Por trás dos bastidores da Mídia

Resumo: Este artigo objetiva demonstrar a íntima relação entre o sistema penal e os meios de comunicação de massa, principalmente em razão de seu papel enquanto formador de opinião. Nesta medida, os discursos da Mídia se constituem em forte reforço ao discurso oficial dominante, criando mitos e estereótipos.


No presente artigo, demonstro, por meio de uma breve análise, a íntima relação entre o sistema penal e os meios de comunicação de massa, principalmente em razão de seu papel enquanto formador de opinião. Nesta medida, os discursos da Mídia se constituem em forte reforço ao discurso oficial dominante, criando mitos e estereótipos. Para demonstração de tal tese, analisei alguns casos ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que não raras vezes tem suas condutas tratadas pelo poder dominante como caso de polícia e não de política, como efetivamente deveria.


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O MST é um movimento marcado por forte efeito estigmatizante e a Mídia em muito contribui para sua desqualificação como legítimo direito à organização como movimento social. Sua atuação e objetivo são vistos pelas elites como ameaça à “ordem” pública, daí, criminalizá-lo, colocando obstáculos às suas ações e atividades dentro da dita ordem e da conquista pelos direitos que lhes são devidos.


Verifica Zygmunt Bauman que o rol de setores populacionais visados como ameaçadores à ordem social e, portanto, rotulados como desviantes aumentou. Assim, legitima-se sua expulsão por meio do encarceramento, como método eficiente para neutralizar a ameaça e acalmar a ansiedade pública, tanto da classe dominante como da classe média, que “compra” o discurso ideológico daquela.


A criminologia moderna mudou o enfoque de análise no estudo da criminalidade passando de causas biológicas e patológicas para explicações culturais e estruturais, o que constitui, no dizer de Baratta (1994) um avanço, mas indica, ainda, sua limitação, pois tais teorias baseiam seus estudos em uma imagem da criminalidade” parcial, focada no que denomina “criminalidade tradicional”, englobando:


as transgressões típicas das classes subalternas e das subculturas proletárias que vivem nas metrópoles capitalistas, tais como furtos, roubos, lesões corporais, violência sexual e vandalismo. Desta forma, essas teorias contribuíram para transmitir uma imagem parcial da criminalidade. (p. 13).


De acordo com este pesquisador opinião pública se coaduna com esta criminalidade tradicional, além de suas imagens serem formadas por estereótipos criminosos. Há um perfil presente no senso comum que é fortemente reforçado pela Mídia e que recai sobre as camadas sociais mais baixas, sendo estes os clientes preferenciais do sistema penal. Assim, acaba-se por justificar a desigualdade social, no sentido de que os menos privilegiados teriam, na sociedade, o lugar que merecem (1994:21). Enquanto isso, delitos praticados pela classe mais alta ficam impunes – a violência doméstica, por exemplo, nas camadas mais elevadas, normalmente, é acobertada; já os crimes de colarinho branco, em regra, encontra-se solução fora do sistema prisional.


A criminologia crítica trabalha com o paradigma da reação ou controle social, que se refere às formas pelas quais a sociedade trata comportamentos e pessoas que considera como desviantes, problemáticos, indesejados, podendo ser este controle tanto formal (através dos órgãos institucionalizados de controle, como normas, sistema penitenciário, policiais, promotores de justiça, entre outros) como informal (a família, a escola, a mídia, a religião, e outros). A criminalidade é um rótulo que certos sujeitos recebem por meio dos processos de interação social, sendo o criminoso uma qualidade atribuída. A função do controle social, segundo Andrade (2003), tanto o formal quanto o informal, é selecionar quem pode e quem não pode conviver na sociedade, retirando da mesma os inconvenientes. O controle penal é espécie do gênero controle social.


Como afirma corretamente a autora acima citada, uma conduta não é intrinsecamente criminosa nem um sujeito é criminoso em razão de sua personalidade ou por influência do meio, como no entender do paradigma etiológico de criminologia e inserido no inconsciente coletivo, não existindo, ainda, uma criminalidade que seja anterior e independente da intervenção do sistema penal. É o próprio sistema penal que, ao reagir, constrói socialmente a criminalidade. Neste sentido, afirma ser mais apropriado falar em criminalização e criminalizados, ao invés de criminalidade e criminosos.


Deve-se ficar claro que o sistema penal realiza o processo de criminalização e estigmatização em consonância com um sistema maior, que insere o controle social informal. O sistema penal constrói um conceito de criminalidade vinculado à violência individual. Desta forma, Andrade ainda argumenta que a violência de grupo e a institucional são consideradas apenas em relação a ações de seus membros isoladamente considerados, ignorando-se o contexto do conflito social que elas expressam (Idem, Ibdem,2003).


Baratta (1994) afirma que as pesquisas[1] (1) que relacionam imagem da criminalidade e alarme social demonstram que o medo do crime está mais associado às imagens do que ao crime em concreto, assim, os efeitos dos meios de comunicação e da circulação massificada dessas imagens acrescentam à percepção real uma espécie de percepção imaginária da criminalidade de rua (p.14). Outras investigações, afirma o autor, concluíram que o medo da criminalidade não resulta, em sua maioria, de situações experimentadas. Enfim, a criminalidade é, na verdade, socialmente construída através de processos de comunicação social e de mecanismos seletivos das reações sociais e oficiais.


Desta maneira, o medo do crime a este se liga por via simbólica, trazendo reforço a esta idéia nosso grande criminólogo citado anteriormente, quando nos mostra que o medo deriva da própria desorganização social, alienação e isolamento na qual se encontram os grandes conglomerados urbanos, as nossas metrópoles. Assim, expõe que criminalidade e medo não se condicionam reciprocamente e, portanto, a solução para o medo não pode ser buscada simplesmente por meio da contenção e repressão do desvio. Entretanto, a solução atualmente encontrada para minorar o medo que a população sente relaciona-se ao endurecimento das penas.


A Mídia, ao noticiar temas ligados à criminalidade, utiliza uma linguagem popular, com o fim de dramatizar o evento, de modo que a realidade cotidiana vem conceituada e confirmada como se fosse consenso. Ela surge como representante da opinião pública, quando, na verdade, reciprocamente se condicionam. A função de legitimação do status quo realizada pela imagem da criminalidade se realiza através do reforço da mentalidade da lei e da ordem (Baratta,1994).


Vemos que num modelo democrático de construção da informação, a sociedade não pode ser simples consumidora de notícia, deve passar a ser personagem principal e participar ativamente dos fluxos informativos, fundamentalmente porque os processos democráticos de produção de informações sobre a criminalidade permitem que uma comunidade assuma um papel ativo na elaboração de respostas bem mais eficazes para o conflito entre o desvio e a insegurança urbana (Idem, ibdem, p.16)


Elizabeth Rondelli, em seu texto Mídia e violência: ação testemunhal, práticas discursivas, sentidos sociais e alteridade, indica cinco formações discursivas, matrizes a partir das quais surgem explicações e sentidos referentes à violência:


1.      A primeira matriz privilegiada, como chama, é a Mídia e sua peculiar forma de falar e representar a violência, transformando-a em um espetáculo, para assim, banalizá-la.


Menciona dois sentidos imediatos construídos a partir das imagens de violência:


a)      aquele que é dado pelos atores-praticantes diretamente envolvidos;


b)      aquele que é dado pela Mídia, quando o fenômeno passa a ser por ela reportado a um público mais amplo (p.152).


2.      A segunda matriz discursiva construída a partir deste imaginário sobre a violência é aquela que inspira e orienta a elaboração de políticas públicas, mais especificadamente de políticas sociais, as quais engendram a organização legal e racional da sociedade (p.153).


Nesta área, os discursos se dividem. De um lado surgem aqueles voltados às políticas assistenciais ou de bem-estar e de outro estão os discursos direcionados às políticas de segurança, que buscam justificativas para legitimar a criminalização, a coibição e a punição da prática de atos violentos.


 


3.      A terceira refere-se ao discurso político-empresarial, em que se afirma a necessidade de modernização econômico-social e de adoção de uma política de investimentos a fim de se criar alternativas de trabalho e de vida, minimizando a exclusão social e a violência. Esta é vista aqui, como empecilho à expansão da produção e circulação dos bens e serviços que se realizam no espaço urbano.


4.      A quarta matriz identifica nas manifestações de violência formas de explicitação de todos os modos de injustiças sociais, clamando, desta maneira, por igualdade e pelo reconhecimento social e político das diferenças. “Os movimentos sociais e as organizações não-governamentais (ONGs) aparecem como os lugares plurais e privilegiados da construção destes sujeitos regidos, sobretudo, pela afirmação das diferenças, pelas lutas por equidade social”.(p.154)


5.      A última matriz situa-se na constatação pessimista da falência do Estado. Aqui, a violência e o aumento da criminalidade, mesmo em países ricos, surge como elemento natural deste mundo de final de milênio, regido por intolerâncias, pela existência de desigualdades e por lutas de poder insolúveis. Os sujeitos tornam-se meros espectadores da violência.


Existe na Mídia, também, construções de imagens sobre o Outro, tentando reproduzir imagens positivas e normalizadoras da ordem. Todo aquele que “sair do script”, aquele que é diferente, é demonizado e, assim, justifica-se todo ato de violência contra ele praticado. No dizer de Rondelli, esse Outro é apresentado, pela Mídia, como uma imagem símbolo de uma diferença que se quer eliminar em prol de uma visão da ordem (p. 158). O diferente serve para demonstrar, a contrário sensu, os traços constitutivos de uma identidade social normatizada.


A Mídia faz seu Outro na divulgação das notícias. Informa, não obstante deixe entrever por meio das fotos e manchetes, o discurso encoberto que deseja divulgar. Assim, no jornal O Globo, na página 8, seção O País, publicado no dia 13/04/04, lemos “Irritado, Planalto decide isolar o MST”, logo abaixo outra chamada, “É como se um ladrão invadisse a sua casa”, diz ruralista, acrescentando que governo é conivente com os sem terra. Na mesma página, abaixo da manchete “Três fazendas são ocupadas”, vê-se a afirmação de uma liderança do MST: “Temos de avermelhar o 1º de maio”, suscitando a idéia de sangue e luta armada.


O que chama atenção nestas reportagens e o que espanta é o fato de que estas notícias ocupam a parte central da página do periódico, além de serem emolduradas por quadro duplo e em negrito, enquanto lá embaixo, na mesma página 8, outra notícia muito pequena informava: Terras griladas devem ser liberadas para assentamento. A pergunta que fica é a seguinte: Qual o critério usado para considerar uma notícia mais importante que outra, ou seja, por que palavras chaves como: ladrão, invadisse, ocupadas, avermelhar, isolar, são mais importantes que outras ligadas à exploração, tais como: griladas, liberadas (antes, impedidas). O que existe por trás dessa engenharia de informação e do critério adotado?


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Ao se expor o Outro se permite que sobre ele se formem juízos e a criminalização de um se estende a todos os que lhes são semelhantes, criando-se estereótipos, permanecendo, assim, a exclusão. Relacionado-os com a transgressão da lei, justifica-se, mais do que a sanção, a expulsão desses indivíduos do espaço social da liberdade e da normalidade. (…) O que a Mídia expõe nestas imagens da violência é o desmantelamento real da teia da sociabilidade. (p. 159).


Em outro exemplo isto pode ser evidenciado: há alguns anos atrás tive em minhas mãos uma revista de grande circulação – a revista VEJA, que trazia na capa a chamada para a matéria central. A fotografia espetacular, indicativa de um confronto, referia-se ao Movimento Sem-Terra (MST), colocando de um lado os trabalhadores rurais com foices em punho e de outro os capangas do fazendeiro que teve sua terra ocupada. O que mais se destacava era a coloração vermelha-fogo, de ponta a ponta, colocada no lado em que a foto representava os trabalhadores, enquanto a outra face da mesma fotografia vinha colorida de azul. Nítida estava a mensagem subliminar: o céu e o inferno com seus respectivos anjos e demônios. Enfim, lá estava a noção de bandido e mocinho, de ordem e desordem, tudo colocado em uma só imagem, mas com muito conteúdo e já, por si só, formadora de opinião.


Desta forma, a realidade total, contextualizada social e historicamente, onde o MST se insere, se esfumaça na fragmentação dos fatos colocados pela notícia que se escancara a partir da fotografia estampada na capa de uma revista em seu chamamento à leitura, que de saída já vem distorcida para regalo da opinião pública. Momento de reflexão em que cabem as perguntas: Qual a realidade total retratada? Será esta toda a realidade? De qual opinião pública se fala? Haverá, efetivamente, uma opinião publica ou existirá uma opinião pública privada? Existe uma realidade total, todavia quem nos informa sobre ela? Qual a autoridade legitimada para tal? Como podemos depreender, os meios de comunicação de massa podem substituir os processos políticos e, inclusive, estabelecerem a distinção entre o público e o privado ao representarem as cidades, o país e os acontecimentos ocorridos nestes espaços e, retratados sob suas cores, podendo, portanto, determinarem o que é público e o que é opinião pública.


Se a notícia constrói a realidade social e o primeiro elemento para construí-la é o poder, que opera com base em grandes princípios de disciplinação, ela passa a produzir como efeito fundamental a dicotomia entre os bons e os maus. Se uma notícia não argumenta, explicitamente, quem são estes bons e quem são estes maus, ela traz em si, ao associar-se ao poder, que seleciona e classifica, o que vai ser publicado, noções coletivas de público e de privado que, se por um lado, ocultam realidades, por outro, as revelam em sua materialidade.

A dicotomia bom/mau gera o estereótipo, que se traduz na consolidação de noções de pertencimento e identidade. Se a norma é ser branco, homem, bonito, inteligente, cristão, de boa classe social e proprietário de bens, os maus serão os que se desviam deste padrão. Aqui, uma das funções do estereótipo é recortar e redefinir a sociedade em termos de oposições e diferenças de forma a permitir que se desenvolva o medo, ampliando-se o sentimento de insegurança e os discursos que criminalizam e penalizam aqueles que não se encaixam nas normas padrões estabelecidas, onde se incluem todos aqueles que lutam por seus direitos e que são considerados como desviantes– são os que subvertem a lei e a ordem.


Segundo Garcia, há uma filosofia centrada no sujeito presa às contradições insolúveis decorrentes da visualização do homem como sujeito e objeto de conhecimento. Esta filosofia do sujeito é o fundamento da racionalidade da modernidade imposta desde Descartes até Kant, que separa de modo absoluto o sujeito e o objeto de conhecimento, distanciados por uma relação de exterioridade. Aqui reside a aporia, isto é, no fato de o objeto de conhecimento ser o próprio homem, isolado ou socialmente considerado. “O sujeito cinde-se a ele próprio como sujeito objeto, objetiva-se como ser natural distinto do sujeito, para que possa ser estudado como objeto” (Garcia, 2000:15).


Habermas (1990) defende a ruptura com esta filosofia e sua substituição por uma concepção intersubjetiva baseada no agir comunicativo. Para ele, a contradição referida somente se resolve por meio da racionalidade comunicacional no mundo da vida[2], desreificando o sujeito do processo de conhecimento, trocando-se a idéia de consciência pela de compreensão. Sustenta, ainda, que os regimes constitucionais modernos requerem a atuação livre de cidadãos iguais entre si na definição de seus próprios rumos em bases racionais. Assim, as reivindicações sobre interpretações de normas tendentes à aplicação são lutas por direitos legítimos e pelo resgate da dignidade de tais agentes, traduzindo-se em lutas pelo seu reconhecimento. Aquele autor diferencia dois tipos de movimento pelo reconhecimento em sociedades democráticas:


a)      Aqueles que reivindicam direitos referentes à desigualdade de condições sociais de vida na sociedade capitalista. Aqui estariam as reivindicações de base material e que são incompatíveis, segundo Habermas, com a Teoria dos Direitos, porque os “bens básicos”, utilizando-se o conceito de Rawls, poderiam ser distribuídos individualmente ou poderiam ser utilizados individualmente. Assim poderiam ser entendidos sob a forma de reivindicações individuais de trabalho. Fenômeno que se encaixa à temática proposta por nós.


b)      Aqueles que lutam pelo reconhecimento de identidades coletivas e de igualdade cultural com diferentes formas de vida. Neste plano, de base pós-materialista, encontram-se movimentos como o de minorias em sociedades multiculturais, o de povos que anseiam pela independência nacional ou ainda regiões que pleiteiam internacionalmente a igualdade de valor de suas culturas.


Habermas  (1990) sugere três formas básicas para se incluir um tema na agenda política em sociedades complexas: modelo de acesso interno, modelo de mobilização e modelo de iniciativa externa. Os dois primeiros têm em comum a iniciativa da inclusão do tema pertence aos dirigentes políticos ou detentores do poder. O que os diferencia é que no primeiro, antes de se discutir o tema formalmente, o mesmo segue seu percurso no âmbito do sistema político sem influência, ou muito pouca, da esfera pública, enquanto no segundo, os detentores do poder são obrigados a mobilizar a esfera pública, pois carecem de seu apoio para implementação de um programa de ação em andamento ou em vias de o sê-lo.


Já no terceiro modelo, a iniciativa pertence efetivamente às forças que estão fora do sistema político, impondo tratamento formal ao tema em questão por meio da mobilização da esfera pública. Tal modelo, segundo Habermas, pode prevalecer em sociedades mais igualitárias, mas não quer dizer que as deliberações atendam aos anseios do grupo:


Em caso normal, os temas e sugestões seguem um caminho que corresponde mais ao primeiro e ao segundo modelos, menos ao terceiro. Enquanto o sistema político for dominado pelo fluxo informal do poder, a iniciativa e o poder de introduzir temas na ordem do dia e torná-los maduros para uma decisão pertence mais ao governo e à administração do que ao complexo parlamentar, e enquanto os meios de comunicação de massa, contrariando sua própria autocompreensão normativa, conseguirem seu material dos produtores de informações – poderosos e bem organizados – e enquanto eles preferirem estratégias publicitárias que diminuem o nível discursivo da circulação pública da comunicação, os temas em geral serão dirigidos numa direção centrifuga, que vai do centro para fora, contrariando a direção espontânea que se origina na periferia social”. (Habermas, 1997:114 apud Garcia, 2000).


Nilo Batista (2002) esclarece que a ligação entre a mídia e o sistema penal é uma importante característica dos sistemas penais do capitalismo tardio, sem, contudo, pretender afirmar que a legitimação do sistema penal pela imprensa seja algo exclusivo da conjuntura econômica e política que vivemos (p.271), havendo dados novos, devendo a referida vinculação mídia – sistema penal ser procurada nas condições sociais dessa transição econômica.


“O compromisso da imprensa – cujos órgãos informativos se inscrevem, de regra, em grupos econômicos que exploram os bons negócios das telecomunicações – com o empreendimento neoliberal é a chave de compreensão dessa especial vinculação mídia-sistema penal, incondicionalmente legitimante. Tal legitimação implica a constante alavancagem de algumas crenças, e um silêncio sorridente sobre informações que as desmintam. O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria idéia de pena: antes de mais nada, crêem na pena como rito sagrado de solução de conflitos”. (Nilo Batista, 2002, p.274)


Enquanto o MST passa para práticas mais incisivas utilizando a estratégia das ocupações, o Estado se lança contra o movimento utilizando-se do controle penal para deslegitimá-lo, rotulando-o não apenas de ilegal, mais, sobretudo como criminosos. É a deslegitimação pela criminalização e este processo tem dois enfoques, um pelo sistema penal, na qual a conduta dos integrantes do MST, especialmente de seus líderes, são tipificadas criminalmente, e outro processo, que ocorre em paralelo, é a construção de uma opinião pública, que se dá através da Mídia, um dos elos da criminalização do Movimento. Há, assim, uma interação entre o controle penal formal e informal.


“Bem próximo ao dogma da pena encontramos o dogma da criminalização provedora. Agora, na forma de uma deusa alada onipresente, vemos uma criminalização que resolve problemas, que influencia a alma dos seres humanos para que eles pratiquem certas ações e se abstenham de outras – e sempre com o devido cuidado –, que supera crises cambiais, insucessos esportivos e é mesmo capaz de semear lavouras, não nos desmintam as penitenciárias agrícolas. A criminalização, assim entendida, é mais do que um ato de governo do príncipe no estado mínimo: é muitas vezes o único ato de governo do qual dispõe ele para administrar, da maneira mais drástica, os próprios conflitos que criou. Prover mediante criminalização é quase a única medida de que o governante neoliberal dispõe: poucas normas ousa ele aproximar do mercado livre – fonte de certo jusnaturalismo globalizado, que paira acima de todas as soberanias nacionais –, porém para garantir o “jogo limpo” mercadológico a única política pública que verdadeiramente se manteve em suas mãos é a política criminal”. (Nilo Batista, 2002, p.275/6)


Pode-se observar o resultado obtido pela Mídia, enquanto formadora de opinião, no seu intento criminalizatório e legitimante do discurso dominante em uma fala de autor não divulgado, na seção Opinião do Jornal O Globo, que circulou no dia 21 de abril de 2004:


“O que há com o governo federal? Perdeu o pulso? Temos aí afrontando, afligindo e molestando a todos – governos e povo – o MST, as organizações criminosas, os selvagens do presídio Urso Branco, os garimpeiros e os cintas-largas, os movimentos grevistas e outros inúmeros crimes e pequenos delitos. Que medidas práticas vêm sendo tomadas? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pedindo bom senso “.


Devemos observar como o leitor coloca no mesmo diapasão grupos distintos: MST, garimpeiros, grevistas, organizações criminosas e rebeliões de presos. Ainda conclui: e outros inúmeros crimes e pequenos delitos. Como é rica a opinião acima mencionada com seu cunho criminalizador e rotulante. Impressionante é o poder exercido pelos meios de comunicação para tal assertiva colhida aleatoriamente à leitura de jornal diário, pois reflete o resultado provocado pela própria Mídia enquanto formadora de opinião, pois se a própria Mídia rotula os membros do MST como criminosos e baderneiros, é claro que o leitor de seu jornal vá seguir o mesmo diapasão e igualar os atos políticos do Movimento com, como ele próprio afirmou, as organizações criminosas, os selvagens do presídio Urso Branco.


Rotula-se o excluído, o diferente, como perigoso e, portanto, criminoso, sendo, importante reprimi-los em nome da segurança pública. Identificam os conflitos agrários como decorrentes da violência individual dos ditos invasores, saqueadores e suas lideranças, buscando-se assim declarar guerra contra o violento comportamento dos “invasores” levando à justificação do combate repressivo em defesa da sociedade e da propriedade. Reproduz-se o discurso ideológico dominante que polariza entre o bem (latifundiários vitimados) e o mal (cruéis “invasores”).


Aplica-se nesta guerra, analogicamente, a ideologia da segurança nacional mudando-se o alvo e declarando este grupo como o novo inimigo, que agora é interno. A questão agrária, ao mesmo tempo em que é despolitizada, torna-se caso de polícia. Para que se justifique a guerra, necessário se faz alimentar a sensação de insegurança, cabendo aqui aos meios de comunicação este papel de mantenedor do medo, constituindo-se a mais poderosa agência de controle social informal (Andrade, 2003). Há vários exemplos desta construção seletiva sensacionalista trabalhada por meio da Mídia, como por exemplo os que se seguem:


“Prisão preventiva para o líder dos Sem Terra: João Pedro Stédile é acusado de incitação ao crime por estimular os saques e pode pegar pena de três a seis meses de cadeia”. (Correio Braziliense, 13/05/98, in Andrade).


“Cidades, o novo alvo do MST: Líder dos Sem Terra avisa: vai tornar permanente a mobilização pelos saques para desenvolver o Nordeste”. (Jornal da Tarde, 23/05/98, in Andrade).


Conforme Nilo Batista, o discurso criminológico midiático pretende constituir-se em instrumento de análise dos conflitos sociais e das instituições públicas, possuindo um discurso de lei e ordem com sabor “politicamente correto” (2002: 281).


Na era atual de globalização, que gera uma padronização de comportamento, formas de vida e de produção engendram também uma necessidade de construção de identidades, onde os atores sociais lutam pela individualização e afirmação. Dentro deste quadro, Garcia (2000:94) nos mostra que a Mídia não se encontra fora deste processo, muito pelo contrário,


“estes processos complexos não passam desapercebidos pela Mídia e suas políticas de segmentação de programação. E esta programação, por sua vez, é cada vez mais uma programação de natureza publicitária, como já salientou Habermas, porque, antes de sua divulgação, as informações são submetidas a estratégias de elaboração da informação, com o que a apresentação de notícias e comentários passa a ser definida pelos especialistas em propaganda, em um fenômeno que o autor considera o núcleo da teoria da indústria cultural”.


A própria existência do MST em nada prejudica a democracia, sendo, na verdade, indispensáveis ao seu fortalecimento e ao atendimento, por parte das autoridades públicas, de uma agenda social eternamente postergada, não podendo se identificadas com a de bandidos, assaltantes ou inimigos da democracia (Garcia, 2000:101)


Como a notícia produzida pelas mais variadas formas de mídia é uma forma de controle social porque reduz complexidades, evita réplicas, dá prestígio, cria atitudes, além de permitir que se criem campanhas, que, com relação ao MST, cuida de desqualificar o movimento para criminalizá-lo, ela vem reforçar normas sociais estabelecidas ao diminuir o tempo de reação dando a ilusão ao leitor de participação. O processo de construção de notícias homogeneíza o conteúdo, padroniza o público, cria estereótipo e forma mitos.

O discurso dominante intenciona estereotipar o movimento para desqualificação, em virtude de sua natureza contestatória, ao invés de se preocupar em apresentar criticamente suas propostas e contradições. A esfera pública encontra-se, em muitos aspectos, submetida às estratégias de dominação dos meios de comunicação de massa, dificultando as chances de que a sociedade possa exercer um papel decisivo de influenciar o sistema político, assegurando sua legitimidade democrática, afirmando, ainda, ser este o papel primordial a ser desempenhado pelo MST, qual seja fazer vibrar as relações de força entre a sociedade civil e o sistema político.


Os discursos dominantes, seja por meio da mídia, ou mesmo, utilizando-se do Poder Judiciário para cumprir seu intento, sempre buscam qualificar o Movimento tomando suas condutas como baderna, vandalismo e chegando a rotular seus membros como criminosos. Entretanto, devemos frisar que as ocupações realizadas em terras ou mesmo em prédios públicos ou privados abertos ao público são atos políticos que visam pressionar o Poder Público para a realização da reforma agrária e na busca por financiamento agrícola. Cohen e Arato, segundo Garcia (2000), destacam a desobediência civil como uma forma legítima de reação dos membros da sociedade em face das injustiças advindas do próprio funcionamento do regime democrático[3].


Sendo o MST um movimento contra-hegemônico, no sentido de desvendar o véu da ocultação referida, é, deste modo, tão combatido e seus membros rotulados de criminosos. Utiliza-se de discursos desqualificadores para, melhor subtrair o apoio da população e, neste campo, a mídia tem peso decisivo, constituindo-se uma poderosa agência de controle social informal formadora de opinião e de sensos comuns dominantes.


Encerro aqui com uma fala de Gilmar Mauro[4], membro da coordenação nacional do MST, ao afirmar que não é a ocupação da terra que incomoda, mas sim, na verdade,


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“(…) eles batem no Movimento Sem Terra porque é um grupo de gente, de povo, de pobre organizado e pobre organizado é um perigo para a elite brasileira. Eles têm nojo, ojeriza, de pobre organizado e vão combater sempre. O dia que o editorial do Estadão falar bem de nós, nós vamos ter que reavaliar o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, pois certamente estaremos no caminho errado. Não dá para esperar aplauso de quem é dono dos meios de comunicação, ao mesmo tempo é dono do poder econômico do país.”


Referências Bibliográficas

ANDRADE, Vera Regina Pereira. A construção social dos conflitos agrários como criminalidade. In. Introdução Crítica ao Estudo do Sistema Penal. Florianópolis: Editora Diploma Legal, 2003.

BARATTA, Alessandro. Filósofo de uma criminologia crítica. In: Mídia e Violência Urbana. Rio de Janeiro:Faperj, 1994.

______. Criminologia Crítica E A Crítica Da Criminologia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999.

BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos sediciosos – crime, direito e sociedade. Ano 7, n.º 12, Rio de Janeiro, 2002, p. 271 e seguintes.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização – As conseqüências humanas. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1999.

FERNANDES, Bernardo Mançano. Brasil: 500 anos de luta pela terra. In Revista de Cultura Vozes. Petrópolis:Editora Vozes, 2000.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

______. Microfísica do poder. 7ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

______. Vigiar e Punir. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 1988.

______. A verdade e as formas jurídicas. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003.

GARCIA, José Carlos. De Sem-rosto a Cidadão. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2000.

GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora civilização brasileira, 1988.

HABERMAS, Jurgen. O discurso filosófico da modernidade.  Lisboa: Dom Quixote, 1990.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA. A Reforma Agrária E A Sociedade Brasileira. São Paulo:MST, 1996.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez Editora. 1995.

Notas:

[1] Baratta pesquisou este tema em Saarbrucken, Alemanha e concluiu que quanto mais baixa é a escala social, mais alto é o risco de ser vítima.

[2] O mundo da vida é o lugar no qual a ação comunicativa se realiza, consistindo, no dizer de Habermas, no “lugar transcendental no qual falante e ouvinte se encontram, onde podem reciprocamente sustentar que seus enunciados adaptam-se ao mundo e onde podem criticar e confirmar aqueles apelos de validade, estabelecer suas discordâncias e chegar a acordos”. (apud Garcia. 2000:16).

[3] Afirmam ainda ser também (a desobediência civil) a chave para a manutenção das utopias nas sociedades contemporâneas.

[4] Em seminário realizado no dia 26 de junho de 2002, promovido pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, em comemoração pelo Dia Internacional Das Nações Unidas De Luta Contra A Tortura.


Informações Sobre o Autor

Cristiane de Souza Reis

advogada, Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/Brasil) e Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania” pela Universidade de Coimbra (FEUC/FDUC- Portugal) . Foi professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e foi assessora da presidência da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro. É, ainda, Membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (IJI/FDUP)


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