Políticas públicas e realização dos direitos fundamentais: O controle da eficiência e o dever fundamental de pagar tributos

Resumo: O artigo aborda a importância da participação social no controle da eficiência das políticas públicas, bem como para o financiamento dos direitos fundamentais, destacando o dever de pagar tributos.


Sumário: 1. O controle das políticas públicas como instrumento para uma boa administração. 2. A tributação e o financiamento dos direitos fundamentais. 3. O dever fundamental de pagar tributos. 4. Conclusão.


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1. O controle das políticas públicas como instrumento para uma boa administração:


Com o constitucionalismo contemporâneo, denominado “neoconstitucionalismo” por parte da doutrina[1], a Constituição passa a exercer um papel ainda mais relevante no ordenamento jurídico brasileiro.


Entre suas principais características, cabe ressaltar o caráter central conferido à Constituição, da qual devem emanar os valores e princípios essenciais a serem observados na elaboração, interpretação e aplicação das demais normas jurídicas.


Outro importante aspecto a ser destacado é o da superioridade das normas constitucionais, que devem prevalecer diante de qualquer outra existente na ordem jurídica.


O incremento da força normativa da Constituição, com o reconhecimento da imperatividade de suas normas, também representa relevante característica do novo modelo de constitucionalismo, embora permaneçam algumas divergências doutrinárias, sobretudo no que diz respeito à normatividade dos princípios.


Entretanto, parece inevitável que se admita a vinculação de todo o ordenamento jurídico aos ditames constitucionais, o que inclui sua obediência por parte das diferentes esferas de atuação do Poder Público.


Nesse contexto, o controle das políticas públicas representa uma forma de se perseguir a concretização desses valores e princípios estabelecidos na Constituição, relacionando-se com a idéia de que a administração pública, para que seja considerada uma boa administração, deve agir de acordo com valores jurídicos definidos.


De fato, uma vez que a Constituição estabelece prioridades a serem observadas pela sociedade brasileira, apresentando os direitos considerados fundamentais, não há que se imaginar que as escolhas da administração pública sejam pautadas em diretrizes outras senão naquelas previstas ao longo do texto constitucional.


Ao tratar do controle sistemático dos atos administrativos, bem destaca Juarez Freitas[2]:


“Nessa ordem de ponderações, o controle sistemático dos atos discricionários e vinculados tem de tornar visível o caráter vinculante do direito fundamental à boa administração pública e, simultaneamente, contemplar a discricionariedade como não inteiramente descontínua e sem limites.”


A questão, que em um primeiro momento pode parecer simples e de fácil conclusão, se mostra complexa e apta a ensejar uma série de questionamentos, sobretudo tendo-se em mente que a realização dos direitos fundamentais, em especial daqueles chamados direitos sociais, implica na utilização de recursos financeiros, que, por sua vez, são limitados.


Assim, mostra-se relevante que se estabeleça qual o conceito de políticas públicas a ser adotado, bem como qual seria seu conteúdo jurídico, tornando possível o controle dos resultados.


Segundo Maria Paula Dallari Bucci, pode-se conceituar as políticas públicas como sendo “programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.[3] Entretanto, a própria autora em sua obra ressalta a dificuldade existente em se definir qual seria a expressão jurídica das políticas públicas.


Nesse sentido, ainda que permaneçam dúvidas quanto à dimensão de sua exteriorização para o Direito, a doutrina vem apontando alguns parâmetros para a realização do controle das políticas públicas.


Seriam estes objetivos (como a determinação da quantidade de recursos a ser aplicada em cada política pública); finalísticos (mediante a identificação de quais prestações mínimas o Estado deveria oferecer à população, fixando-se quais seriam as conseqüências no caso de descumprimento); ou relativos aos meios que serão utilizados para a realização das políticas públicas (com vistas a garantir uma eficiência mínima na atuação administrativa)[4].


Outro importante mecanismo é a garantia do acesso à informação no que diz respeito à execução das políticas públicas. De fato, as questões relativas ao orçamento público, não obstante sua enorme importância, nem sempre recebem o merecido destaque na sociedade, que se mantém pouco informada acerca da destinação atribuída às receitas obtidas pelo Estado.


Cabe destacar, ainda, a elaboração de instrumentos de controle, para o caso de descumprimento dos parâmetros fixados, como outro mecanismo a ser utilizado na busca por uma satisfatória realização das políticas públicas.


Nesse ponto, pode-se apontar alguns instrumentos de controle já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, como as previsões dos artigos 85 e 208, §2º da CRFB/88 e aquelas constantes na Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade) e LC101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal).


Além disso, tem-se que o controle das políticas públicas pode ocorrer de maneira coletiva ou individual, no âmbito do Poder Judiciário.


O controle coletivo mostra-se importante na medida em que, além de conferir maior visibilidade à questão, permite a solução do caso de maneira isonômica. O mesmo pode-se dizer do controle realizado pela via abstrata.


No caso do controle individual, este se destina sobretudo ao resultado esperado das políticas públicas, sendo a forma mais usual de controle atualmente utilizada no Brasil. Ocorre, por exemplo, nos casos em que o Poder Público é omisso na prestação de algum direito fundamental, ou a realiza de forma insatisfatória, ensejando ações isoladas para a garantia desse direito. A título de exemplo, pode-se citar o caso do pleito judicial por remédios essenciais, bem como por vagas em escola de ensino fundamental.


No tocante ao controle das políticas públicas por meio do ingresso perante o Poder Judiciário, são cabíveis algumas considerações.


Como é sabido, a inconstitucionalidade pode decorrer tanto de ações positivas quanto da ausência de medidas necessárias ao atendimento da previsão constitucional – a chamada inconstitucionalidade por omissão. Nesse último caso, o Estado tinha o dever de agir e não o fez, permitindo que o direito permanecesse desprovido de eficácia e efetividade.


Diante de tal situação, cabe ao Poder Judiciário, mediante a adoção de uma postura afirmativa, garantir que seja suprida a omissão danosa, fazendo prevalecer a vontade constitucional. Deve-se destacar que as normas contidas na CRFB/88, tradutoras de direitos fundamentais, possuem eficácia imediata, devendo necessariamente ser aplicadas.


O argumento de que não cabe ao Poder Judiciário interferir nas escolhas relativas às políticas públicas, em razão do princípio da separação dos poderes, não deve em tais hipóteses prevalecer.


Até porque não se trata de uma invasão no espaço de atuação reservado à política, de forma a absorvê-la. O que se pretende é apenas a fixação de limites – pautados na Constituição – para essa atuação.


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Certamente, os magistrados não possuem a legitimidade conferida pela eleição para a tomada de medidas inerentes à administração pública. É verdade, também, que as leis orçamentárias devem ser elaboradas e observadas rigorosamente, na esteira do que prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal. Por sua vez, a teoria da reserva do possível revela-se importante instrumento para a fundamentação e controle das escolhas feitas pelo administrador em matéria de políticas públicas.


Entretanto, diante de violações a direitos fundamentais, sobretudo quando tal violação atinge a esfera do chamado mínimo existencial, a atuação afirmativa do Poder Judiciário mostra-se pertinente, ou melhor, necessária.


Mesmo diante de uma hipótese de conflito entre princípios constitucionais, na qual será necessária a utilização da técnica da ponderação, a proteção aos direitos fundamentais deve ocorrer de modo a preservar o núcleo essencial desses direitos, com vistas a assegurar o mínimo existencial.


Inclusive, tem-se que a garantia do mínimo existencial é medida necessária à própria viabilidade de uma sociedade democrática, posto que não se pode cogitar o exercício da cidadania sem que condições mínimas à sobrevivência sejam asseguradas.


Além disso, é perfeitamente possível que se alcance consensualmente padrões mínimos de dignidade a serem garantidos pelo Estado aos indivíduos, não havendo qualquer violação à autonomia política.


Deve-se ter em mente que a discricionariedade do administrador encontra-se delimitada pelos princípios constitucionais, que devem nortear sua atuação, impedindo que sejam tomadas medidas que traduzam inconstitucionalidades.


Nesse ponto, cabe destacar que a administração proba, pautada em valores e princípios presentes no ordenamento pátrio, é caracterizadora de um direito fundamental. Não pode o administrador, nesse contexto, atuar de forma contrária aos ditames constitucionais, sob pena de estar caracterizando uma violação não apenas a tais normas, mas também a um direito fundamental específico, qual seja, o direito à boa administração pública, previsto no artigo 37 da CRFB/88.


De fato, o constitucionalismo contemporâneo influenciou o Direito Administrativo de forma substancial, tornando-o cada vez mais atrelado aos princípios constitucionais. Nesse contexto, os princípios do Direito Administrativo passaram a receber papel de destaque na disciplina, antes pautada sobretudo no princípio da legalidade.


Atualmente, sem que se afaste a importância do referido princípio, pode-se destacar outros tantos que se destinam a nortear a atuação da Administração Pública, tais como os princípios da moralidade, da impessoalidade, da sindicabilidade e da subsidiariedade[5].


A própria idéia de legalidade hoje vem sendo interpretada de maneira mais ampla, no sentido de que não apenas as leis em sentido formal devem ser respeitadas, mas o ordenamento jurídico como um todo – a chamada juridicidade. Por sua vez, a noção de legitimidade vem sendo também cada vez mais difundida, relacionando-se com a vontade popular democraticamente manifestada.


Esses princípios basilares do Direito Administrativo possuem forte ligação com os princípios da eficácia, da eficiência e da economicidade, de grande relevância na seara do controle das políticas públicas.


Para ser considerada uma boa administração, esta deve optar por adotar medidas que sejam aptas a ensejar o resultado esperado (eficácia), que o façam da maneira mais adequada (eficiência) e que não representem desperdício do erário (economicidade) – e a verificação do cumprimento de tais princípios no caso concreto pressupõe o prévio estabelecimento de parâmetros objetivos acerca do tema.


Aqui, cabe mencionar a relação apresentada por Paul Krugman acerca de eficiência e equidade[6]. Segundo o economista norte-americano, deve-se atentar para o fato de que não necessariamente a medida mais eficiente será a mais justa. De fato, a eficiência diz respeito ao melhor modo de se alcançar um resultado, mas isso não quer dizer que tal resultado seja aquele mais desejado. Afinal, pode este não ser justo[7].


Não obstante já se tenham feito críticas quanto à ênfase conferida pelos economistas à eficiência, em suposto detrimento da idéia de justiça, parece que tais entendimentos não merecem acolhida, uma vez que a busca pela eficácia de maneira nenhuma exclui um padrão mínimo de justiça.


Outro importante princípio relacionado com o controle das escolhas do administrador em matéria de políticas públicas é o princípio da publicidade, envolvendo as noções de motivação e transparência dos atos administrativos.


Conforme já mencionado, a garantia ao acesso à informação mostra-se de extrema relevância para que a sociedade possa participar de forma mais ativa e consciente do processo de elaboração e implementação das políticas públicas, na medida em que terá condições de analisar se as escolhas realizadas pelo administrador foram adequadas, com base em dados concretos.


Nesse ponto, cabe destacar a importância da participação da sociedade no processo de controle das políticas públicas, uma vez que o torna legítimo, em consonância com a idéia de democracia participativa.


Dessa forma, com base em uma análise sistemática do Direito, é possível concluir que a definição e utilização de mecanismos de controle dos atos administrativos, em especial àqueles relacionados com a realização das políticas públicas, representa meio adequado e necessário para que se tenha uma boa administração, possibilitando – ou, ao menos, perseguindo – a concretização dos direitos previstos na Constituição.


2. A tributação e o financiamento dos direitos fundamentais:


Como visto no tópico anterior, a realização das políticas públicas tendentes à concretização dos direitos fundamentais envolve o dispêndio de recursos públicos – limitados -, o que exige por parte do Poder Público e de toda a sociedade um controle da eficiência em sua execução. Nesse contexto, mostra-se também relevante a análise acerca da obtenção de tais recursos, que ocorre sobretudo com base na tributação, tida como principal fonte de financiamento dos direitos fundamentais.


De fato, o poder de tributar conferido ao Estado pode ser fundamentado de diversas maneiras. Entretanto, cada vez mais, a doutrina vem enfatizando a relação da tributação com os direitos fundamentais.


Sobre esse aspecto, cabe destacar a precisa classificação apresentada por Paulo Caliendo[8] no que diz respeito às formas de justificação do Direito Tributário, que seriam: i) expressão de poder (pensamento conceitual); ii) sistema jurídico (pensamento normativo); e iii) sistema de direitos e deveres fundamentais (pensamento sistemático).


De acordo com o pensamento conceitual, a tributação está vinculada ao poder político, à idéia de soberania do Estado, e não à existência de normas disciplinadoras da matéria. Para os teóricos que defendem esse pensamento, a Constituição representa um diploma essencialmente político, com a função de distribuir o poder de tributar entre os entes federativos.


Já pelo pensamento normativo, há o reconhecimento de que o Direito Tributário está inserido em um sistema maior, qual seja, o Direito Constitucional. Aqui, a Constituição é vista como norma jurídica responsável pela repartição de competências, em uma perspectiva formal.


Por sua vez, o pensamento sistemático consagra a relação entre a tributação e a realização dos direitos fundamentais, representando uma evolução em relação aos modelos anteriores.    


Segundo este pensamento, a própria tributação é considerada como um dever fundamental, posto que a Constituição estabelece valores a serem observados tanto pelo poder público como por toda a sociedade.


No Brasil, diversos doutrinadores vêm adotando essa visão sistemática do Direito Tributário, pós-positivista, seguindo uma tendência do direito comparado.


Nesse sentido, destaca-se Ricardo Lobo Torres que apresenta um conceito constitucional de tributo, que seria “o dever fundamental, consistente em prestação pecuniária, que, limitado pelas liberdades fundamentais, sob a diretiva dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, do custo/benefício ou da solidariedade e com a finalidade principal ou acessória de obtenção de receita para as necessidades públicas ou para atividades protegidas pelo Estado, é exigido de quem tenha realizado o fato descrito em lei elaborada de acordo com a competência específica outorgada pela Constituição”.[9]


De fato, não se pode considerar a tributação como mera expressão do poder estatal, mas sim como forma de realização dos valores constitucionalmente previstos. Ao tratar do tema, afirma Paulo Caliendo: “…a tributação significa o modo de financiamento dos direitos fundamentais e da busca dos recursos necessários à realização dos valores da liberdade e da igualdade”.[10]


Deve-se ter em mente que, para que se estabeleça uma sociedade democrática organizada, a redistribuição de riquezas de mostra necessária, a fim de se minimizar as desigualdades sociais.


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A tributação, por certo, possui papel essencial na construção de uma sociedade pautada na noção de justiça distributiva, uma vez que, juntamente com as questões orçamentárias, envolve as atividades de arrecadação de recursos e tomada de decisões acerca da aplicação dos mesmos.


Além disso, não se deve afastar a idéia de Justiça Fiscal da tributação, sendo essencial que se relacione as normas tributárias com os valores constitucionais, tendentes à construção de uma sociedade mais justa. De fato, pode-se perceber tal influência na disciplina de princípios tributários como os da isonomia, capacidade contributiva, entre outros.


Nesse ponto, cabe destacar a tradicional classificação que distingue os tributos vinculados dos não vinculados. Entre os primeiros, estão aqueles cujo produto da arrecadação terá como destino a prestação de serviços específicos e divisíveis (como as taxas). Já o segundo grupo diz respeito a tributos cuja função é financiar serviços universais e indivisíveis – tais como a saúde e a educação, bem como atividades estatais em geral (como os impostos).


Tal distinção mostra-se relevante na medida em que a idéia de redistribuição de riquezas é mais evidente no caso dos tributos não vinculados, nos quais o financiamento dos direitos fundamentais por aqueles que possuem maior capacidade contributiva ocorre de maneira mais direta.


No que diz respeito à prestação de serviços universais e indivisíveis pelo Estado, com base sobretudo no produto da arrecadação de tributos, merece destaque o modelo vivenciado pelo chamado Estado de Bem-Estar Social (welfare state), no qual havia considerável intervenção estatal com vistas à garantia de direitos fundamentais essenciais, tais como saúde e educação.[11]


Entretanto, diversas críticas foram apontadas a esse tipo de Estado, que, na prática, de fato não se mostrou suficientemente adequado aos anseios da sociedade. Entre elas, está o demasiado crescimento da máquina estatal, com a conseqüente burocratização e desperdício de recursos públicos para sua própria manutenção; aumento excessivo dos gastos públicos, gerador de inflação e endividamento estatal; aumento da carga tributária, de modo a desincentivar a produção interna; entre outras.


Por sua vez, o modelo conhecido como Estado Fiscal também não se mostrou suficiente na solução da questão da arrecadação e financiamento dos direitos fundamentais. Nesse tipo de Estado, há um grande destaque para a cobrança de tributos não vinculados, como forma de expressão da soberania estatal, uma vez que este é o responsável por realizar as principais prestações tendentes à realização dos direitos fundamentais básicos dos cidadãos. Todavia, tal sistemática de distinção entre as esferas  da sociedade e do Estado não se coaduna com a moderna concepção de Estado Social e Democrático de Direito.


De fato, mais adequada é a idéia representada pelo chamado Estado Tributário, no qual há maior destaque para a busca pela efetiva promoção dos direitos fundamentais do que para a questão de seu financiamento em si.[12]


Assim, o Estado Tributário caracteriza-se pela instituição de tributos vinculados e não vinculados, além de benefícios fiscais. Há o reconhecimento de que Estado e sociedade devem atuar de maneira conjunta para a realização dos valores constitucionalmente previstos, sendo necessário que se compatibilize a participação estatal com a liberdade de atuação dos indivíduos nas questões sócio-econômicas.


No Brasil, pode-se citar como exemplos dessa concepção as previsões constitucionais acerca da progressividade, da proporcionalidade e da seletividade de alguns tributos (artigos 153, § 2º, inciso I; 153, § 3º, inciso I; 153, § 4º, inciso I; 155, § 2º, inciso III; 156, § 1º etc.), bem como as imunidades das instituições de assistência social, previstas no artigo 150, inciso VI, alínea c e § 4º, e 195, §7º, ambos da Constituição Federal.


 Outro ponto relevante acerca da tributação como meio de financiamento dos direitos fundamentais é a questão das contribuições sociais, que, como será desenvolvido no próximo tópico, têm como princípio justificador a solidariedade social, prevista no artigo 3º, inciso I, da CRFB/88 como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.


Tal princípio, como será abordado, exerce influência não apenas no campo das contribuições, mas em todo o Direito Tributário, uma vez que representa legítima expressão do exercício da cidadania em um Estado Democrático de Direito, no qual é imperativa a repartição de funções entre seus componentes. 


Nesse sentido, é cabível que se considere o pagamento de tributos como verdadeiro dever fundamental do cidadão, que irá ensejar, dentro de um sistema constitucional, o financiamento e a realização dos direitos fundamentais.


3. O dever fundamental de pagar tributos:


Não obstante sua importância, a disciplina dos deveres fundamentais vem sendo pouco abordada pela doutrina, que confere considerável destaque à temática dos direitos fundamentais. Entretanto, aos poucos se pode perceber uma evolução quanto à matéria, permitindo que se estabeleça alguns conceitos básicos acerca do tema.


 Inicialmente, destaca-se a definição de deveres fundamentais apresentada por José Casalta Nabais[13], que os aponta como “deveres jurídicos do homem e do cidadão que, por determinarem a posição fundamental do indivíduo, têm especial significado para a comunidade e podem por esta ser exigidos.”


Seriam, pois, posições jurídicas passivas (exprimem a situação de dependência do indivíduo perante o estado/comunidade), autônomas (em relação aos direitos fundamentais), subjetivas (são imputadas subjetivamente ao indivíduo pela constituição), individuais (referem-se aos indivíduos – não necessariamente pessoas humanas), universais (valem para todos os indivíduos, em regra), permanentes (são duradouras, irrenunciáveis para o legislador) e essenciais (são fundamentais para a sociedade)[14].


Por sua vez, Ingo Wolfgang Sarlet apresenta classificação dos deveres fundamentais que distingue os deveres relacionados diretamente com os direitos fundamentais (deveres conexos ou correlatos) daqueles que não estão ligados a nenhum direito subjetivo (deveres autônomos)[15].


Em seu estudo, o doutrinador português com pertinência ressalta que não se deve confundir o conceito de deveres fundamentais com outras espécies aproximadas, tais como os deveres constitucionais organizatórios, os limites aos direitos fundamentais, os deveres correlativos de direitos fundamentais, as garantias institucionais de deveres fundamentais, as sujeições constitucionais, os ônus, as tomadas a cargo de serviços e as tarefas constitucionais stricto sensu[16].


No Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê de maneira esparsa alguns deveres fundamentais, não havendo uma disciplina sistematizada como ocorre para os direitos fundamentais – não obstante o Capítulo I do Título II seja intitulado “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”.


Como exemplo de deveres fundamentais, pode-se apontar o dever de observância da função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII), o dever fundamental de solidariedade social e o dever fundamental de pagar tributos, estes últimos diretamente relacionados ao presente trabalho.


No que diz respeito ao dever fundamental de solidariedade social, sua principal previsão na CRFB/88 está no já citado artigo 3º, inciso I, que apresenta a solidariedade entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.


Trata-se de um dever imposto a toda a sociedade, do qual decorrem outros deveres fundamentais, entre eles o dever fundamental de pagar tributos.


De fato, há uma distinção entre a idéia de solidariedade geral, fundamento para o pagamento de impostos, e a noção de solidariedade de grupo, relacionada à cobrança das contribuições. Entretanto, para fins de estudo dos deveres fundamentais de solidariedade social e de pagar tributos, será considerada, de forma genérica, a categoria dos tributos.


O dever fundamental de pagar tributos, por sua vez, possui forte relação com o chamado Estado Fiscal, caracterizado pelo financiamento de suas principais necessidades financeiras por meio da instituição de tributos.


Nesse sentido, a tributação não deve ser encarada como expressão do poder soberano do Estado em face dos indivíduos, mas sim como atividade necessária ao bom funcionamento da própria sociedade organizada que ele representa.


Quer dizer, a cobrança de tributos não representa uma transferência coercitiva de riqueza, justificada pelo poder de tributar, sendo melhor definida como uma contribuição de cada cidadão para que se busque a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição.


A esse respeito, leciona Casalta Nabais[17]: “Noutros termos, o imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado.”


De fato, a arrecadação obtida por meio da atividade cobrança de tributos mostra-se, no Brasil, como a principal fonte dos recursos que são utilizados para a manutenção da administração do Estado, bem como para o financiamento dos direitos fundamentais (sobretudo os direitos sociais, que demandam prestações positivas por parte do poder público).


Assim, tendo-se em mente a idéia de solidariedade social (esta entendida como um dever fundamental), parece lógico que se conclua pelo dever de que cada pessoa contribua, na medida de sua capacidade financeira[18], para o custeio das despesas geradas em benefício de toda a sociedade.


Nesse ponto, é possível afirmar que o dever fundamental de pagar tributos se justifica inclusive pela vasta previsão de direitos fundamentais constante na CRFB/88. Por certo, a implementação desses direitos requer a aplicação de recursos financeiros oriundos dos cofres públicos, que, como dito, são alcançados sobretudo por meio da atividade tributária. Dessa forma, para que seja possível a concretização de tais direitos, o pagamento de tributos pelos indivíduos mostra-se essencial, justificando a caracterização de um dever fundamental.


Além disso, também é possível apontar como pressuposto desse dever fundamental o fato de a CRFB/88 conferir grande destaque às normas relativas à tributação. Afinal, ao apresentar um título especial denominado “Da Tributação e do Orçamento” (Título VI – artigos 145 a 169), infere-se que o pagamento dos tributos administrados de acordo com tais normas não é algo facultativo, mas sim um dever de todo cidadão.


No entanto, cabe ressaltar que a instituição e cobrança dos tributos constitucionalmente previstos necessita de legislação prévia regulamentando a matéria, não sendo possível a aplicação imediata das referidas normas. Em outras palavras, pode-se afirmar que os deveres fundamentais, entre eles o dever fundamental de pagar tributos, não são auto-aplicáveis[19].


Por outro lado, também não se pode conceber os deveres fundamentais como normas meramente programáticas, pois, como toda norma de cunho constitucional, possuem força normativa.


Outro ponto que merece ser destacado, conforme explicitado anteriormente, é que os deveres fundamentais não possuem necessariamente um direito a eles correlato, embora isso possa ocorrer em certos casos. Dessa forma, o dever fundamental de pagar tributos não implica na existência de um direito do contribuinte em exigir determinada prestação por parte do Estado[20].


Não obstante, é certo que a tributação apenas se justifica na medida em que serve como fonte de arrecadação de recursos a serem implementados na manutenção da máquina administrativa e na realização das políticas públicas. Consequentemente, a má aplicação dos valores recolhidos por meio da cobrança de tributos implica na ilegitimidade dos atos administrativos envolvidos.


Nesse sentido, cabe ressaltar a importância do controle a ser exercido em matéria de orçamento e políticas públicas, a fim de garantir que a utilização dos recursos arrecadados seja efetivamente dirigida aos fins constitucionalmente previstos.


4. Conclusão:


Como visto, a tributação é o principal meio de financiamento dos direitos fundamentais, a serem implementados pelo Poder Público por meio de políticas públicas tendentes à sua concretização. Nesse sentido, deve ser considerada não como mera expressão de poder estatal, mas sim como instrumento para a realização de direitos e princípios constitucionalmente previstos.


Tendo-se em mente a idéia de solidariedade social, essencial ao Estado Democrático de Direito, o pagamento de tributos, na medida da capacidade contributiva de cada indivíduo, pode ser considerado como um dever fundamental, que representa forma de exercício da cidadania em uma sociedade organizada.


Entretanto, para que na prática tal sistemática se mostre satisfatória, caracterizando uma boa administração pública, é imprescindível que haja o controle da eficiência na obtenção dos recursos públicos, inclusive no que diz respeito ao estabelecimento de uma carga tributária razoável ao contribuinte, bem como na sua aplicação em políticas públicas, o que passa pelo controle acerca das escolhas feitas pelo administrador.  


 


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Notas:

[1] Acerca do neoconstitucionalismo no Brasil, destaca-se o artigo de Daniel Sarmento “O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades”. Biblioteca Digital Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 3, n. 9, jan/mar 2009.

[2]  FREITAZ, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais, 4ª Ed., Porto Alegre: Malheiros, 2009. P. 393.

[3] BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 241.

[4] BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 128-129. 

[5] Nesse ponto, cabe destacar a lição de Juarez Freitas: “…importa pensar a gestão pública em letras maiúsculas e defender, agora e a longo prazo, a encarnação viva da tutela e do direito à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora dos seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas.” Direito fundamental à boa administração pública e a constitucionalização das relações administrativas brasileiras. Interesse Público, Belo Horizonte, ano 12, n. 60, mar/abr 2010, p. 15.

[6] KRUGMAN, Paul e Robin Wells. Introdução à Economia. São Paulo: Elsevier, 2006. P. 282/283.

[7] Acerca de teorias da justiça, cabe a leitura da obra de John Rawls “Justiça como Equidade” (RAWLS, John. Justiça como Equidade. Uma Reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003). 

[8] CALIENDO, Paulo. Direito Tributário: três modos de pensar a tributação: elementos para uma teoria sistemática do Direito Tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. P. 140. 

[9] TORRES, Ricardo Lobo. O Conceito Constitucional de Tributo. In: TORRES, Heleno (Coor.). Teoria Geral da Obrigação Tributária. Estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, 2005. P. 589.

[10] CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e análise econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. P. 132.

[11] A respeito da economia no Estado de Bem-Estar Social, destacam-se as obras publicadas por A. C. Pigou, que buscou apresentar, sob um viés econômico, algumas leis de melhoria das condições materiais (social improvement).

[12]  Nesse ponto, cabe a ressalva de que a doutrina não é unânime quanto à nomenclatura utilizada na definição do que representam os Estados Fiscal e Tributário.

[13] NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998. P. 64.

[14] Ibid., p. 64 e seguintes.

[15] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. P. 241.

[16] NABAIS, 1998, Op. Cit., p. 674.

[17] Ibid.,  P. 185. 

[18] Nesse ponto, deve-se ter em mente que o princípio da capacidade contributiva possui como fundamento a noção de solidariedade.

[19]  Nesse sentido, Casalta Nabais chega a afirmar que os deveres fundamentais são dirigidos essencialmente ao legislador, por dependerem de lei infraconstitucional (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998. P. 677).

[20] No entanto, é possível fazer uma correlação entre o pagamento do tributo e a obtenção do benefício em certos casos de tributos vinculados, como as taxas.


Informações Sobre o Autor

Samantha Corrêa

Procuradora da Fazenda Nacional. Graduada pela UERJ. Pós-graduada pela UGF. Mestranda pela PUC/RS


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