Particularidades da condução coercitiva no inquérito policial

Resumo: Dentre as formas de restrição à liberdade de locomoção previstas no arcabouço jurídico pátrio figura a condução coercitiva, que consiste em um meio conferido à autoridade para fazer comparecer aquele que injustificadamente desatendeu a sua intimação, e cuja presença é essencial para o curso da persecução penal. Todavia, ao se proceder à análise das disposições legais relativas à condução coercitiva, verifica-se que, se de um lado sua regulamentação no processo judicial mostra-se minimamente exaustiva, por outro acaba por desorientar o intérprete quando da sua aplicação no âmbito do inquérito policial, fato que tem acarretado consideráveis controvérsias acerca da sua admissibilidade no curso do referido procedimento, agravada por conta da carência de estudos que abordem a questão de forma analítica. Diante deste contexto, propõe-se uma abordagem mais precisa no que tange à condução coercitiva no inquérito policial, fazendo-se necessário, para tanto, um prévio estudo acerca das possíveis posições jurídicas daqueles que neste figuram.

Palavras chave: Processo Penal; Inquérito Policial; Polícia Judiciária; Devido Processo Legal; condução coercitiva.

Abstract: Coercement is one of the ways to restrict right to liberty allowed by Brazilian law, and consists in a prerrogative given to the authorities to take by force under your presence those who unjustifiedly disobey a subpoena, and whose personal presence is essential to criminal prosecution. However, while the analysis of the legal terms about use of coercement during judicial process reveals minimally exhaustive standards, the rules of the enforcement of this legal instrument during the judiciary police inquiry remain obscure, causing considerable controversy about your admissibility in the course of this procedure. At this point, by the analysis about juridical situations in the criminal investigation, must be proposed the standards to the legitimated use of coercement during judiciary police inquiry.

Keywords: Criminal Procedure; Criminal Investigation; Judiciary Police; Due Process of Law; Coercement.

Sumário: 1. Introdução – 2. Das posições jurídicas no inquérito policial: 2.1 inquéritos policiais objeto de decretação de segredo de justiça – 3. Da possibilidade de determinação condução coercitiva no inquérito policial pela autoridade policial a partir da posição jurídica dos que neste figuram – 4. Considerações Finais.

1. INTRODUÇÃO

A liberdade de locomoção, sem dúvidas, figura entre os direitos fundamentais mais básicos, dada a sua estreita relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, epicentro axiológico das constituições contemporâneas.

Diante disto, é trivial que o direito de ir e vir só poderá ser restringido em função de norma autorizadora que apresente conformidade com o ordenamento constitucional e princípios que o norteiam. A própria Constituição Federal, inclusive, prevê o habeas corpus como uma garantia específica para os casos de lesão ou ameaça à liberdade de locomoção.

Dentre as formas de restrição à liberdade de locomoção previstas no arcabouço jurídico pátrio figura a condução coercitiva, que nada mais é do que um meio conferido à autoridade para fazer comparecer aquele que injustificadamente desatendeu a sua intimação, e cuja presença é essencial para o curso da persecução penal.

Todavia, ao se proceder à análise das disposições legais relativas à condução coercitiva, verifica-se que, se de um lado sua regulamentação no processo judicial mostra-se minimamente exaustiva, por outro acaba por desorientar o intérprete quando da sua aplicação no âmbito do inquérito policial, fato que tem acarretado consideráveis controvérsias acerca da sua admissibilidade no curso do referido procedimento, agravada por conta da carência de estudos que abordem a questão de forma analítica.

Neste contexto, recente decisão do Supremo Tribunal Federal, ao corajosamente enfretar o tema, assim abordou a questão:

“Ementa: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONDUÇÃO DO INVESTIGADO À AUTORIDADE POLICIAL PARA ESCLARECIMENTOS. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 144, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO ART. 6º DO CPP. DESNECESSIDADE DE MANDADO DE PRISÃO OU DE ESTADO DE FLAGRÂNCIA. DESNECESSIDADE DE INVOCAÇÃO DA TEORIA OU DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA POR DECISÃO JUDICIAL, APÓS A CONFISSÃO INFORMAL E O INTERROGATÓRIO DO INDICIADO. LEGITIMIDADE. OBSERVÂNCIA DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE JURISDIÇÃO. USO DE ALGEMAS DEVIDAMENTE JUSTIFICADO. CONDENAÇÃO BASEADA EM PROVAS IDÔNEAS E SUFICIENTES. NULIDADE PROCESSUAIS NÃO VERIFICADAS. LEGITIMIDADE DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. ORDEM DENEGADA. I – A própria Constituição Federal assegura, em seu art. 144, § 4º, às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. II – O art. 6º do Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito, todas dispostas nos incisos II a VI. III – Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da autoridade policial competente (art. 4º do CPP), para tomar todas as providências necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. IV – Desnecessidade de invocação da chamada teoria ou doutrina dos poderes implícitos, construída pela Suprema Corte norte-americana e incorporada ao nosso ordenamento jurídico, uma vez que há previsão expressa, na Constituição e no Código de Processo Penal, que dá poderes à polícia civil para investigar a prática de eventuais infrações penais, bem como para exercer as funções de polícia judiciária. V – A custódia do paciente ocorreu por decisão judicial fundamentada, depois de ele confessar o crime e de ser interrogado pela autoridade policial, não havendo, assim, qualquer ofensa à clausula constitucional da reserva de jurisdição que deve estar presente nas hipóteses dos incisos LXI e LXII do art. 5º da Constituição Federal. VI – O uso de algemas foi devidamente justificado pelas circunstâncias que envolveram o caso, diante da possibilidade de o paciente atentar contra a própria integridade física ou de terceiros. VII – Não restou constatada a confissão mediante tortura, nem a violação do art. 5º, LXII e LXIII, da Carta Magna, nem tampouco as formalidade previstas no art. 6º, V, do Código de Processo Penal. VIII – Inexistência de cerceamento de defesa decorrente do indeferimento da oitiva das testemunhas arroladas pelo paciente e do pedido de diligências, aliás requeridas a destempo, haja vista a inércia da defesa e a consequente preclusão dos pleitos. IX – A jurisprudência desta Corte, ademais, firmou-se no sentido de que não há falar em cerceamento ao direito de defesa quando o magistrado, de forma fundamentada, lastreado nos elementos de convicção existentes nos autos, indefere pedido de diligência probatória que repute impertinente, desnecessária ou protelatória, sendo certo que a defesa do paciente não se desincumbiu de indicar, oportunamente, quais os elementos de provas pretendia produzir para levar à absolvição do paciente. X – É desprovido de fundamento jurídico o argumento de que houve inversão na ordem de apresentação das alegação finais, haja vista que, diante da juntada de outros documentos pela defesa nas alegações, a magistrada processante determinou nova vista dos autos ao Ministério Público e ao assistente de acusação, não havendo, nesse ato, qualquer irregularidade processual. Pelo contrário, o que se deu na espécie foi a estrita observância aos princípios do devido processo legal e do contraditório. XI – A prisão cautelar se mostra suficientemente motivada para a garantia da instrução criminal e preservação da ordem pública, ante a periculosidade do paciente, verificada pela gravidade in concreto do crime, bem como pelo modus operandi mediante o qual foi praticado o delito. Ademais, o paciente evadiu-se do distrito da culpa após a condenação. XII – Ordem denegada.”
(HC 107644, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-200 DIVULG 17-10-2011 PUBLIC 18-10-2011)
(grifei)

Apesar de paradigmática, a decisão judicial acima ementada não analisou o tema de maneira aprofundada, posicionando-se favoravelmente à determinação da condução coercitiva da autoridade policial de maneira genérica, sem dissecar sistematicamente as disposições legais acerca do referido instituto, quando aplicadas ao inquérito policial.

Diante deste contexto, propõe-se uma abordagem mais precisa no que tange à condução coercitiva no inquérito policial, fazendo-se necessário, para tanto, um prévio estudo acerca do papel dos “atores” da investigação criminal, quais sejam, o indiciado, o investigado, a testemunha e a vítima.

1. DAS POSIÇÕES JURÍDICAS NO INQUÉRITO POLICIAL

Para se sistematizar diversos institutos jurídicos no inquérito policial, essencial se faz conhecer aquilo que ora se denomina posições (ou situações) jurídicas no referido procedimento, quais sejam, a de indiciado, investigado, testemunha e ofendido (vítima), cuja exegese deve partir de uma análise que combinaria elementos sistemáticos e histórico-evolutivos de interpretação jurídica.

Consoante o magistério de Paulo Nader, o elemento sistemático da interpretação, “consiste na pesquisa do sentido e alcance das expressões normativas, considerando-as em relação outras expressões contidas na ordem jurídica, mediante comparações[1]. Mais adiante, o referido autor, ao discorrer sobre o elemento histórico-evolutivo da interpretação, aduz que “Ao intérprete cumpre fazer uma interpretação atualizadora. Não significa alterar o espírito da lei, mas trazer o pensamento da época para o presente[2].

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa[3], a palavra “indiciado” em seu sentido etimológico, significa aquele “que se indiciou, percebido por indícios”, e, em que pese o Código de Processo Penal vigente não ter regulamentado devidamente a forma como o indiciado é identificado, esta percepção faz parte do sentido e da substância do inquérito policial, que é a apuração da existência de um fato e das suas circunstâncias, a qualificação jurídica, o enquadramento típico desse fato e a sua atribuição a um indivíduo imputável, identificado.

O indiciamento, também denominado indiciação, consubstancia esse juízo fático-valorativo, imputando a determinado(s) investigado(s) a prática da infração penal investigada no inquérito policial, por meio da constatação de prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (art. 312, in fine do CPP) determinando, por consequência, a sua individualização de acordo com as formalidades previstas nos arts. 6º, VIII e IX, e art. 23 do CPP, além da formalização da inquirição mediante interrogatório (art. 6º, V do CPP).

Portanto, o indiciamento (ou indiciação) é um ato formal pelo qual o presidente do inquérito conclui haver suficientes indícios de autoria e materialidade do crime investigado, imputando à alguém a prática do ilícito penal. Nos casos de inquérito iniciado por prisão em flagrante, o flagrado resta automaticamente indiciado em relação ao crime pelo qual foi formalizada a sua prisão, porém, nos inquéritos em que os investigados estiverem em liberdade, o indiciamento requer que a autoridade presidente do inquérito indique fundamentadamente os pressupostos de fato e de direito que embasaram a sua imputação e respectiva tipificação do delito atribuído ao indiciado.

O Código de Processo Penal, em sua redação original, não distinguiu devidamente o investigado do indiciado, apenas mencionando este último em suas diversas passagens[4], bem como originalmente não contemplou qualquer previsão legal para o ato de indiciamento, que essencialmente distinguiria as duas figuras. Assim, a técnica legislativa originalmente utilizada no Código de Processo Penal vigente não diferenciou adequadamente a figura do indiciado e do investigado, fazendo tão somente referência ao primeiro nos dispositivos pertinentes.

Entretanto, com a inclusão do art. 405, §1º pela Lei nº 11.719/2008, ao se dispor, pela primeira vez, a possibilidade de gravação de audiências no inquérito policial, também se inovou ao prever, expressamente, a figura do investigado no plano legal, consagrando a existência deste como um ente distinto do indiciado, ao assim estatuir

“Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações”(grifei). 

Assim, partindo dos conceitos de investigado, indiciado, ofendido e testemunha, pode-se chegar à definição do primeiro através de um critério de exclusão em relação aos demais atores da investigação criminal, sendo este o indivíduo objeto de apuração que não se enquadraria á condição de testemunha ou vítima dos fatos sob exame, tampouco podendo ser considerado indiciado por não haver constatação de indício suficiente da sua autoria delitiva. Desta forma, conceitua-se o investigado como o suspeito cuja autoria delitiva cogita-se apenas por meio de um juízo de possibilidade, e não de probabilidade[5].

Por sua vez, a testemunha no inquérito policial pode ser conceituada, em apertada síntese, como a pessoa que, estranha às suspeitas de autoria ou participação na infração penal sob investigação, figura no feito por ter conhecimento do fato investigado, depondo com vistas a esclarecê-lo ou atestar sua existência. Já o ofendido ou vítima pode ser sinteticamente conceituado como aquele que é imediatamente atingido pela prática delituosa, figurando este no inquérito policial, sempre que possível, para esclarecer as circunstâncias da infração investigada e quem seja ou presuma ser o seu autor, indicar os correspondentes indícios, bem como eventualmente formalizar a representação necessária para a deflagração de persecução penal de crimes objeto de ação privada e ação pública condicionada (arts. 39 §3º e 201 do CPP).

2. DA POSSIBILIDADE DE DETERMINAÇÃO CONDUÇÃO COERCITIVA NO INQUÉRITO POLICIAL PELA AUTORIDADE POLICIAL A PARTIR DA POSIÇÃO JURÍDICA DOS QUE NESTE FIGURAM

Ao se analisar detidamente o Código de Processo Penal vigente, observa-se que este, a regulamentar a condução coercitiva, o faz de maneira expressa apenas em relação ao ofendido, testemunhas, e aos acusados no processo criminal, como pode se observar nos dispositivos abaixo reproduzidos:

“Art. 201.  […]

§ 1o  Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade.[…]

Art. 218.  Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.[…]

Art. 260.  Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. (grifei)

Cumpre ainda consignar que o art. 278 do CPP, faculta também a determinação da condução coercitiva do perito que, sem justa causa, deixar de acudir à intimação ou ao chamado da “autoridade” (art. 278 c/c art. 277, Parágrafo único do CPP).

Possivelmente, a forma desorientadora como a matéria se encontra regulamentada pelo referido diploma legal acabou por desencorajar o estudo da determinação de condução coercitiva pela autoridade policial no curso do inquérito em que pese esta ter sido plenamente recepcionada pelo artigo 5º LXI da Constituição Federal, uma vez que nem toda privação de liberdade é prisão, que importa necessariamente em encarceramento. Já a condução coercitiva, por si só, jamais importará no cárcere do indivíduo.

Neste particular, insta salientar, que a finalidade precípua da prisão é retirar o paciente do convívio social,  para que este não continue transgredindo a ordem jurídica. E, justamente por ter uma finalidade de segregação, que a prisão, ressalvados os casos de flagrante delito e crime ou transgressão militar, somente poderá ser decretada pelo juiz competente (art. 5º, LXI da CF), visto que sua aplicação é norma a ser utilizada em casos excepcionais, por isso revestida de uma série de requisitos que em nada se adequam à condução coercitiva, cuja finalidade apenas de fazer com que os sujeitos desta medida colaborem com  a  Polícia  Judiciária e  a  Justiça.

Uma vez recepcionada determinação a condução coercitiva pela autoridade policial quando confrontada com a constituição em vigor, cumpre observar que a palavra “autoridade” se encontra sistematizada no Código de Processo Penal de forma que, quando se pretendeu individualizar a autoridade policial ou judiciária, utilizou-se não do gênero autoridade, mas sim de designações específicas como autoridade policial, autoridade judiciária, ou Juiz[6].

Desta forma, quando o Código de Processo Penal, ao regulamentar a condução coercitiva, se valeu da expressão autoridade, este, em regra, pretendeu autorizar sua determinação tanto pela autoridade policial quanto pela judicial, ressalvando-se apenas o art. 260 do CPP como se verá mais adiante, no subitem 3.3.

Fixadas estas premissas, a seguir passar-se-á à análise da possibilidade jurídica de determinação da condução coercitiva pela autoridade policial no curso do inquérito, à luz da sistemática que se extrai do código processual penal em vigor.

2.1. OFENDIDO

Ao se visualizar sistematização dada ao termo “autoridade” pelo Código de Processo Penal, prontamente se verifica que possibilidade da condução coercitiva do ofendido pela autoridade policial encontra expressa previsão no art. 201, §1º do CPP, supra reproduzido[7]. No entanto, aquela restringe-se às hipóteses de inquéritos policiais que apurem fatos passíveis de configurar crimes objeto de ação penal pública incondicionada ou condicionada, desde que nesta última hipótese tenha sido procedida tempestiva representação.

Desta forma, nos inquéritos que versem sobre crimes objeto de ação penal privada, ainda que tenha se exercido o direito de queixa, a admissão de condução coercitiva forçosamente caracterizaria constrangimento ilegal, já que o art. 57 do CPP admite, de maneira ampla, o reconhecimento da renúncia e perdão tácitos durante a respectiva persecução criminal, militando em favor da caracterização da primeira o desatendimento imotivado de intimação para comparecimento perante a autoridade policial por parte do ofendido.

Assim, ao dispor da prerrogativa da condução coercitiva do ofendido, pode a autoridade policial, em caso de ausência injustificada, cumprir com seus deveres que importem em sua presença pessoal, como a colheita das suas declarações (art.6º, IV do CPP[8]), aplicando-se o mesmo raciocínio a condução se der para que o este proceda ao reconhecimento de pessoas e coisas ou participe de acareações (art. 6º, VI do CPP).

2.2. TESTEMUNHA

Em contrapartida, a mesma sistemática que autoriza a condução coercitiva do ofendido durante o curso do inquérito policial, obsta que idêntica medida seja adotada pela autoridade que o preside em relação à testemunha uma vez que, o art. 218 do CPP, ao contrário do art. 201 §1º, é enfático ao delimitar que esta será determinada pelo juiz[9], mediante requisição à autoridade policial, ou por meio de determinação ao oficial de justiça, que poderá ser auxiliado por membros da “força pública”, ou seja, por Policiais Militares[10].

Ademais, ao se confrontar os arts. 201 §1º e 218 do CPP com as atribuições da autoridade policial arroladas no art 6º do referido diploma legal, observa-se correspondência do primeiro com o seus incisos IV, o que não ocorre com relação a este último, não contemplado com atribuição correspondente nos incisos do art.6º do CPP, mas com previsão correlata no §2º do art. 10 do mesmo código, que assim dispõe:

“Art. 10.  […]

§ 2o No relatório poderá a autoridade indicar testemunhas que não tiverem sido inquiridas, mencionando o lugar onde possam ser encontradas”. (grifei)

Desta forma, verifica-se que a sistemática processual penal vigente não estendeu a testemunha no inquérito policial a obrigação de depor prevista no art. 206 do CPP[11], restando à autoridade policial proceder na forma do art. 10 §2º do CPP com relação à testemunha que injustificadamente não atende a intimação durante o inquérito policial, o que possibilitará ao Juizo competente determinar a sua condução coercitiva na forma do art. 217 do referido diploma legal, caso a mesma, posteriormente arrolada pela acusação, desatenda injustificadamente intimação para comparecer durante a instrução processual[12].

Na hipótese do depoimento da testemunha recalcitrante ser imprescindível à elucidação dos fatos apurados, poderá o Juiz, em caráter excepcional, determinar a sua condução coercitiva com fulcro no art. 156, I do CPP[13], que assim dispõe:

“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;”

No entanto, apesar do dispositivo acima reproduzido só mencionar a possibilidade da autoridade judicial determinar de ofício tal medida, nada obsta que a mesma seja deferida pelo magistrado em face de requerimento do Ministério Público com fulcro no art. 16 do CPP[14].

2.3. INDICIADO

No Código de Processo Penal não há dispositivo expressamente autorizando a condução coercitiva do indiciado.

Com efeito, apesar do art. 260 do CPP se valer da expressão “autoridade” e não “juiz” ou “autoridade judicial”, não há como se estender a sua aplicação à autoridade policial, não apenas pelo fato deste não se encontrar geograficamente no Capítulo III, Título VII, Livro I (cujas disposições em relação ao acusado aplicam-se, no que couber, ao indiciado conforme art. 6º, V do CPP), mas, sobretudo, em razão da própria condição de acusado, ou seja, de pessoa indicada como autor de crime a partir do exercício da ação penal, em princípio pressupor o encerramento do inquérito policial.

Portanto, não se aplica ao art. 260 do CPP a terminologia ora esboçada, devendo o termo “autoridade” neste utilizado ser teologicamente interpretado no sentido deque tal expressão, de fato, refere-se apenas à autoridade judicial, assim como não é possível se cogitar da sua aplicação analógica para permitir a decretação da condução coercitiva do indiciado pela autoridade policial, em razão de tal linha de inteleção forçosamente implicaria em analogia in malan partem com implicações restritivas para o exercício do direito fundamental à liberdade de locomoção, o que é repudiado pelo direito processual penal contemporâneo.

Todavia, privar a autoridade policial de determinar a condução coercitiva do indiciado equivaleria a negar àquela a possibilidade de cumprir seus deveres que impliquem na presença pessoal deste, previstos no art. 6º, V e VIII do CPP, nos casos de desatendimento injustificado de intimação pessoal, com sério comprometimento à elucidação dos fatos investigados, ao tempo em que se observa que o art. 201 §1º e 278 CPP, expressamente conferem à autoridade policial a prerrogativa de conduzir coercitivamente o ofendido e até mesmo o perito criminal, nada mais são do que um meio para conferido à autoridade policial para se efetivar o cumprimento dos deveres legalmente elencado no inciso IV e VII do mesmo art.6º do CPP.

Neste ponto, há de se adotar linha de intelecção análoga à trilhada pelo pretório excelso na decisão ilustrada no preâmbulo deste artigo, no sentido de se reconhecer a legitimidade da autoridade policial para determinar todas as providências necessárias ao exercício dos seus deveres, expressamente elencados no art. 6º do CPP como medidas básicas elucidação de uma infração, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, quando necessária a sua presença pessoal, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos.

Portanto, ao conferir à autoridade policial os deveres previstos nos incisos V, VIII do art. 6º do CPP[15], o legislador também a dotou com a prerrogativa de conduzir coercitivamente o indiciado que, sem motivo justo, não comparecer perante esta. 

Todavia, a garantia contra a auto-incriminação, prevista no art. 5º, LXIII da CF, mitiga sobremaneira a eficácia da condução coercitiva em do indiciado para interrogá-lo com vistas a esclarecer os fatos apurados ou averiguar sua vida pregressa (art. 6º V e VIII c/c art. 187 do CPP), uma vez que este não está obrigado a responder às  perguntas   cujas  respostas   entenda possam  vir  a  incriminá-lo [16], aplicando-se o mesmo raciocínio a condução se der para que o indiciado proceda ao reconhecimento de pessoas e coisas ou participe de acareação (art. 6º, VI do CPP).

Em contrapartida, apesar de o indiciado conduzido nada ser obrigado a responder quanto aos fatos investigados ou quanto a sua vida pregressa (art. 187 §2º do CPP), impõe-se a este, porém, a prestação de informações referentes à sua pessoa, prévias à realização do interrogatório em si (art. 186 do CPP, conforme redação dada pela Lei nº 10.792/2003[17]), sob pena de cometimento da infração penal do art. 68 do Dec.-Lei 3688/41 (Lei das Contravenções Penais), ou art. 307 do CP[18].

Desta forma, a autoridade policial, ao determinar a condução coercitiva do indiciado, deve agir com prudência, avaliando a medida à luz do postulado da proporcionalidade, já que o conduzido só está obrigado a cooperar quando a intimação objetivar o seu reconhecimento pessoal (art. 6º, VI do CPP), ou caso se necessite identificá-lo e qualificá-lo, no caso de dúvida quanto a sua identidade[19].

Por fim, saliente-se que, ao verificar que a identificação do indiciado conduzido coercitivamente ira demandar tempo que implique em necessidade de encarceramento, deve a autoridade policial representar pela sua prisão preventiva perante o Juízo competente, com fulcro no art. 313, parágrafo único do CPP, incluído pela Lei nº 12.403/2011.

2.4. INVESTIGADO

Como salientado no item 2, apenas em 2008 o Código de Processo Penal passou a reconhecer expressamente, e de forma inusitada e lacônica, a posição jurídica de investigado em inquérito policial, não havendo dispositivo expressamente autorizando a condução coercitiva do indiciado, tampouco disposição dentre os deveres da autoridade policial, elencados no art. 6º do CPP.

Desta forma, ao investigado que desatender injustificadamente a intimação da autoridade policial, deve-se aplicar, por analogia, o art. 10 §2º do CPP e demais considerações previstas no item 2.2, já que, como já salientado, não se mostra cabível se proceder analogia que implique em interferência nos direitos fundamentais do indivíduo, o que fatalmente ocorreria caso se considerasse cabível sua condução coercitiva.

3. CONSIDERAÇOES FINAIS

 Ante o exposto, da leitura deste breve ensaio pode-se chegar às seguintes conclusões:

1- Os art. 201 §1º e 6º, IV do CPP, conferem à autoridade policial a prerrogativa de conduzir coercitivamente o ofendido que, sem motivo justo, não comparecer perante esta, ressalvados os inquéritos policiais que apurem crimes objeto de ação penal privada e de ação penal pública condicionada em que não haja representação. Aplica-se o mesmo raciocínio a condução se der para que o ofendido proceda ao reconhecimento de pessoas e coisas ou participe de acareação (art. 6º, VI do CPP);

2- Ao conferir a autoridade policial os deveres previstos nos incisos V e VIII do art. 6º do CPP, o legislador também a dotou com a prerrogativa de conduzir coercitivamente o indiciado que, sem motivo justo, não comparecer perante esta, aplicando-se o mesmo raciocínio a condução se der para que o indiciado proceda ao reconhecimento de pessoas e coisas ou participe de acareação (art. 6º, VI do CPP). No entanto, apesar de o ordenamento jurídico vigente autorizar a determinação da condução coercitiva pela autoridade policial em relação ao indiciado, o seu direito fundamental de permanecer calado impõe àquela redobrada prudência ao avaliar o cabimento da medida, já que o indiciado conduzido só está obrigado a cooperar quando a intimação objetivar o seu reconhecimento pessoal (art. 6º, VI do CPP), ou caso se necessite identificá-lo e qualificá-lo, no caso de dúvida quanto a sua identidade cujo tempo para esclarecimento não implique em seu cárcere;

3- Em contrapartida, a sistemática processual vigente não conferiu à autoridade policial a prerrogativa de conduzir coercitivamente as testemunhas injustificadamente faltosas, uma vez que, quanto a estas, se previu apenas a possibilidade de indicação no relatório conclusivo do inquérito policial (art. 10 §2º do CPP), o que, em cotejo com os termos do art. 218 do CPP, restringe à autoridade judicial a prerrogativa de determinar a sua condução coercitiva;

4 – Ao investigado que desatender injustificadamente a intimação da autoridade policial, deve-se aplicar, por analogia, o art. 10 §2º do CPP e demais considerações previstas à condução coercitiva da testemunha, uma vez que não se mostra cabível se proceder analogia com o art. 6º do CPP em razão de tal linha de inteleção forçosamente implicar em analogia in malan partem com consequências restritivas para o exercício do direito fundamental à liberdade de locomoção, o que é repudiado pelo direito processual penal contemporâneo;

5- Além do ofendido e indiciado, Os art. 278 e 6º, VII do CPP, também conferem à autoridade policial a prerrogativa de conduzir coercitivamente o perito criminal que, sem motivo justo, não atender à determinação de exame pericial.

 

Referências:
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BRITTO, Aldo Ribeiro. Aplicação reinterpretada do art. 10, §3º do Código de Processo Penal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 95, 2011. Disponível em: https://www.ambito-juridico.com.br. Acesso em 12/02/2012.
DAURA, Anderson Souza, Inquérito Policial: Competência e Nulidades de Atos de Polícia Judiciária. 3ª Ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2009.
GOMES, Amintas Vidal. Manual do Delegado – Teoria e Prática. 6ª Ed. ver. e atualizada/ Rodolfo Queiroz Laterza. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
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TASSE, Adel El. Investigação Preparatória. 3ª Ed. Curitiba: Juruá, 2010.
 
Notas:
[1] NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 323.

[2] NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 329.

[3] HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1604

[4] Arts. 5º, §1º, “b”, 6º, V, VIII e IX; 10, caput, e §3º; 14; 15; 23; 125 e 134 do CPP

[5] TASSE, Adel El. Investigação Preparatória. 3ª Ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 53/54.

[6] Além dos arts. 201 §1º e 217 do CPP, pode se citar como exemplo da referida terminologia, os arts. 185, caput, 217, bem como o art. 226, IIII e parágrafo único do referido diploma legal.

[7] Artigo que, frise-se, foi re-enumerado pela recente Lei no 11.690/2008, que manteve a sua redação primitiva, cerca de 20 (vinte) anos depois do advento da Constituição de 1988. Desta forma, como bem salientou ALMEIDA; Thiago Lacerda, em Condução Coercitiva no Inquérito Policial, Disponível em: <http://www.delegados.com.br /juridico/conducao-coercitiva-no-inquerito-policial.html>. Acesso em: 23 abr. 2011, “o legislador em 2008, entendendo pela recepção dos artigos  que  se  referem  à autoridade  como  sendo,  tanto  autoridade  policial  quanto  judiciária,  ratificou  mais  uma  vez  o  entendimento majoritário  da  possibilidade  de  condução  coercitiva  pelo  delegado  de  polícia  no  curso  do  inquérito,  caso contrário  alterado  seria  o  dispositivo  em  tela  para  a  possibilidade  de  somente  o  juiz  realizar  a  condução coercitiva.

[8] Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (…)
IV – ouvir o ofendido;

[9] No mesmo sentido, GOMES, Amintas Vidal. Manual do Delegado – Teoria e Prática. 6ª Ed. ver. e atualizada/ Rodolfo Queiroz Laterza. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.278.

[10] Quando da aleboração do vigente Código de Processo Penal de 1941, a Polícia Militar, ainda era denominada pela termo “força pública”.  Neste particular, insta consignar que o termo “Polícia Militar” vem sendo utilizado no Brasil a partir da década de 1930, quando os estados brasileiros chamavam suas polícias de manutenção da ordem pública de Polícia Militar, Força Policial ou Força Pública, ocorrendo a unificação das referidas designações após a Revolução de 1964. A respeito, cf.  QUEIROZ, Carlos Alberto Marques de. Conceito Doutrinário de Força Pública. Disponível em: <http://www.ipa-brasil.org.br/gerenciamento/download/arquivos/conceito_fp.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2011.
 

[11] O que não se confunde com a obrigação de dizer a verdade, ao se apresentar para depor, prevista no art. 203 do CPP.

[12] Neste sentido, RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2009,  p. 148.

[14] Art. 16. O Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia.

[15] Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (…)
V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura; (…)
VIII – ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;(grifei)

[16] A esse respeito já se pronunciou o Supremo  Tribunal  Federal, ao  afirmar  que  do direito  ao  silêncio  “não  decorre  o de  recusar-se  de  logo  a depor, mas  sim  o  de  não  responder   às  perguntas   cujas  respostas   entenda possam  vir  a  incriminá-lo"   (HC  no. 79244/DF,   reI.  Min.  Sepúlveda   Pertence,Pleno,  DJ de 24.3.2000).   No mesmo  sentido  o Acórdão  do  STJ no. 23.430/RJ, reI. Min. Jane  Silva, Sexta  Turma,  DJe de 3.11.2008 e TSE, Ac. de 29.9.2009 no ED-HC nº 644, rel. Min. Marcelo Ribeiro.

[17] Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. (grifei)

[18] O STJ, nos autos da RECLAMAÇÃO Nº 4.526 – DF, deferiu liminar determinando a suspensão de todos os processos que tratam do crime de falsa identidade em trâmite nos juizados especiais criminais em todo país, ao entendimento de que se a não comete o delito previsto no art. 307 do Código Penal  réu que, diante da autoridade policial, se atribui falsa identidade, em atitude de autodefesa, porque amparado pela garantia constitucional de permanecer calado.

[19] Neste sentido. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Ed. RT, 2004, p. 507.


Informações Sobre o Autor

Aldo Ribeiro Britto

Mestrando em Direito Público Pela Universidade Federal da Bahia Especialista em Direito do Estado Delegado de Polícia Federal


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