Resumo: Este artigo desenvolve a temática interdisciplinar: Patrimônio Cultural Material e Identidade.
As Constituições de 1937 e de 1988, as Leis Infraconstitucionais e as Convenções Internacionais[1] se preocuparam em consagrar o patrimônio, ora chamando de histórico ou cultural, como sendo de interesse coletivo difuso, vale dizer, pertencente a toda coletividade sem particularizar ninguém.
A Carta de 1988[2] avançou ao garantir proteção ao patrimônio material e imaterial, ou seja, não só se preservará o “construído”, mas também o “transmitido”.
Cria-se a idéia de patrimônio cultural ou de meio ambiente cultural, ou ainda, simplesmente ambiente cultural, como uma das fontes necessárias e capazes de alavancar ao patamar de garantia ímpar para a cidadania.
É o que está estabelecido no artigo 216 da Constituição Federal do Brasil:
“O patrimônio cultural é formado por bens de natureza material e imaterial, tomadas individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória[3] dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artistico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico” (grifo nosso).
De acordo com uma política global, a Constituição reconhece que o patrimônio cultural do povo brasileiro faz parte de sua identidade e de sua diversidade cultural.
É, então, um conjunto de elementos que compõe o que se entende por patrimônio cultural.
O patrimônio cultural tem como sujeito de interesses toda a sociedade que reflete sua relevância, trata-se de uma categoria que abrange bens de naturezas diversas, que podem se classificar como bens materiais ou imateriais, móveis ou imóveis, públicos ou privados.
A proteção que pretendeu o constituinte de 1988 foi de estabelecer e abranger o fenômeno cultural que possui três dimensões fundamentais: criação, difusão e conservação.
Estas dimensões fundamentais – a criação, a difusão e a conservação – estão contempladas no texto constitucional, que põe sob a tutela do Estado (Poder Público), contribuindo, também, a sociedade.
Assim, caberá ao Governo Federal, especialmente por intermédio do Ministério da Cultura, formular e operacionalizar as políticas públicas que assegurem os direitos culturais ao cidadão, criando instrumentos e mecanismos que possibilitem o apoio à criação cultural e artística, o acesso a estes bens culturais e a distribuição destes, bem como a proteção, a preservação e a difusão de todo patrimônio cultural brasileiro.
Deverá, dessa forma, o Estado brasileiro, com a colaboração da comunidade, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meios legislativos ou através de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e, ainda, de outras formas de acautelamento e preservação.
Juntamente ao Estado, todos nós cidadãos devemos promover a proteção do patrimônio cultural dos municípios, provocando os institutos próprios de preservação ligados à municipalidade, ao Estado, ou, ainda, à União.
Para tal, é importante compreender a ligação existente entre preservação do patrimônio cultural, da memória e da identidade.
Diz Souza Filho (2006, p.53) que o sentido da referida preservação do patrimônio “não é pela materialidade existente, mas pela representação, evocação ou memória que lhe é inerente”.
Pierre Nora (1993, p.7-28) observa que a memória “se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto”.
É possível, assim, afirmar que, da maneira como se tratam os monumentos, os edifícios e os fazeres (saberes), se relaciona a sociedade com sua memória e com seu próprio passado.
Como se vê em Pollak (apud Jeudy, 1989, p.3-15):
“As memórias coletivas impostas e defendidas por um trabalho especializado de enquadramento, sem serem o único fator aglutinador, são certamente um ingrediente importante para a perenidade do tecido social e das estruturas institucionais de uma sociedade. Assim, o denominador comum de todas essas memórias, mas também as tensões entre elas, intervêm na definição do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural. Mas nenhum grupo social, nenhuma instituição, por mais estáveis e sólidos que possam parecer, têm sua perenidade assegurada. Sua memória, contudo, pode sobreviver a seu desaparecimento, assumindo em geral a forma de um mito que, por não poder se ancorar na realidade política do momento, alimenta-se de referências culturais, literárias ou religiosas. O passado longínquo pode então se tornar promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à ordem estabelecida.”
Segundo Renato Ortiz, a memória nacional pode ser definida como um “universal” que se impõe a todos os grupos sociais, não sendo propriedade de nenhum em particular (1994, p.136).
Continua o autor afirmando que a pluralidade da memória coletiva “não decorre de uma pretensa debilidade imanente ao popular, mas sim da diversidade dos grupos sociais que são portadores de memórias diferenciadas” (Ortiz, 1994, p. 136-138).
De uma forma ou de outra, sempre o que prevalece é a idéia de que a memória coletiva “escolhida” é de quem detém o poder, neste caso o Estado, que é o principal responsável pela preservação do patrimônio.
Lefebvre (1978, p. 226) diz que estes monumentos preservados são partes de um imaginário, o imaginário social.
Aduz que eles são parte de sistemas complexos como os mitos, as utopias, as religiões, através dos quais a sociedade constrói uma representação de si.
Podemos afirmar, então, que este imaginário social traduz-se num processo relacionado à construção de uma identidade coletiva.
É o que advoga Ortiz (1994, p. 138) quando afirma que:
“Toda identidade é uma construção simbólica (e necessária) [4], o que elimina, portanto as dúvidas sobre a veracidade ou a falsidade do que é produzido. Dito de outra forma, não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos.”
Cito, novamente, o dizer de Milton Santos[5] (1996, p. 263):
“Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação”.
A identidade cultural nada mais é que um elemento que faz com que tenhamos raízes e estejamos vinculados a alguma coisa ou a alguém Reisewitz[6] (2004, p.102).
Esta vinculação possibilita dar valor ao que é herdado, ou seja, o valor dos bens culturais, assim, tem a magnitude da consciência dos povos a respeito de sua própria vida como em Souza Filho (2006, p.46).
É neste exato momento que parece estarmos diante da derrocado do individualismo exacerbado, momento em que o individuo se encontra com seus pares e consigo mesmo.
Tal é a importância deste patrimônio cultural magnetizando a identidade coletiva que a convenção de Paris de 1972, homologada pelo Decreto n° 80.978, de 12 de dezembro de 1977, aqui no Brasil, sublinhou no:
“Artigo 1
Para os fins da presente Convenção serão considerados como "patrimônio cultural":
– os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
– os conjuntos: grupo de construções isoladas ou reunidas que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
– os lugares notáveis: obras do homem ou obra conjugadas do homem e da natureza, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.”
De outra face, na órbita estadual[7] e municipal[8] os legisladores não se furtaram de criar fonte conceitual a este patrimônio cultural.
Veja o artigo 1º na norma estadual:
“Art. 1º – Os bens, existentes no território estadual ou a ele trazidos, cuja preservação seja de interesse público, quer em razão de seu valor artístico, paisagístico, bibliográfico, documental, arqueológico, paleontológico, etnográfico ou ecológico, quer por sua vinculação a fatos históricos memoráveis, constituem, em seu conjunto, patrimônio cultural do Estado, e serão objeto de seu especial interesse e cuidadosa proteção.
§ 1º – Incluem-se no patrimônio cultural do Estado os bens que, embora localizados fora de seu território, pertençam a ele ou a entidade de sua administração indireta e se revistam das características mencionadas no presente artigo. […].”
E o artigo 1° da Lei municipal de Pelotas no Rio Grande do Sul:
“Art. 1º – Constitui patrimônio histórico e cultural do Município de Pelotas o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no seu território, que seja do interesse público conservar e proteger contra a ação destruidora decorrentes de atividade humana e do perpassar do tempo, em virtude de:
a) sua vinculação e fatos pretéritos memoráveis ou fatos atuais significativos;
b) seu valor arqueológico, artístico, bibliográfico, etnográfico ou folclórico;
c) sua relação com a vida e a paisagem do Município.
Parágrafo Único – Os bens a que se refere o presente artigo sujeitam-se a tombamento, nos termos desta lei, mediante sua inscrição no livro tombo.”
Nota-se, nas três esferas, a preocupação do legislador em dar guarida a estes conceitos.
Situa-se dentre deste artigo, ainda, a classificação do patrimônio cultural edificado, o chamado patrimônio de “pedra e cal”, ou como alguns autores chamam, monumental (Armelin, 2008, p. 42).
Nesta espécie se encontram os monumentos ou monumentos históricos (Choay, 2001, p.12) obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os conjuntos: grupo de construções isoladas ou reunidas que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência e os lugares notáveis: obras do homem ou obra conjugadas do homem e da natureza, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.
É de ressaltar que no tópico seguinte estar-se-á aprofundando o liame entre patrimônio cultural edificado e cidadania. Entretanto, não se pode olvidar os saberes e os fazeres transmitidos, vale dizer o patrimônio cultural imaterial.
Entende-se por "patrimônio cultural imaterial" as práticas, representações, expressões, os conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural[9].
Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
O "patrimônio cultural imaterial", conforme definido na Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial de Paris acima, se manifesta em particular nos seguintes campos:
a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial;
b) expressões artísticas;
c) práticas sociais, rituais e atos festivos;
d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo;
e) técnicas artesanais tradicionais.
Cabe ressaltar que esta distinção atualmente tem servido de referência para que tanto o patrimônio material com o imaterial tenham seu resguardo nas principais normas brasileiras. Contudo, é bom que se frise que o foco deste artigo é delimitado ao patrimônio cultural material e sua percepção pelo olhar jurídico, incluindo a garantia expressa na Constituição Federal como direito à cidadania.
Informações Sobre o Autor
Renato Duro Dias
Bacharel em Direito (UFPel). Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões (ULBRA). Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPel). Foi aluno regular do Mestrado em Direito (PUC/RS). Atualmente é Coordenador do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Professor Assistente I da FURG, onde ministra Direito Civil, Professor do Curso de Especialização em Educação em Direitos Humanos – FURG/UAB. Membro do Núcleo de Pesquisa, Extensão e Estudos Jurídicos em Direitos Humanos NUPEDH (FURG). Pesquisador do GTJUS – Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (CNPq). Advogado. Membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/RS – Subseção Pelotas. Professor da Escola Superior de Advocacia – ESA – OAB/RS.