecimento da existência de união estável entre parceria homoerótica, desde que afirmados e provados os pressupostos próprios daquela entidade familiar. A sociedade moderna, mercê da evolução dos costumes e apanágio das decisões judiciais, sintoniza com a intenção dos casais homoafetivos em abandonar os nichos da segregação e repúdio, em busca da normalização de seu estado e igualdade às parelhas matrimoniadas. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA (grifos nossos)”.[13]
2.3.5. Substituta
A família substituta é regulada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n.° 8.069/90, e refere-se à inserção de criança ou adolescente que não tenha família em um seio familiar, para que possa se desenvolver nele.
O art. 28 do ECA dispõe “A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.” Portanto, a família substituta decorrerá necessariamente de guarda, tutela ou adoção.
Ressalta-se que a colocação em família substituta deverá atender ao melhor interesse da criança ou adolescente que sempre que possível deverá ser ouvido (ECA, art. 28, §1º); atentando-se ao grau de parentesco ou relação de afinidade ou afetividade entre o postulante e este (ECA, art. 28, §2º).
A família substituta representa mais uma das entidades familiares embasadas no afeto.
2.3. 6. Adotiva
“A adoção é modalidade artificial de filiação que busca imitar a filiação natural. Daí ser também conhecida como filiação civil, pois não resulta de uma relação biológica”.[14]
DINIZ (2008), baseada nas formulações de diversos autores, vai além, ao conceituar adoção:
“A adoção vem a ser o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha”.[15]
A família adotiva tem seus membros reunidos por laços de amor, carinho e afeto. Como destacado acima, insere-se no seio familiar, por vontade própria, na condição de filho, pessoa que lhe é estranha. Não se toma por base a genética, mas, o amor.
2.3.6.1. Adoção à brasileira
A adoção à brasileira consiste no ato pelo qual alguém, não segue o procedimento regular de adoção imposto pela Lei Civil e, apenas registra a criança como filho, gerando uma filiação registrária, tida por alguns doutrinadores como putativa, independente do risco de responder criminalmente pelo ato CP, art. 242:
“Art. 242 – Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil. Pena – reclusão, de 02 (dois) a 06 (seis) anos”.
Atrelado ao afeto deve estar a ética como elemento primordial das relações interpessoais, ou melhor, do Direito de Família. Apesar da adoção à brasileira constituir um crime, não se pode desconsiderar o seu efeito no âmbito cível assim se manifesta DIAS (2004):
“A chamada adoção à brasileira visa a impedir o locupletamento de quem procedeu em desconformidade com a lei e a verdade. Tal atitude, ainda que configure o delito de falsidade ideológica, nem por isso deixa de produzir efeitos, não podendo gerar irresponsabilidades ou impunidades. Se foi o envolvimento afetivo que gerou a posse do estado de filho, o rompimento da convivência não pode romper o vínculo de filiação”.[16]
Deste modo, não é possível promover a anulação do registro civil referente à adoção à brasileira, se já houver se constituído o vínculo afetivo entre o pai registrário e a criança adotada, podendo a filiação ser biológica ou socioafetiva.
Mais uma vez o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça defende a existência da paternidade socioafetiva, ressaltando a impossibilidade de destituição posterior deste vínculo:
“RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE REGISTRO CIVIL – NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL – ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO GENÉRICA- RECURSO ESPECIAL, NO PONTO, DEFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO – APLICAÇÃO DA SÚMULA N. 284/STF – ADOÇÃO À BRASILEIRA – PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA – IMPOSSIBILIDADE, NA ESPÉCIE DE DESFAZIMENTO – RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. O conhecimento do recurso especial exige a clara indicação do dispositivo, em tese, violado, bem assim em que medida o aresto a quo teria contrariado lei federal, o que in casu não ocorreu com relação à pretensa ofensa ao artigo 535 do Código de processo Civil (Súmula n. 284/STF). 2. Em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução consiste em só permitir que o pai-adotante busque a nulidade do registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído o vínculo de sócio-afetividade com o adotado.3. Recurso especial improvido (grifos nossos)”.[17]
2.3.6.2. Enteados versus padrastos
Defronte da realidade socioafetiva e das novas formações familiares, é forçoso, não se reconhecer que hoje, é possível que das relações de afinidade germinem fortes vínculos de afeto, relações em que os personagens se coloquem na posição de pai e filho (posse do estado de filho), dando ensejo à paternidade socioafetiva em toda a sua amplitude e implicações.
Apresenta-se como um novo modelo familiar as famílias formadas por pai/mãe, padrasto/madrasta, enteados e filhos do casal. Sendo que, o enteado, a depender do caso, se apresenta como mais um filho para este padrasto ou madrasta, sendo um filho, não do sangue, mas do coração, ou melhor, do amor, como se houvesse sido “adotado”.
A paternidade não depende unicamente do aspecto biológico, deriva, em especial, dos vínculos de amor, afeição e convivência. Logo, nas palavras do doutrinador ASSUMPÇÃO (2004), entende-se por paternidade socioafetiva ou sociológica:
A paternidade sociológica assenta-se no afeto cultivado dia a dia, alimentado no cuidado recíproco, no companheirismo, na cooperação, na amizade e na cumplicidade. Nesse ínterim, o afeto está presente nas relações familiares, tanto na relação entre homem e mulher (plano horizontal) como na relação paterno-filial (plano vertical, como por exemplo, a existente entre padrasto e enteado), todos unidos pelo sentimento, na felicidade no prazo de estarem juntos. (…) Dessa forma, a família sociológica é aquela em que existe a prevalência dos laços afetivos, em que se verifica a solidariedade entre os membros que a compõem. Nessa família, os responsáveis assumem integralmente a educação e a produção da criança, que, independentemente de algum vínculo jurídico ou biológico entre eles, criam, amam e defendem, fazendo transparecer a todos que são os seus pais. A paternidade, nesse caso, é verificada pela manifestação espontânea dos pais sociológicos, que, por opção, efetivamente mantêm uma relação paterno-filial ao desempenhar um papel protetor educador e emocional, devendo por isso ser considerados como os verdadeiros pais em caso de conflito de paternidade.[18]
Não se busca afastar a importância da paternidade biológica, entretanto a verdade genética não tem o condão de desconstituir a verdade sociológica/socioafetiva, diante de conflito entre estas duas realidades, esta deve prevalecer.
3. Paternidade socioafetiva
3.1. Conceito
A Constituição Federal elenca entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana, que busca a tutela integral às pessoas, e traz em seu conteúdo a tutela do ser humano em todos os seus sentidos. CF, art. 1°, III:
“Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)
III – a dignidade da pessoa humana”.
Desta forma, a valorização da verdade socioafetiva como elemento relevante para o estabelecimento de filiação busca na “realidade existente, ou em formação, o sustentáculo para determinar juridicamente quem é o pai. E isto, por vezes, independe de quem seja o genitor”[19]. Dando azo, assim, a um novo modelo de família alicerçado nos laços afetivos e, não, biológicos.
Demonstra-se no entendimento de VENOSA (2007), que o vínculo afetivo é o laço que une a família:
“A família, doravante, deve gravitar em torno de um vínculo de afeto, de recíproca compreensão e mútua cooperação. A chamada família ou paternidade socioafetiva ganha corpo no seio de nossa sociedade, com respaldo doutrinário e jurisprudencial. Lembre-se do art. 1.593, que se refere precipuamente outra origem na filiação. A família passa a ter um conteúdo marcadamente ético e cooperativo e não mais econômico, resquício este da velha família romana e, nesse contexto, não há espaço para qualquer discriminação”.[20]
E mais adiante, acentua que a paternidade socioafetiva é representada pela posse do estado de filho, aludindo ao estado familiar:
“A filiação é, destarte, um estado, o status familiae, tal como concebido pelo antigo direito. Todas as ações que visam a seu reconhecimento, modificação ou negação são, portanto, ações de estado. O termo filiação exprime a relação entre o filho e seus pais, aqueles que o geraram ou o adotaram”[21].
A paternidade afetiva decorre da convivência familiar, afeto, carinho e assistência recíproca. Não advém necessariamente de fatores genéticos, podendo sê-lo, conforme se infere do julgado abaixo:
“RECURSO ESPECIAL. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. CANCELAMENTO PELO PRÓPRIO DECLARANTE. FALSIDADE IDEOLÓGICA. IMPOSSIBILIDADE. ASSUNÇÃO DA DEMANDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. DEFESA DA ORDEM JURÍDICA OBJETIVA. ATUAÇÃO QUE, IN CASU, NÃO TEM O CONDÃO DE CONFERIR LEGITIMIDADE À PRETENSÃO. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. Salvo nas hipóteses de erro, dolo, coação, simulação ou fraude, a pretensão de anulação do ato, havido por ideologicamente falso, deve ser conferida a terceiros interessados, dada a impossibilidade de revogação do reconhecimento pelo próprio declarante, na medida em que descabido seria lhe conferir, de forma absolutamente potestativa, a possibilidade de desconstituição da relação jurídica que ele próprio, voluntariamente, antes declarara existente; ressalte-se, ademais, que a ninguém é dado beneficiar-se da invalidade a que deu causa. 2. No caso em exame, o recurso especial foi interposto pelo Ministério Público, que, agindo na qualidade de custos legis, acolheu a tese de falsidade ideológica do ato de reconhecimento, argüindo sua anulabilidade, sob o pálio da defesa do próprio ordenamento jurídico; essa atuação do Parquet, contudo, não tem o condão de conferir legitimidade à pretensão originariamente deduzida, visto que, em assim sendo, seria o mesmo que admitir, ainda que por via indireta, aquela execrada potestade, que seria conferida ao declarante, de desconstituir a relação jurídica de filiação, como fruto da atuação exclusiva de sua vontade. 3. Se o reconhecimento da paternidade não constitui o verdadeiro status familiae, na medida em que, o declarante, ao fazê-lo, simplesmente lhe reconhece a existência, não se poderia admitir sua desconstituição por declaração singular do pai registral. Ao assumir o Ministério Público sua função precípua de guardião da legalidade, essa atuação não poderia vir a beneficiar, ao fim e ao cabo, justamente aquele a quem essa mesma ordem jurídica proíbe romper, de forma unilateral, o vínculo afetivo construído ao longo de vários anos de convivência, máxime por se tratar de mera “questão de conveniência” do pai registral, como anotado na sentença primeva. 4. “O estado de filiação não está necessariamente ligado à origem biológica e pode, portanto, assumir feições originadas de qualquer outra relação que não exclusivamente genética. Em outras palavras, o estado de filiação é gênero do qual são espécies a filiação biológica e a não biológica (…). Na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos” (Mauro Nicolau Júnior in “Paternidade e Coisa Julgada. Limites e Possibilidade à Luz dos Direitos Fundamentais e dos Princípios Constitucionais”. Curitiba: Juruá Editora, 2006). 5. Recurso não conhecido (grifos nossos)”.[22]
A filiação advém da posse do estado de filho, se calca no afeto existente entre as pessoas que ocupam os papéis de pai e filho respectivamente na relação. Concorre entendimento jurisprudencial:
“CIVIL – AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C NULIDADE DE REGISTRO CIVIL E ALIMENTOS – CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE RISCO – VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE – EXAME DE DNA – RESULTADO NEGATIVO PARA A PATERNIDADE INDICADA PELA GENITORA DO MENOR – PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA DAQUELE QUE PROMOVEU O REGISTRO DE NASCIMENTO – NÃO CONFIGURAÇÃO – RETIFICAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO COM EXCLUSÃO DO NOME DO GENITOR E DOS AVÓS PATERNOS – ALTERAÇÃO DO PATRONÍMICO DO MENOR – SENTENÇA MANTIDA. 1. Cuida-se de ação de investigação de paternidade c/c com nulidade de registro civil e alimentos ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios em substituição processual de menor gerado à época em que a genitora prestava serviços domésticos na residência do suposto pai. Os autos comprovam que a genitora permitiu que seu filho viesse a ser registrado pelo companheiro do irmão daquele que acreditava ser o pai biológico da criança, autorizando que a mesma viesse a residir com ele e seu companheiro no Canadá.2. Realizado o exame de DNA, comprovou-se que a criança não é filha biológica daquele que era apontado pela genitora como pai, admitindo, por sua vez, o autor do registro de nascimento que a paternidade assumida não é verdadeira. Invoca, contudo, a paternidade sócio-afetiva para manter o vínculo civil com o menor.3. Segundo a doutrina e jurisprudência mais abalizadas “A filiação sócio-afetiva decorre da convivência cotidiana, de uma construção diária, não se explicando por laços genéticos, mas pelo tratamento estabelecido entre pessoas que ocupam reciprocamente o papel de pai e filho, respectivamente”. 4. Na hipótese, não se vislumbrando os elementos indispensáveis à caracterização da filiação sócio-afetiva, mormente a convivência cotidiana, a afeição, a solidariedade, o auxílio, o respeito e o amparo do registrando para com o menor, há que se dar prevalência à verdade real, de modo a propiciar, futuramente, a identificação do genitor biológico da criança. 5. Apelação conhecida e improvida (grifos nossos)”.[23]
Não há distinção, nem tampouco discriminação, em razão da origem da filiação, por expressa determinação constitucional, CF, art. 226, § 6°: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”; assim, reconhece-se tanto a filiação biológica ou natural quanto a afetiva ou sociológica. Este é o entendimento da doutrina e jurisprudência modernas:
“EMENTA: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. SOCIOAFETIVIDADE. DESCONSTITUIÇÃO DO REGISTRO CIVIL. DESCABIMENTO. A moderna concepção de paternidade se enraíza no afeto entre o filho e quem o ampara com o invólucro do carinho e do amor, afastando a obrigação do vínculo biológico. É genitor quem contribui com a carga genética, mas é pai quem cria e protege, dedicando seu sentimento a quem registra espontaneamente e cuida durante vários anos. O desfazimento da anotação do nascimento, calcado em interesses apenas patrimoniais, compromete o caráter ético que deve presidir a demanda de filiação. APELAÇÃO DESPROVIDA, VENCIDA A RELATORA, QUE DAVA PROVIMENTO PARCIAL (grifos nossos)”.[24]
3.2. Posse do estado de filho
A filiação pode ser jurídica, biológica ou afetiva. A posse do estado de filho é o elemento probante que subsidia a paternidade socioafetiva, que se funda essencialmente no afeto, independente de fatores biológicos ou presunções legais, caracterizando-se pela intensa convivência entre pai e filho.
Neste diapasão já se pronunciou o TJRS, conforme demonstra julgado:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PRESENÇA DA RELAÇÃO DE SOCIOAFETIVIDADE. DETERMINAÇÃO DO PAI BIOLÓGICO AGRAVÉS DO EXAME DE DNA. MANUTENÇÃO DO REGISTRO COM A DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. POSSIBILIDADE. TEORIA TRIDIMENSIONAL. Mesmo havendo pai registral, o filho tem o direito constitucional de buscar sua filiação biológica (CF, § 6º do art. 227), pelo princípio da dignidade da pessoa humana. O estado de filiação é a qualificação jurídica da relação de parentesco entre pai e filho que estabelece um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. Constitui-se em decorrência da lei (artigos 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil, e 227 da Constituição Federal), ou em razão da posse do estado de filho advinda da convivência familiar. Nem a paternidade socioafetiva e nem a paternidade biológica podem se sobrepor uma à outra. Ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas porque fazem parte da condição humana tridimensional, que é genética, afetiva e ontológica. APELO PROVIDO (grifos nossos)”.[25]
Na paternidade socioafetiva, pai é aquele, que ligado biologicamente ou não, confere ao seu filho todo o seu cuidado, afeto, amor, carinho, dedicação e participa do seu crescimento como indivíduo, propiciando-lhe educação, cultura e tudo mais de que necessitar a fim de realizar-se como pessoa, ou seja, é a relação/ligação entre pai e filho exposta como fato social, como demonstra julgado:
“EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO RESCISÓRIA. ALEGAÇÃO DE ERRO DE FATO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Não se verifica erro de fato quando a prova produzida foi devidamente analisada pelo magistrado. Sentença que reconhece estado de filha que se deu – de forma pública e respeitosa, onde ela “era carinhosamente tratada pelo mesmo como filha”. Relação de afeto que ao longo do tempo foi fincando raízes a ponto de criar uma verdade social que independe da verdade biológica. Reconhecida – ausente qualquer dúvida – a socioafetividade, a decisão rescindenda não incidiu em erro de fato por ignorar o laudo pericial. Ação rescisória que se embasa em erro de fato pois o resultado da perícia que apontou que os embargantes não são os avós biológicos da embargada. Novo DNA que concluiu que nenhuma conclusão verdadeira a respeito da paternidade dos autores em relação ao investigado se pode realmente tirar do laudo. – Ver Embargos de Declaração 70009707449 – Ver Ação Rescisória 597245547 EMBARGOS INFRINGENTES DESACOLHIDOS, POR MAIORIA (grifos nossos)”.[26]
Entretanto, este instituto não vem expresso no ordenamento jurídico brasileiro, formou-se dos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários com o fito de abarcar a realidade social das famílias brasileiras. Portanto, a configuração da posse do estado de filho serve como prova de filiação e reafirma a paternidade socioafetiva. Sustentam os Tribunais neste sentido:
“EMENTA: FILHO DE CRIAÇÃO. ADOÇÃO. SOCIOAFETIVIDADE. No que tange à filiação, para que uma situação de fato seja considerada como realidade social (socioafetividade), é necessário que esteja efetivamente consolidada. A posse do estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade social. Diante do caso concreto, restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência ou não de posse de estado, revelando quem efetivamente são os pais. A apelada fez questão de excluir o apelante de sua herança. A condição de filho de criação não gera qualquer efeito patrimonial, nem viabilidade de reconhecimento de adoção de fato. APELO DESPROVIDO (grifos nossos)”.[27]
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. NEGAÇÃO DE PATERNIDADE. MANUTENÇÃO DO VÍNCULO JURÍDICO PATERNO-FILIAL. SOCIOAFETIVIDADE. Não prospera a pretensão do apelante que visa, em demandas anulatória de registro civil e alimentos e negatória de paternidade cumulada com exoneração de pensão alimentícia que tiveram julgamento conjunto, atacar o ato de reconhecimento voluntário de paternidade por ele levado a efeito, uma vez que não provou qualquer vício, seja de vontade ou de forma, que tenha maculado o ato jurídico de reconhecimento por ele realizado. Ademais, o apelado conta 14 anos de idade e, ao longo do tempo, conviveu no seio da família como se filho do recorrente fosse, estando caracterizada a posse de estado de filho. É oportuno lembrar que filho não é objeto descartável, que se assume quando convém e se dispensa por ato de simples vontade. NEGARAM PROVIMENTO, À UNANIMIDADE (grifos nossos)”.[28]
Em resumo, a posse do estado de filho se consubstancia nos seguintes elementos: utilização do nome daquele considerado como pai; o tratamento, atos que expressem a relação paterno-filial; e a fama, que constitui a notoriedade social. Contudo, deve-se ressaltar que, mesmo se o filho nunca houver usado o nome do pai, não se pode desconstituir a posse de estado, uma vez presentes os demais elementos.
3.3. Fundamentos e efeitos
3.3.1. Fundamentos normativos para o reconhecimento da paternidade socioafetiva
Hoje, devido aos avanços no campo da ciência, em especial, a genética, é fácil determinar, através do exame de DNA, o pai biológico da criança, atribuindo-lhe responsabilidades e direitos inerentes à paternidade. Todavia, é insuficiente a simples verdade biológica para a determinação da paternidade; é imprescindível observar a existência de laços sólidos de afeto, amor, solidariedade e responsabilidade, pois estes caracterizam a relação entre pai e filho.
Através da exegese do texto constitucional, depreende-se que o afeto é fundamental na relação e convivência interpessoal. Assim, o Código Civil prevê a mútua assistência no parentesco, art. 1694: “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.”; e na relação entre os cônjuges, conforme dispõe o art. 1566, III: “São deveres de ambos os cônjuges: (…) III – mútua assistência”.
A afetividade entre os integrantes da família surge como colorário do princípio da dignidade da pessoa humana. Nos dizeres de MORAES (2006), a dignidade da pessoa humana é:
“A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.[29]
O ilustre jurista MONTEIRO (2007) vai além, ao explanar acerca da constitucionalização do direito civil destaca a importância da dignidade da pessoa humana no direito de família:
“Nas relações familiares acentua-se a necessidade de tutela dos direitos da personalidade, por meio da proteção à dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a família deve ser havida como centro de preservação da pessoa, da essência do ser humano, antes mesmo de ser tida como célula básica da sociedade”.[30]
Nesta esteira, surge este instituto calcado no afeto e na efetiva posse do estado de filho, designado por alguns como filiação sociológica e por outros, como filiação socioafetiva. Esta paternidade é muito mais ampla e profunda do que a verdade biológica, se fulcra no zelo, amor e dedicação ao filho, constitui-se de forma espontânea pelo desejo de assumir o papel de pai; desejo que nasce dos sentimentos que vão surgindo durante a convivência/interação com a criança.
O pai biológico é o doador de sêmen e, nem sempre, levando-se em conta a verdade social da relação, ele será o real pai da criança, cabendo este papel àquele que detem paternidade baseando-se na posse de estado de filho (o nome, o tratamento e a fama), sendo reconhecida pelo permissivo legal do CC, art. 1605, II:
“Art. 1605 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…)
II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”.
Priorizando-se a dignidade da pessoa humana, a paternidade, modernamente, se fundamenta na diversidade de famílias que se formam com o objetivo de propiciar a realização e felicidade de seus membros; na despatrimonialização das relações de filiação; na relativização da verdade biológica e na integral proteção aos filhos.
O reconhecimento da realidade socioafetiva, em suma, decorre da efetiva constatação da posse do estado de filho; da observância da dignidade da pessoa humana; da proteção integral a família, prevista na CF, art. 226; e da proteção integral da criança e do adolescente, estabelecida na CF, art. 227:
“Art. 226 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
“Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
3.3.2. Efeitos jurídicos
Ao se reconhecer a paternidade socioafetiva fulcrada na posse do estado de filho, reconhecem-se também todos os direitos e deveres inerentes à paternidade, pois, diante do princípio da igualdade entre os filhos, consagrado na Carta Maior, art. 226, § 6º, não há diferença entre os filhos, natural e adotivo.
A paternidade socioafetiva recebe tratamento igual à adoção, decorrendo, portanto, os mesmos efeitos jurídicos dos arts. 39 a 52 do ECA, que são aplicados a esta, dentre eles: efeitos pessoais – rompimento dos vínculos paterno-materno-filiais anteriores à adoção, salvo os impedimentos matrimoniais; estabelecimento de vínculos com os adotantes e seus parentes, proibição de adoção de descendentes; nome dos pais sociológicos; poder familiar, guarda; etc. – ; e patrimoniais – alimentos e direito à sucessão hereditária.
Cabe aos pais zelar pela assistência, criação e educação dos filhos menores. Em contrapartida é dever dos filhos maiores ajudar os pais na velhice.
3.4. Socioafetividade entre enteado e padrasto
O primeiro laço efetivo que une enteado e padrasto é o da afinidade, como elenca o CC, art. 1595 e parágrafos:
“Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade.
§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro.
§ 2º Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável”.
Desta relação de afinidade pode surgir um novo laço, o da socioafetividade, que se revelará por meio da posse do estado de filho, ou seja, o padrasto se colocará na posição de pai e o enteado na de filho. Diante de tal fato, deve-se reconhecer a paternidade socioafetiva imbuída com todos os direitos e deveres advindos da paternidade.
As famílias que aglutinam pai/mãe, padrasto/madrasta, enteados representam uma nova entidade familiar. Nestes casos, o enteado pode exercer o papel de mais um filho para este padrasto ou madrasta.
A paternidade não está vinculada aos aspectos biológicos, mas nos elos de amor, afeição e convivência, ou melhor, a paternidade não deve ser sinônima de obrigação, mas de escolha. Isto se infere do julgado abaixo, onde o próprio padrasto propôs oferta de alimentos e pediu regulação de visitas do enteado, ou melhor, “filho do coração”:
“EMENTA: PEDIDO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS E OFERTA DE ALIMENTOS EFETUADO POR PADRASTO. POSSIBILIDADE JURÍDICA. Na atualidade, onde a família é vista como uma união de afetos direcionada à realização plena e à felicidade de seus integrantes, e não mais como mero núcleo de produção, reprodução e transferência de patrimônio, como o era até o início do século XX, a pretensão aqui deduzida não deve ser liminarmente rejeitada, sem, ao menos ensejar-se dilação probatória, que permita verificar se, sob o ponto de vista do melhor interesse da adolescente – que deve sobrelevar a qualquer outro – há ou não conveniência no estabelecimento da visitação pretendida. PROVERAM. UNÂNIME (grifos nossos)”.[31]
4. A questão alimentar versus socioafetividade
4.1. Conceito de alimentos
A conceituação de alimentos no âmbito jurídico é bem ampla, compreende todo o necessário para garantir a mínima dignidade do alimentando suprindo as suas necessidades primárias, de subsistência, ou seja, a alimentação; bem como, vestuário, moradia, educação, saúde e diversão.
Segundo GOMES (1978), alimentos são “prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las por si”.[32] Essas necessidades vitais vem explicitadas no artigo 1.920 do Código Civil, que trata do legado de alimentos e assim, dispõe: “O legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor.”
4.2. Sujeitos da obrigação alimentar
O artigo 1.694 do Código Civil estipula claramente os que podem reclamar alimentos e contra quem podem ser reclamados, preceituando: “Podem os parentes, os cônjuges ou os companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.”
Inicialmente, tem-se que a obrigação alimentar decorre exclusivamente de vínculo conjugal, união estável ou parentesco advindo da consaguinidade ou adoção. GONÇALVES (2009) ressalta que:
“Entre pais e filhos menores, cônjuges e companheiros não existe propriamente obrigação alimentar, mas dever familiar, respectivamente de sustento e de mútua assistência (CC, arts. 1.566, III e IV, e 1.724). a obrigação alimentar também decorre da lei, mas é fundada no parentesco (art. 1694), ficando circunscrita aos ascendentes, descendentes e colaterais até o segundo grau, com reciprocidade, tendo por fundamento o princípio da solidariedade familiar”.[33]
Entretanto, este paradigma está se alterando, a partir da evolução dos conceitos de família e filiação. “Não pode subsistir a esquemática divisão que reconhece a existência do dever de alimentos como decorrente, ou dos vínculos de consangüinidade, ou da relação matrimonial”.[34]
4.3. Alimentos na paternidade socioafetiva
Os alimentos emanam das relações parentais, sem esta, não são devidos, segundo as doutrinas clássicas se referem ao parentesco biológico (jus sanguinis), não reconhecendo o afetivo ou sociológico, para fins de prestação de alimentos. No entanto, esta concepção não é a mais adequada ao momento social em que nos encontramos.
Não há um modelo de família definido. As famílias se agrupam, amoldam em consonância com os sentimentos de afeto, assistência recíproca e solidariedade. Deste modo, não se pode negar legitimidade aos alimentos nas relações socioafetivas, uma vez que se comprove este vínculo de parentesco, através da posse do estado de filho: “se o investigante traz o nome do investigado; se foi por ele tratado como filho; se havido como tal no ambiente social da família paterna, há sólido indício da relação filial, fundamento para o reconhecimento da vinculação jurídica”.[35]
E ainda, pode-se vislumbrar a admissão da filiação socioafetiva e, por conseguinte, do parentesco socioafetivo, no CC, art. 1593 que disciplina: “O parentesco é natural ou civil, conforme de consaguinidade ou outra origem.”; esta outra origem é a afetiva ou sociológica.
Colaciona-se entendimento jurisprudencial que suscita o parentesco como fundamento da obrigação alimentar e aponta a paternidade socioafetiva como apta a ensejar tal obrigação:
“EMENTA: PEDIDO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS E OFERTA DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DEALIMENTOS. INTEMPESTIVIDADE. REQUISITO DO ART. 526 DO CPC. NEGATIVA DA PATERNIDADE. Intempestividade. O agravo interposto no décimo dia o prazo não é intempestivo. Requisito do art. 526 do CPC. Segundo a nova redação do art. 526, a parte agravada, além de alegar, deverá provar que o primeiro grau não foi comunicado do recurso. Negativa da paternidade. A obrigação alimentar se fundamenta no parentesco, que é comprovado pela certidão de nascimento. O agravante alega não ser o pai biológico do menor. Enquanto não comprovar, não se pode afastar seu dever de sustento. A rigor, mesmo esta prova não será suficiente, pois a paternidade sócio-afetiva também pode dar ensejo à obrigação alimentícia (grifos nossos)”.[36]
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA. EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. MAIORIDADE CIVIL DA ALIMENTANDA. DECISÃO AGRAVADA QUE DECRETA, A REQUERIMENTO DO ALIMENTANTE, A EXTINÇÃO DO DEVER DE SUSTENTO. NECESSIDADE-POSSIBILIDADE. OBRIGAÇÃO DECORRENTE DO VÍNCULO DE PARENTESCO. AGRAVO PROVIDO. 1 – A obrigação alimentar tem relação não apenas com a idade, mas também, com o vinculo de parentesco ou afinidade existente entre alimentante e alimentado. Assim, a extinção do pátrio poder, por si só, não é causa suficiente à exoneração do encargo. Na espécie, tudo deverá ser avaliado a fim de comprovar a necessidade de receber os alimentos e a possibilidade do genitor em pagá-los, o que será feito com submissão ao contraditório e à ampla defesa. 2 – Outrossim, a redução da maioridade civil de 21 para 18 anos exige que o magistrado tenha mais cautela ao decidir, haja vista o fato de que pessoas nessa faixa etária, normalmente, se encontram estudando ou mesmo necessitando de amparo para concluírem sua formação (grifos nossos)”.[37]
5. Considerações finais
A formação tradicional da família, espelhada no liberalismo, fundada na origem biológica, perdeu espaço. Atualmente, há uma diversidade de estruturas familiares que tomam por referencial a socioafetividade, havendo desta forma uma mudança de paradigma, segundo FACHIN (1996):
“A verdade sociológica da filiação é construída, não dependendo da descendência genética, e a partir do momento em que essa concepção de parentalidade ganhou contornos jurídicos claros e se afirmou a viabilidade de sua aplicação no âmbito da dogmática civilista, nasceu um novo paradigma da filiação”.[38]
Hodiernamente, a paternidade espelha três verdades: “a jurídica – diante da (aparente) consaguinidade –; a biológica – devida a comprovada e inquestionável consaguinidade –; e a afetiva – diante de fonte diversa da consaguinidade, ou seja, da vontade, do desejo, do afeto, do consenso”.[39] Estas três realidades, por vezes, se confrontam, devendo prevalecer a socioafetiva em prol da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança.
O exame de DNA não é o único capaz de provar a paternidade e os direitos a ela inerentes, devendo ser apreciado, caso a caso, a formação da relação entre pai e filho (posse do estado de filho), considerando-se o contexto social em que se insere, não podendo, após ser declarada, desconstituir-se a paternidade socioafetiva. Muito mais importante do que o gene ou nome em comum, são as relações de afeição, amor, carinho, proteção e convivência que devem advir da paternidade.
Desta feita, na relação de parentesco por afinidade socioafetiva entre padrasto, madrastas e enteados em que se gerar o vínculo afetivo existirá o estabelecimento da paternidade socioafetiva com todas as suas responsabilidades, dentre elas, a obrigação alimentar, ou melhor, prestação de alimentos que poderá ser ofertada pelo pai-padrasto ou requerida pelo filho- enteado, após ter reconhecida a sua filiação socioafetiva por decisão judicial através da prova do estado de filho.
Entretanto, não se pode olvidar que nem sempre haverá o estabelecimento de vínculos paterno-filiais calcados na afetividade entre padrastos e enteados, somente nos casos em que estes se reconhecerem como família e se considerarem reciprocamente pai e filho. Portanto, não haverá obrigação alimentar ou qualquer outro direito inerente à paternidade quando dois indivíduos ligados por vínculo parental de afinidade em 1° grau (padrasto/enteado) conviverem juntos, mas não se colocarem nas posições de pai e filho respectivamente, em seus corações e diante da sociedade, uma vez que afeto não é algo que se possa impor.
O direito tem o fito de tutelar as situações surgidas no seio social, se adequando à realidade social e cultural em que está inserido. Contudo, a normatização destes anseios não acompanha a rapidez das mudanças, com isto, não há ainda uma regulação expressa que chancele a paternidade socioafetiva, sendo reconhecida implicitamente, corroboram apenas posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, entretanto, de maneira, tímida e receosa.
Informações Sobre o Autor
Aline Vieira Calado
Bacharel em Direito pela Universidade Paulista, campus Brasília