Resumo: O presente estudo tem por objetivo demonstrar que a extrafiscalidade, como forma de promoção dos deveres constitucionalmente estabelecidos por meio da imposição tributária, revela-se importante meio para o Estado induzir, incentivar ou inibir determinada atividade privada. Tal finalidade é diversa da finalidade fiscal dos tributos. Na Ordem Constitucional de 1988, as políticas públicas são compreendidas como toda atuação estatal no sentido de promover os objetivos e fundamentos constitucionais estabelecidos, visando coordenar os meios à disposição do Estado e das atividades privadas. Desta forma, o instituto da extrafiscalidade é meio eficaz para a implementação de políticas públicas estatais.
Palavras-chave: extrafiscalidade, políticas públicas, nova ordem constitucional, atuação estatal.
Abstract: The extrafiscality, as a way of promoting the duties establish constitutionally by de imposing tax, it is na important way for the state to induce, encourage or inhibit certain privates activities. This purpose is different from the one of the tax impose. In the Constitution of 1988 the public policies are understood as any state action to promote the objectives and the ground establish constitutionally. Thus, the institute ox extrafiscality is an effective way to the state public policies implement.
Keywords: extrafiscality, public policies, new constitutional order, state action.
Sumário: 1. Intodução; 2. A Extrafiscalidade; 2.1. Conceito de extrafiscalidade; 2.2. Limites à extrafiscalidade; 3. Políticas públicas: conceituação e localização do tema; 3.1. Mínimo existencial e reserva do possível como pressuposto e limite ao desenvolvimento de políticas públicas; 4. Extrafiscalidade como forma de implementar políticas públicas; 4.1 Casos específicos de extrafiscalidade como forma de implementação de políticas públicas; 4.1.1. Contribuição sobre royalties para a geração de tecnologia. 4.1.2 Regime de tributação simplificado para microempresas e empresas de pequeno porte. 5. Conclusão e; 6. Bibliografia.
1. Introdução
Ao longo da história, o Estado brasileiro assumiu diversas posturas perante a população a depender da orientação política impressa no texto constitucional. A Constituição Federal de 1988 proclama o Brasil como Estado Democrático de Direito [1], o qual possui como fundamentos [2] a dignidade da pessoa e a livre iniciativa, e como objetivos [3] a construção de sociedade justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a redução da pobreza e da marginalização e a promoção da igualdade em sentido material. Esses fundamentos – arrolados no art. 1ª da Constituição da República – e objetivos – arrolados no art. 3º – mostram o espírito da Constituição e denotam a orientação política pretendida.
O Estado brasileiro em matiz de Estado Liberal, cuja preocupação principal é assegurar as liberdades individuais de cunho negativo. Também não se configura como um Estado Social, tal como o Estado mexicano e alemão da Constituição mexicana de 1917 ou de Weimar de 1919, marcada pelo intervencionismo estatal exacerbado. A Constituição de 1988 propugna por um meio termo no qual liberdade de iniciativa convive com os valores sociais do trabalho; a garantia dos direitos de propriedade convive com a função social desta, isso porque o Estado Democrático de Direito assenta-se num extenso rol de direitos e deveres fundamentais e na garantia dos meios para a sua efetivação.
Para que tais intentos sejam operacionalizados, não basta um Estado regulador, alijado das preocupações sociais brasileiras, é necessário que ele participe, seja ativo, executando diversas ações governamentais para garantir os direitos e garantias constitucionais. Com esse propósito, o Estado se valerá de meios constitucionalmente delimitados, tal como o instituto da extrafiscalidade no direito tributário. Esse é o contexto no qual se passa a tecer considerações.
Inicialmente, analisa-se a extrafiscalidade no direito tributário, distinguindo-a da forma mais comum de cobrança de tributo: a fiscal. Feito isso, apresenta-se o conceito de extrafiscalidade tendo em vista o direito tributário constitucionalizado. A seguir, ingressa-se na análise da extrafiscalidade, como meio de implementação de políticas públicas, com o fim de verificar, a partir de verificação de aplicações práticas adotadas no Brasil.
2. A extrafiscalidade
Com a finalidade de situar brevemente o tema explanado, BECKER, ao tratar dos fundamentos jurídicos do direito tributário, afirma que o Estado nasce por uma relação natural, como engenho humano que “uma vez criado, não subsiste ‘per se’, independente de seus criadores, porém é um Ser Social cuja criação é continuada” [4]. Este “Ser Social” distingue-se dos indivíduos que o criam e dotam-no de personalidade própria, de cunho social, distinto da personalidade jurídica. Para o referido autor, a personalidade jurídica é o reconhecimento da personalidade social do Estado, pelo direito positivo. [5] O fundamento de validade de Estado está rapport politique[6] entendido como “conjunto das relações que a imposição e a obediência de regras de conduta estabelecem, vinculando a todos os indivíduos membros de um grupo social” [7].
Neste contexto, o Estado se sustenta e se retroalimenta pela inteligência e vontade dos indivíduos em prol de um bem comum que é um bem comum temporal, porque localizado numa concepção de mundo específica, por exemplo, liberal ou social[8], que se materializa num texto constitucional, representando o “poder do Estado”, que nada mais é do que o “Poder dos Indivíduos que se transindividualizou” [9]. O Estado brasileiro, hodierno, é Democrático de Direito por opção do povo brasileiro, detentor da soberania, manifestado pelo Poder Constituinte Originário no Texto de 1988.
O bem comum estabelece uma relação que liga todos os indivíduos a um e cada um a todos, por meio de um feixe de direitos e deveres que possui na igualdade (ou no princípio da igualdade) um corolário unificador. É sob esta base que se funda o direito tributário. Segundo HARADA,
“Com gradativa evolução das despesas, para atender às mais diversas necessidades coletivas, tornou-se imprescindível ao Estado lançar mão de uma fonte regular e permanente de recursos financeiros. Assim, assentou-se sua força coercitiva para a retirada parcial das riquezas dos particulares, sem qualquer contraprestação. Dessa forma, o tributo passou a ser a principal fonte dos ingressos públicos, necessários ao financiamento das atividades estatais”.[10]
Atualmente, o fenômeno tributário encontra-se juridicizado, sendo categoria jurídica regulada pelo direito com fundamento de validade no princípio da legalidade estrita, ao contrário de sua origem histórica.
Bastante semelhante é o pensamento de ATALIBA, para o qual as normas tributárias têm por finalidade a atribuição de dinheiro ao Estado. Para o referido autor, o direito possui caráter instrumental[11], pois a norma jurídica é “meio posto à disposição das vontades para obter, mediante comportamentos humanos, o alcance das finalidades desejadas pelos titulares daquelas vontades”.[12]
Toda essa construção doutrinária do direito tributário, seu fundamento e finalidade, culminam com a teoria contemporânea do dever fundamental de pagar impostos, desenvolvida por NABAIS, sintetizada da seguinte forma:
“Como dever fundamental, o imposto não pode ser encarado nem com mero poder para o estado, nem como um mero sacrifício para os cidadãos, constituindo antes o contributo indispensável a uma vida em comunidade organizada em estado fiscal. Um tipo de estado que tem na subsidiariedade da sua própria acção (económico-social) e no primado da autorresponsabilidade dos cidadãos pelo seu sustento o seu verdadeiro suporte. Daí que se não possa falar num (pretenso) direito fundamental a não pagar impostos”.[13] (grifos do original)
O Estado brasileiro, assim como a maioria das nações ocidentais, apresenta-se como Estado Fiscal, cujas necessidades financeiras são essencialmente cobertas por tributos.[14] Diante disso, a principal função dos tributos é prover os cofres públicos a fim de executar a função pública, a qual deve pautar-se pelo interesse público, conforme leciona MELLO [15]. Nesse contexto, desenvolveu-se, também, a exação extrafiscal, cuja finalidade é diversa da mera arrecadação fiscal, com fundamento no princípio da supremacia do interesse público.
Nesse sentido, conforme ensina MÉLEGA, citado por HARADA, “Os tributos já não se apresentam como simples fontes do poder de tributar, mas simultaneamente como emanação do poder de polícia, ou melhor, o poder de tributar observe o poder de polícia na tarefa de regular a economia. A extrafiscalidade é finalismo que informa qualquer tributo.”[16]
Assim, de um lado, apresentam-se os impostos de natureza fiscal, de outro, os impostos com finalidade extrafiscal, fundados no poder regulatório do Estado, que serão analisados nas sequência.
2.1. Conceito de Extrafiscalidade
A extrafiscalidade vincula-se ao campo da intervenção do Estado no domínio econômico e social, desconexo do poder de tributar propriamente dito[17], cuja finalidade é meramente arrecadatória, são “duas competências, a de tributar e a de regular”[18]. A extrafiscalidade se insere no último campo.
Autor igualmente clássico, BECKER prenunciou que a principal finalidade dos tributos: “não será a de um instrumento de arrecadação das despesas públicas, mas a de um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada” [19]. Em verdade, na construção da figura tributária não mais será ignorado a finalidade extrafiscal, nem será esquecida a finalidade fiscal, ambas coexistem e convivem, com maior ou menor prevalência de um em relação ao outro, a depender do contexto no qual se inserem. Segundo referido autor, a intervenção na economia privada, por meio de regras jurídicas tributárias, é necessidade inadiável, pois somente desta forma se garantirá à pessoa dignidade.[20]
Para NABAIS, embora a extrafiscalidade esteja fora das preocupações erigidas em torno do direito fundamental de pagar impostos, este dever exerce influência sobre o instituto.[21] O campo da extrafiscalidade está adstrito ao da “prossecução de objetivos económicos-sociais” [22], fundados no princípio do Estado social.
Não obstante, a doutrina nacional converge para um conceito de extrafiscalidade, como refere CARVALHO, à “forma de manejar elementos jurídicos usados na configuração dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatórios, dá-se o nome de extrafiscalidade”. [23] No mesmo sentido, CARRAZA, observa:
“Há extrafiscalidade quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou base de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir os contribuintes a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Por aí se vê a extrafiscalidade nem sempre causa perda de numerário; antes, pode aumentá-lo, como, por exemplo, quando se exacerba a tributação sobre o consumo de cigarros.”[24]
Pode também ser considerada como a cobrança de exação fundada no poder de polícia[25], o que parece impreciso, pois, embora os arts. 78 e 79 do CTN, conceituem poder de polícia, este tem melhor compreensão na doutrina administrativista. Veja-se, por exemplo, MELLO, para o qual poder de polícia é:
“[…] atividade da Administração Pública, expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (‘non facere’) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo”.[26]
De fato, existem pontos em comum entre ambos os institutos jurídicos, notadamente no que se refere ao condicionamento da propriedade dos indivíduos mediante ação estatal, com a finalidade de conformação dos atos segundo os interesses da sociedade. Entretanto, a extrafiscalidade não decorre da atividade da Administração Pública, mas é atividade legiferante, que exige conformação constitucional, pois é matéria de natureza eminentemente tributária, subsumida ao princípio da reserva legal. Não há como vislumbrar a cobrança de uma exação tributária por meio de atos normativos ou concretos da Administração Pública.
Tal como os impostos de natureza fiscal, deve-se observar a conformação da regra-matriz de incidência dissecada por CARVALHO ou pela hipótese de incidência tributária explanada por ATALIBA [27]. Segundo o primeiro, a regra-matriz de incidência é:
“[…] norma de conduta, vertida imediatamente para disciplinar a relação do Estado com seus súditos, tendo em vista contribuições pecuniárias. Concretizando-se os fatos descritos na hipótese, deve-ser a consequência, e esta, por sua vez, prescreve uma obrigação patrimonial. Nela, encontraremos uma pessoa (sujeito passivo) obrigada a cumprir uma prestação em dinheiro. Eis o dever-ser modalizado”. [28]
Percebe-se, que a regra-matriz de incidência tributária é o que legitima a instituição e cobrança de determinado imposto, ainda que extrafiscal. Portanto, não há como considerar os institutos – extrafiscalidade e poder de polícia – semelhantes, embora possuam finalidades convergentes.
Por fim, e bastante importante para o decorrer da explanação é o conceito de extrafiscalidade aferido por MEIRELLES, como “a utilização do tributo como meio de fomento ou de desestímulo a atividade reputadas convenientes à comunidade. É ato de política fiscal, isto é, de ação de governo para o atingimento de fins sociais através da maior ou menor imposição tributária.”[29]
Portanto, a extrafiscalidade está alijada à função primordial dos tributos, qual seja, abastecimento dos cofres públicos, entretanto, constitui instrumento, no âmbito do poder estatal, para a prossecução dos objetivos econômico-sociais do Estado, seja por meio da regulação estatal, seja por meio do fomento de atividades.
2.2. Limites à extrafiscalidade
A doutrina em geral aponta os limites definidos pela Constituição à tributação excessiva e à legalidade, como os principais limitadores da imposição tributária, seja ela fiscal ou extrafiscal. No que atine ao último, ressalta-se a função do imposto extrafiscal e, desta forma, a ponderação principiológica é diversa. A doutrina apresenta alguns princípios como limites a essa função.
Por primeiro, apenas para ressaltar, o princípio da legalidade é que legitima toda a atuação estatal no campo do direito. No direito tributário, em específico, esse princípio ganha contornos estritos, pois, “somente poderá instituir tributos, isto é, descrever a regra-matriz de incidência, ou aumentar os existentes, majorando a base de cálculo ou a alíquota, mediante a expedição de lei”. [30] Qualquer incentivo fiscal, para que não se torne arbitrário, ou qualquer tributação restritiva, como a que incide sobre cigarros para que não implique em apropriação indevida, somente é concebível mediante lei, com antecedente constitucional prévio estabelecendo a competência.
Por segundo, destacamos o princípio da proibição do tributo com efeito de confisco. O direito econômico – ramo jurídico no qual se insere a temática em análise, em sentido último – não deve sofrer “exigentes limitações constitucionais” [31], sendo que, em regra, os Estados deixam a sua administração ampla liberdade de condução neste quesito, sendo limites materiais à aplicação extrafiscal do tributo o princípio da proibição do excesso e do arbítrio.[32] Esse princípio desdobra-se em: a) legitimidade dos fins, ou seja, relaciona-se com a finalidade constitucional almejada; b) imprescindibilidade do meio, ou seja, a utilização extrafiscal do tributo se impõe, pois não há meio sucedâneo com os mesmos efeitos e; c) razoabilidade ou proporcionalidade em sentido estrito, que indica a relação direta entre o sacrifício exigido com a relevância da finalidade objetivada.
Esse princípio, também denominado de princípio da vedação ao confisco, ganha relevo em se tratando de exação extrafiscal como instrumento de proteção ao contribuinte sugerindo a aplicação ponderativa dos princípios constitucionais envolvidos num caso em específico, conforme teorizações de ALEXY e DWORKIN.[33] Em todo caso, destaca-se a dificuldade em estabelecer parâmetros objetivos e claros, cabendo ao Poder Judiciário, em última instância, decidir fundamentadamente quanto ao mérito propriamente dito do direito pleiteado.[34]
Percebe-se que definir o conceito de confisco não é difícil, todavia, complicado é definir os limites além dos quais a tributação torna-se confiscatória. Não há, na doutrina pátria ou europeia ocidental, quem enfrente satisfatoriamente o tema. Esse princípio, em verdade, apenas nos fornece um “rumo axiológico, tênue e confuso, cuja nota principal repousa na simples advertência ao legislador dos tributos, no sentido de comunicar-lhe que existe um limite para a carga tributária.”[35]
Por terceiro, cumpre explanar brevemente sobre o princípio da igualdade e sua relação com a extrafiscalidade. Considera-se a priori ser limitador da atividade impositiva estatal, não coadunando com a extrafiscalidade, pois, por exemplo, em algumas situações, benefícios são concedidos a determinados setores da economia ou a alíquota do imposto de importação é elevada sobremaneira em relação a determinado bem. Na realidade, o princípio da igualdade na extrafiscalidade é buscado de maneira indireta, por buscar concretizar fins estatais diversos do propriamente fiscal, não se graduando especificamente pelo parâmetro da capacidade contributiva.
Em análise da capacidade contributiva, CARVALHO refere como o “padrão de referência básico para aferir-se o impacto da carga tributária e o critério do juízo de valor sobre o cabimento e a proporção do expediente impositivo”. [36] Destaca dois momentos do princípio da capacidade contributiva. O primeiro o de “realizar o princípio pré-jurídico da capacidade contributiva absoluta ou objetiva retrata a eleição, pela autoridade legislativa competente, de fatos que ostentem signos de riqueza”.[37](grifo do autor); o segundo, “também é capacidade contributiva, ora empregada em acepção relativa ou subjetiva, a repartição da percussão tributária, de tal modo que os participantes do acontecimento contribuam de acordo com o tamanho econômico do evento”.[38] (grifo do autor)
Na realidade, o princípio da capacidade contributiva – fortemente relacionado com o princípio da igualdade – no campo da extrafiscalidade não possui aplicação direta, pois essa do tributo visa a garantir fins sociais ou econômicos do Estado por meio de atividades de incentivo ou regulatórias, restringindo ou oportunizando situações, nem sempre agindo de forma igual, mas, por vezes, relativizando o primado da igualdade para assegurar bens outros constitucionalmente relevantes ou para garanti-lo em sentido material.
Finalmente, NOGUEIRA, no que diz respeito aos limites à extrafiscalidade, destaca que atuação extrafiscal deve estar concentrada na figura da União, tendo em vista que se trata de poder central do Estado brasileiro[39]. Além disso, para o referido autor é necessário a observância dos parâmetros constitucionais, fora dos quais não se concebe a atuação de qualquer ente da Federação.[40]
Atualmente, no que tange à concentração da atuação na figura da União, embora na prática isso se confirme, tal postura sofre fortes críticas da doutrina, na medida em que, respeitados os parâmetros constitucionais de atribuição de competência, a atuação extrafiscal numa municipalidade é legal e aconselhável, pois um município está mais próximo da população em contato com as necessidades locais. Como exemplifica BOFF é necessário repensar uma melhor regulação da repartição de receitas tributárias tendo em vista o modelo particular da Federação brasileira.[41]
No mesmo sentido, observa HARADA que o seu emprego
“[…] não fica adstrito ao âmbito federal. Estados e Municípios podem fazer uso da extrafiscalidade para regular matéria de sua respectiva competência, (…). Do contrário, seria negar a autonomia das entidades periféricas, restringindo o exercício do poder de polícia a outros meios ou instrumentos normativos que não sejam de natureza tributária, isto é, excluindo o instrumento tributário como meio de manifestação do poder de política.”[42]
Em tom de conclusão, frise-se que a extrafiscalidade é um instrumento jurídico posto à disposição do Estado para, no campo do direito tributário, atuar para além da arrecadação tributária, com o fito de garantir os direitos e deveres constitucionalmente delimitados, em especial as exigências do Estado Social. Assim, passamos no capítulo seguinte à análise das políticas públicas para finalmente, correlacionar ambos os institutos.
3. Políticas públicas: conceituação e localização do tema
Exposto o funcionamento e a aplicação extrafiscal da exação tributária na teoria, passa-se à análise das políticas públicas. Inicia-se com a contextualização do tema.
No que atine ao direito administrativo, ramo afeto ao das políticas públicas, BARROSO, afirma que três circunstâncias devem ser consideradas: a) a existência de uma vasta quantidade de normas constitucionais voltadas para a disciplina da Administração Pública; b) uma série de transformações pelas quais o Estado brasileiro sofreu nos últimos anos e; c) a influência da principiologia constitucional sobre as regras de direito administrativo.[43] Desse modo, o princípio da supremacia do interesse público [44], considerado, inclusive, um dos princípios basilares do direito administrativo, deve ser analisado detidamente.
O princípio da supremacia do interesse público ao lado do princípio da legalidade são fundamentais porque denotam a bipolaridade do direito administrativo: liberdade do administrado, por um lado, e autoridade da Administração Pública, por outro.[45] O “interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”.[46]
A temática das políticas públicas, como atuação da autoridade pública de modo a conduzir a Administração para a realização do bem comum, insere-se, portanto, no viés primário do interesse público e, em caso de colisão com os demais princípios presentes na Constituição, será utilizada a técnica da ponderação de princípios que predomina no direito contemporâneo. Embora não previsto expressamente no texto constitucional, o princípio da supremacia do interesse público é cediço na doutrina[47] e a na jurisprudência pátria sua integral aplicação.[48]
A institucionalização do Estado Democrático de Direito, com ordens constitucionais definidas e vinculativas que dotam as regras e princípios constitucionais de juridicidade, criam ambiente positivo para o Administrador Público implementar políticas públicas, sobrepondo-se, inclusive, às liberdades e garantias individuais. Essa sobreposição, entretanto, não é direta, mas depende de filtragem constitucional, pois, “nenhum interesse pode ser considerado público se levar ao sacrifício dos valores e dos direitos fundamentais. A preponderância do interesse público exige que todos os esforços sejam empregados, com a maior eficiência possível, para o atendimento do indivíduo.”[49]
Portanto, as políticas públicas podem ser situadas dentro da seara do direito administrativo, representando as diversas formas de atuação estatal para atendimento do interesse público. A origem do termo políticas públicas está inclinada às ciências administrativas e econômicas que propriamente ao direito. De acordo com SOUZA, são quatro os pensadores que teorizaram, pioneiramente, sobre políticas públicas: H. LASWELL, que introduz na década de 40 a ideia de “análise de política pública” (policy analysis); H. SIMON, que introduz o conceito de racionalidade limitada dos decisores públicos (policy makers) ; C. LINDBLOM, que trata das variáveis que influenciam a prática de políticas públicas e, finalmente, e D. EASTON, que define políticas públicas como sistema, como uma relação entre formulação, resultados e o ambiente.[50]
Seguindo TEIXEIRA, define-se política pública como:
“[…] diretrizes, princípios norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do Estado. São, nesse caso, políticas explicitadas, sistematizadas ou formuladas em documentos (leis, programas, linhas de financiamento) que orientam ações que normalmente envolvem aplicações de recursos públicos. Nem sempre porém, há compatibilidade entre as intervenções e declarações de vontade e as ações desenvolvidas. Devem ser consideradas também as ‘não ações’, as omissões, como forma de manifest, ação de políticas, pois representam opções e orientações dos que ocupam cargos”.[51]
As políticas públicas, portanto, constituem um conjunto das mais diversas atuações do poder público, visando atendimento da finalidade pública, o conjunto de atividades voltado para a satisfação do interesse público com a finalidade de realizar os direitos fundamentais dos cidadãos. Como prover todas as necessidades dos administrados é impossível diante da escassez de recursos, o Administrador, por meio da eleição dos princípios do mínimo existencial e da reserva do possível, estabelece fórmulas para elencar as políticas públicas prioritárias.[52] LEAL, em sentido semelhante, refere-se a “políticas públicas constitucionais vinculantes como as ações atribuídas pela Constituição aos Poderes Públicos destinadas à efetivação de direitos e garantias fundamentais”.[53] Assim, as políticas públicas constituem programas de atuação dos governos tendentes à realização dos fins estatais [54], que são consubstanciados nos objetivos fundamentais e nos direitos sociais, que, em grande maioria, exigem atuação ativa do poder público.
Nesse sentido, de acordo com SARLET [55], “os direitos fundamentais prestacionais (…) sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, sendo, na medida desta aptidão diretamente aplicáveis, aplicando-se-lhes (com muito mais razão) a regra geral, (…), no sentido de que inexiste norma constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade”. A forma com que esses direitos são positivados no texto constitucional, de acordo com o referido autor, determinará o quantum de eficácia dos direitos fundamentais prestacionais [56].
3.1. Mínimo existencial e reserva do possível como pressuposto e limite ao desenvolvimento de políticas públicas
É cediço que os direitos fundamentais prestacionais possuem relevância econômica, porque “diretamente vinculadas à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais” .[57] Em razão disso, desenvolveu-se, como limite à atuação estatal e, logicamente, como limite à instituição de políticas públicas, o princípio da reserva do possível, sintetizada por SARLET como uma “espécie de limite fático e jurídico dos direitos fundamentais” [58], que depende de uma série de fatores, tais como, a efetiva disponibilidade fática do direito prestacional, a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, relacionando-se com a questão orçamentária, competência legislativa e competência administrativa e, finalmente, com a questão da proporcionalidade e razoabilidade da prestação e sua exigibilidade.[59]
Além da reserva do possível, como um limite máximo para se imporem políticas públicas, há um outro limite: o mínimo existencial. Trata-se, em verdade, de pressuposto que aponta para o dever estatal de atuação. O mínimo existencial corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à sobrevivência e à vida digna de uma pessoa, constituindo o núcleo do princípio da dignidade da pessoa. São condições mínimas que o poder público deve levar em consideração na atuação governamental.[60]
Portanto, o conceito de política pública no direito é operacional, pois se centra na noção de atuação estatal conforme os ditames constitucionais e legais. Os postulados da reserva do possível e do mínimo existencial, por sua vez, coexistem e delimitam as margens fora das quais a política pública torna-se violadora de direitos fundamentais.
4. Extrafiscalidade como forma de implementar políticas públicas
Como anotado, a extrafiscalidade é um instrumento jurídico de que se vale o Estado para garantir e dar efetividade aos direitos e garantias constitucionalmente delimitados por meio da maior ou menor exigência de tributos. As políticas públicas, por sua vez, constituem toda atuação do poder público na consecução da finalidade pública.
Desta forma, é evidente que a utilização dos meios extrafiscais de cobrança tributária é uma forma de implementação de políticas públicas que pode ser de diversas naturezas. Por exemplo, quanto ao grau de intervenção, poderíamos vislumbrar uma política pública estrutural, por exemplo, ao interferir em determinadas relações sociais como o fomento da empregabilidade de pessoas portadoras de necessidades sociais por meio de isenções fiscais.
Quanto à abrangência da política pública de natureza extrafiscal, esta poderia ser universal, segmentada ou fragmentada como ocorre com aumento de tributos sobre bens exportados como forma de fortalecimento da economia nacional.
Relativamente aos impactos nas relações sociais, pode-se supor uma tributação diferenciada para produtos alimentícios básicos como forma distributiva de política pública. Ou, até mesmo, uma tributação mais forte em termos de comércio de cigarros como forma de inibir o consumo para fins de saúde pública.
Desta forma, diante da diversidade de valores e bens tutelados pelo Estado brasileiro, as políticas extrafiscais servem para fomentar o desenvolvimento econômico e social, regular a utilização da propriedade privada, a livre iniciativa ou a livre concorrência, a defesa do meio ambiente, o desenvolvimento científico e tecnológico, bem como para o apoio à educação, à cultura e aos desportos, entre outros valores constitucionais.
A aplicação extrafiscal da exação tributária “ao incidir sobre situações, fatos ou estados de fato, indicativas da existência de capacidade econômico-contributiva dos sujeitos passivos, os impostos viabilizam a efetivação de inúmeras políticas públicas voltadas à realização de objetivos sociais e econômicos nas mais diferentes áreas da atuação das pessoas físicas e jurídicas”, promovendo ou reprimindo condutas, “estimulando ou dificultando o desenvolvimento de mercados, ensejando ou inviabilizando atos e negócios jurídicos”.[61]
Portanto, a extrafiscalidade é corolário do Estado Social e tem como objetivo criar condições para que o Poder Público preserve valores importantes da sociedade, cuja realização é de fundamental importância. E mais, as políticas públicas extrafiscais, embora mais próximas à atuação prestacional do Estado, não devem descurar da dinâmica do direito tributário e sua conformação, estando, desta maneira, em conformidade do Estado Democrático de Direito.
Diante da vasta gama de possibilidades de cobrança extrafiscal para a implementação de políticas públicas, passa-se à análise de casos em específico, o primeiro, em relação à contribuição sobre royalties para a geração de tecnologia; o segundo, sobre o regime simplificado de tributação para as microempresas e empresas de pequeno porte.
4.1 Casos específicos de extrafiscalidade como forma de implementação de políticas públicas
4.1.1 Contribuição sobre royalties para a geração de tecnologia
A lei nº 10.168/2000 instituiu Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE – destinada a financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação. Esse programa tem por finalidade estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro por meio de programas de pesquisa científica e tecnológica. Tal intento visa acelerar a inovação tecnológica no país, que, ainda hoje, é eminentemente exportador de matérias primas. A legislação insere-se no rol de políticas públicas com o fito de mobilizar a sociedade para a criação de ambiente favorável para empresas, universidades, centros de pesquisas e instituições de ensino conjuntamente desenvolvam programas para a inovação tecnológica.
A incidência da referida CIDE dar-se-á sobre pessoa jurídica detentoras de licença de uso ou adquirentes de conhecimentos tecnológicos, bem como, sobre aquela que for signatária de contratos que impliquem transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior, nos termos do art. 2º, da Lei nº 10.168/2000. Além disso, conforme alteração promovida pela Lei nº 11.452/2007, esta contribuição não incidirá sobre remuneração pela licença de uso ou de direitos de comercialização ou distribuição de programas de computador, salvo quando envolverem a transferência da correspondente tecnologia.
Conforme o §2º, do art. 2º, da lei sob análise, a CIDE incidirá sobre pessoas jurídicas signatárias de contratos que tenham por objeto serviços técnicos e de assistência administrativa a serem prestados por residentes ou domiciliados no exterior, bem assim, pelas pessoas jurídicas que pagarem, creditarem, entregarem, empregarem ou remeterem royalties, a qualquer título, a beneficiários residentes ou domiciliados no exterior. Este dispositivo constitui, em verdade, modelo inibidor de aquisição de tecnologia estrangeira, como forma de privilegiar a tecnologia nacional.
A CIDE incidirá à base de 10% (dez por cento), de acordo com o § 4º, da Lei nº 10.168/200, sendo devido sobre os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, a cada mês, para residentes ou domiciliados no exterior, a título de remuneração decorrente das obrigações assumidas nos termos do §2º, visto acima.
Os recursos captados serão destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, com o fim de custeio de diárias, passagens, material de consumo, investimentos, obras civis, instalações, equipamentos e outros itens necessários ao desenvolvimento de programas em parceria entre empresas e instituições de ensino para a inovação tecnológica no país.
Esta lei, recentemente, passou pelo crivo do STF, num processo interpartes [62], no qual uma empresa de motosserras arguiu violação de diversos princípios constitucionais, entre eles o da livre iniciativa, o da livre concorrência e o da propriedade. Na realidade, como já referido, esta é uma hipótese de colisão entre princípios, que deve ser subsumida pela técnica de ponderação de valores, hipótese em que o STF entendeu ser mais relevante, na situação em concreto, o princípio do desenvolvimento tecnológico do país. Além disso, em termos formais, foi alegada a inconstitucionalidade da lei que instituiu a CIDE por não se tratar de lei complementar. Tal alegação também não obteve êxito, pois entende a Corte ser “dispensável a edição de lei complementar para a instituição desta espécie tributária”.[63]
4.1.2 Regime de tributação simplificado para microempresas e empresas de pequeno porte
No art. 146, inciso III, alínea “d”, da CF[64] há previsão de possibilidade de lei complementar instituir regime tributário diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte. Esta forma diferenciada de tributação objetiva conferir efetividade ao art. 3º, incisos II e III da Constituição da República, por meio de aplicação extrafiscal de tributação como instrumento do desenvolvimento nacional e da superação de desigualdades sociais.
Atualmente, este dispositivo é regulamentado pela Lei Complementar nº 123/2006, que institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, o qual possui uma série de instrumentos para operacionalizar o mandamento constitucional, com destaque para o regime único de arrecadação de tributos – conforme o art. 1º, inciso I, da Lei nº 123/2006 – e o acesso ao crédito e ao mercado, inclusive com preferência nas aquisições de bens e serviços pelos Poderes Públicos, nos termos do art. 1º, inciso III, da referida Lei Complementar.
A respeito da constitucionalidade desta lei já se manifestou o STF no sentido de que não é possível vislumbrar “ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do regime do simples aquelas cujos sócios têm condição de disputar o mercado de trabalho sem assistência do Estado”.[65]
5. Conclusão
Diante do exposto tecem-se as seguintes e breves conclusões:
1. A extrafiscalidade é expediente de natureza notadamente tributária cuja finalidade é diversa da incidência tributária de natureza fiscal, que tem por objetivo operacionalizar os direitos e garantias fundamentais postulados na Constituição, por meio de diversas técnicas, tais como benefícios fiscais e isenções ou alíquotas severas com intuito de inibir determinada atividades ou setores econômicos.
2. Juridicamente falando, política pública é toda atuação estatal visando atingir a finalidade pública. O Estado Democrático de Direito, tal como se apresenta no Brasil contemporaneamente, exige não apenas uma atitude negativa estatal, mas também, e ao mesmo tempo, um Estado que providencie meios para prover os direitos constitucionalmente assegurados.
3. Nesse contexto, a extrafiscalidade é um dos expedientes de que se pode valer o Poder Público para implementar políticas públicas, seja para regular determinado setor da econômica, seja para fomentar determinado setor econômico ou atividade, seja para prover meios para garantir a saúde pública.
4. Como exemplo deste tipo de prática pela Administração, apresentamos a Lei nº 10.168/2006, que dentre outras disposições, prevê a imposição de uma CIDE sobre tecnologia adquirida no estrangeiro, como forma de fomentar a inovação tecnológica no território nacional, bem como a utilização dos recursos arrecadados para a criação de programas entre empresas e instituições de ensino para a inovação tecnológica.
5. Finalmente, o último exemplo, no qual a Lei Complementar nº 123/2006 instituiu um regimento diferenciado e mais facilitado para as microempresas e empresas de pequeno porte, como forma de efetivar os objetivos constitucionais definidos nos incisos II e III da Constituição da República.
Informações Sobre os Autores
Salete Oro Boff
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito-Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Trabalho vinculado à Linha de Pesquisa “Políticas Públicas de inclusão social”, projeto “Políticas Públicas para a inovação, proteção jurídica da tecnologia e desenvolvimento: em busca do equilíbrio entre a propriedade privada e os interesses difusos”. Pós-doutora em Direito de Propriedade Intelectual pela UFSC. Doutora em Direito pela UNISINOS. Professora da Faculdade Meridional – IMED- Passo Fundo-RS. Professora do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA
Ricardo S. Torques
Pós-graduando em Direito Processual Civil do IESA – Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. Graduado em Direito pelo UFPR