Os portes de arma de fogo e munição estão criminalizados pelos arts. 14 e 16 do Estatuto do desarmamento, Lei nº. 10.826/03.
Porte ilegal de arma de fogo constitui delito comum, de mera conduta, de ação múltipla e de perigo abstrato, tendo como sujeito ativo: qualquer pessoa e, sujeito passivo: a coletividade.
O elemento subjetivo do tipo, portar, é traduzido pelo o ato de trazer consigo a arma de fogo, acessório ou munição.
Assim, pela exegese legal ou simples interpretação gramatical, tanto o fato de portar arma desmuniciada, quanto o porte de munição, isoladamente, constituem crime, com supedâneo na Lei de crimes de Arma de Fogo.
O fundamento encontra abrigo, no sentido que o delito de porte ilegal de arma de fogo, sem a devida autorização, é considerado de mera conduta ou de perigo abstrato, o que, per si, rompe a confiança existente na sociedade com a insurgência do risco proibido, dotado de lesividade latente.
Perfilhando aos ensinamentos de Claus Roxin[1], a conduta para ser penalmente típica considerada em face do Direito Penal, deve oferecer um risco ao bem jurídico. Se não há risco, não existe imputação objetiva. Trata-se de ausência de imputação objetiva da conduta, conduzindo à atipicidade do fato.
Não basta verificar se o comportamento tem idoneidade para ameaçar o direito protegido pela normal penal. Condutas inofensivas não podem ser punidas, porque a função do direito penal é proteger valores sociais, que estejam expostos a risco.
Desta feita, irrefragável é o acertamento da posição adotada pelo STF, com base no garantismo jurídico e princípios norteadores do direito penal.
Nesse norte, insigne doutrinadores estrangeiros como Zaffaroni e Pierangeli[2] afirmam: “para que uma conduta seja penalmente típica é necessário que tenha afetado o bem jurídico”, configurando “a afetação jurídica um requisito da tipicidade penal”.
Em consonância com o princípio da ofensividade, também conhecido como princípio do fato ou da exclusiva proteção de bem jurídico, não há ofensa ao bem jurídico tutelado, qual seja, a segurança coletiva, quando da infração penal não houver efetiva lesão ou real perigo de lesão ao bem jurídico, o que, por força do referido princípio, verifica-se uma colisão direta com os delitos de perigo abstrato.
Partindo da premissa que não há delito quando a conduta não oferece perigo concreto e real, ou seja, um ataque efetivo ao bem jurídico tutelado, limitar-se-á vertiginosamente a pretensão punitiva e intervencionista estatal, eis que serão consideradas atípicas todas as condutas sem conteúdo ofensivo. Em que pese plausível tal princípio, o mesmo ainda está em discussão no nosso país, porém vem ganhando relevo nos tribunais.
Mister pontuar, que se o artefato encontrar-se desmuniciado e sem qualquer chance de uso imediato, logo, inapto, por si só, não gera perigo efetivo, pois não pode ser usado sozinho, da mesma situação que munição desarmada não detona. Exsurge, pois, que a única possibilidade de evento danoso seria a utilização como instrumento contundente, que, não é a interpretação teleológica da Lei armamentista.
Sobre o assunto vertente, pertinente transcrever o artigo do Professor Luiz Flávio Gomes[3]:
“O crime de posse ou porte de arma ilegal, em síntese, só se configura quando a conduta do agente cria um risco proibido relevante (que constitui exigência da teoria da imputação objetiva). Esse risco só acontece quando presentes duas categorias: danosidade real do objeto + disponibilidade, reveladora de uma conduta dotada de periculosidade. Somente quando as duas órbitas da conduta penalmente relevante (uma, material, a da arma carregada, e outra jurídica, a da disponibilidade desse objeto) se encontram é que surge a ofensividade típica. Nos chamados “crimes de posse” é fundamental constatar a idoneidade do objeto possuído. Arma de brinquedo, arma desmuniciada e o capim seco (que não é maconha nem está dotado do THC) expressam exemplos de inidoneidade do objeto para o fim de sua punição autônoma.”
No mesmo diapasão, espraia a jurisprudência do TJRS, denotando coesão com o STF:
“(…) a detenção de arma desmuniciada, sem qualquer munição à parte, não se enquadra no art. 10, caput, do CP, em face da ausência de potencialidade lesiva (princípio da lesividade ou ofensividade)…” (Apelação Crime 70006204440, Oitava Câmara Criminal, Rel. Roque Miguel Fank).
“Porte ilegal de arma de fogo. Ofensividade não comprovada, em face da circunstância de estar desmuniciada a arma que foi apreendida em poder do réu, o que ficou consignado no auto de apreensão…” (Apelação Crime 70012566626, Sexta Câmara Criminal, Rel. Paulo Moacir Aguiar Vieira).
Face aos argumentos acima exposados, conclui-se que a conduta em debate redunda em atipicidade, visto que o Direito Penal deve ser a última ratio, reservando-se tão-somente as hipóteses que efetivamente reclamam uma atuação repressiva do Estado.
De outro giro, pela leitura do estatuto armamentista, o porte de munição é delito de perigo abstrato, no qual a situação de perigo é presumida, caso em que haverá punição do agente mesmo que não tenha chegado a cometer nenhum crime, entretanto, referida situação, se totalmente isolada, é anódina, senão vejamos:
A atipicidade do porte de munição está sub judice no STF, a saber: HC 90075, cuja apreciação está suspensa.
O relator do processo, ministro Eros Grau, adverte que apesar de o julgamento ainda não ter sido concluído, tudo indica que “a decisão a ser tomada, apontará a atipicidade da conduta com cinco votos declarados nesse sentido”.
Sobre o assunto em comento, assevera novamente Luiz Flávio Gomes[4]:
“(…) a munição desarmada ‘leia-se: munição isolada, sem chance de uso por uma arma de fogo´ assim como a posse de acessórios de uma arma. Não contam com nenhuma danosidade real. São objetos (em si mesmos considerados) absolutamente inidôneos para configurar qualquer delito. Todas essas condutas acham-se formalmente previstas na lei (estatuto do desarmamento), mas materialmente não configuram nenhum delito. Qualquer interpretação em sentido contrário constitui, segundo nosso juízo, grave ofensa à liberdade e ao Direito penal constitucionalmente enfocado”
Ferrajoli[5], por sua vez, não discrepa:
“(…) Por exemplo, um cartucho de munição para nada serve se não houver arma que ele fará uso. Dessa forma, um militar ou ex-militares que tiverem em sua residência, como suvenir, cartuchos de armas militares, configurará o crime do artigo 16, sujeito a 3 anos de reclusão, no mínimo, sem direito à liberdade provisória”.
“Assim, como a arma de fogo precisa estar municiada para trazer perigo à coletividade, a munição, sem a arma, também não produz qualquer efeito, uma vez que quem manter em seu poder um número grande de armamento, desde que desmuniciados estaria concorrendo para prática do artigo 180 ou 334 do CP”.
Nesse sentido, o TJRS já se manifestou:
“PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. APELAÇÃO.
Portar ou guardar meia dúzia de cartuchos de arma de fogo, não destinados ao comércio ou tráfico ilegal e desprovidos de instrumento detonador, não caracteriza a conduta incriminada no art. 14 da Lei n.º 10.826/2033. APELO DEFENSIVO AO QUAL SE DÁ PROVIMENTO. (Apelação Crime Nº 70018918854, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vladimir Giacomuzzi, Julgado em 17/05/2007)”
Destarte, conclui-se que, tanto a munição isolada, quando desacompanhada de aparato necessário para ser utilizada, quanto o porte de arma desmuniciada, ambas as condutas não possuem o condão de gerar perigo público iminente, eis que ausente ofensividade ao bem jurídico tutelado, logo, devem ser consideradas atípicas.
Por derradeiro, convém frisar que não seria congruente admitir-se, no mesmo ordenamento jurídico, o delito do porte de munição e a atipicidade da conduta de portar arma desmuniciada, assim, com o fito de aquilatar o direito penal vigente, com vistas ao Estado Constitucional de Direito, as situações em epígrafe não devem despontar quaisquer consectários de ordem criminal, por ausência de potencialidade lesiva à coletividade, cingindo-se, apenas, ao âmbito administrativo.
Informações Sobre o Autor
Vanessa Teruya
Servidora Pública Estadual e especialista Pós graduação lato sensu em Direito Público Processo Civil e Ciências Criminais