Premissas para a aplicação da responsabilidade civil por perda de uma chance

Resumo: Considerando a substancial importância da teoria da perda de uma chance no mundo jurídico, com amplo destaque no Brasil nos últimos anos, o artigo procura fazer um detalhamento das suas premissas conceituais, de modo a nortear a sua aplicação prática. Inicialmente, são analisadas as características primárias da teorias, alertando-se para os equívocos conceituais mais comuns na seara. A seguir, aborda-se o caso que veio a ser o leading case sobre o tema, sob todas as suas mais variadas perspectivas, como forma de compreender por que se tornou referência na matéria e como a Corte Superior vem se posicionando a partir de então.

Palavras-Chave: Perda da chance. Premissas conceituais.

Sumário: 1. Introdução 2. Em que consiste a teoria? 3. A reparação por chances frente aos elementos de responsabilidade civil 4. A "contribuição" de Sílvio Santos. Por que o "caso do Show do Milhão" é o leading case na matéria? 5. Conclusão. Referências.

1. Introdução

Qual o traço comum entre um antigo apostador em jogos de azar, um paciente em tratamento de doença grave, um bacharel inscrito em um concurso público e um acionista da bolsa de valores?

À primeira vista, muitos dirão que nada. No entanto, uma comparação mais criteriosa mostra que todos os quatro são movidos pelo mesmo ingrediente: a crença no êxito em cada uma de suas atividades.

Aprofundando o raciocínio, como é possível distinguir uma situação absolutamente hipotética, um mero devaneio, de uma verdadeira oportunidade que se coloca em determinada fotografia temporal? E qual a repercussão dessa diferença para o campo jurídico?

Segundo relatos históricos[1], antes de marchar de forma triunfante em direção à Roma, o famoso líder romano Júlio César, ao se aproximar do rio Rubicão, que separava a província de Gália Cisalpina do território de Roma, teria proferido uma de suas mais célebres frases: "alea jacta est" (traduzida, geralmente, como a sorte está lançada).

De fato, ali se encaminhava uma jornada exitosa, que lhe renderia, conforme historiadores, clamorosa recepção popular e um lugar cativo no comando do império romano.  No que toca à declarada hesitação momentânea às margens do rio, pode ser atribuída ao risco envolvido na operação, embora a chance de êxito fosse real. Portanto, havia ali, mesmo sem tradução numérica correspondente, uma certeza: o sucesso era possível. O desfecho da história é conhecido, mas poderia ter sido alterado por um ato inesperado, quem sabe um inimigo infiltrado, capaz de modificar extraordinariamente o curso natural dos fatos.

Na rotina, são inúmeras as situações que transformam o encadeamento diário de eventos. Para abordar algumas, lembre-se a ocorrência de um acidente de trânsito, o cancelamento de um voo e um elevador quebrado (por azar, com o leitor dentro). Sob o enfoque do prejudicado, quais desses acontecimentos poderiam ser identificados como responsáveis por impedir o alcance de uma vantagem legitimamente esperada pelo indivíduo ou por impossibilitar que determinado dano fosse por ele evitado?

No Brasil, até poucos anos, grande parte dos juristas via com resistência a pretensão indenizatória referente a essa oportunidade frustrada, mesmo diante de uma razoável probabilidade de que o evento esperado se concretizasse, não fosse a conduta de um terceiro. 

Segundo se defendia, o dano deveria ser certo, e não um juízo estatístico, na órbita imaginária das circunstâncias.

Embora este ponto de vista já tivesse sido superado há muito na Europa (como, por exemplo, na França e Itália), somente nos últimos anos a responsabilidade civil pela perda de uma chance vem ganhando espaço nas dissertações doutrinárias e nos gabinetes dos Tribunais, que não podem mais fechar os olhos para a forte influência da teoria na esfera da responsabilidade civil.

No entanto, ao que parece, por conflitar com alguns conhecidos paradigmas do direito civil e, em especial, na matéria de responsabilidade civil (que, aliás, vem sendo, pouco a pouco, questionada e, de certa forma, até desmistificada[2]), o recente entusiasmo com o tema em sede nacional também cedeu a equívocos interpretativos, muitos deles criados por simples medo de que uma consolidada teoria jurídica pudesse encampar as mais aventureiras pretensões, servindo de refúgio para a insegurança jurídica e gerando consequências catastróficas.

Dessa forma, este trabalho é um singelo convite à reflexão sobre o tema, a partir dos debates que se vem travando nessa seara, com vistas a um esclarecimento sobre a correta aplicação da teoria perante os elementos de responsabilidade civil, sempre em atenção às previsões do ordenamento jurídico, notadamente as de ordem civil e, naturalmente, também as constitucionais.

2. Em que consiste a teoria?

A origem da teoria remonta ao fim do século XIX na França, onde foi cunhada como perte d'une chance, expressão traduzida de forma literal para o direito brasileiro, apesar de grande parte da doutrina reconhecer como termo mais técnico a palavra oportunidade, e não chance.[3]

No Brasil, o instituto ganhou impulso a partir de uma crescente tendência à responsabilização objetiva, fundada na cláusula geral presente no art. 927 do Código Civil, com foco voltado ao ofendido e à necessidade de indenizá-lo – de forma integral (art. 402 e 944 do CC/02) – pela lesão sofrida (art. 186 e 187 do CC/02).

De outro giro, foram sepultados os antigos entraves constantes nos artigos 1.537 e 1.538 do Código Civil de 1916, mencionados por Clóvis do Couto e Silva[4], diante da atual e expressa referência a "outros prejuízos" e "outras reparações" nos artigos 948 e 949 do CC/02. 

Essa espécie de reparação também se insere dentro dos valores mais caros ao ordenamento jurídico, de índole constitucional, já que se traduz em inegável instrumento para a promoção da dignidade da pessoa humana e solidariedade social.

Não se trata, contudo, de emprestar censurável estímulo ao demandismo, fornecendo ao litigante temerário, na falta de provas consistentes, um novo sopro de fôlego às suas alegações, como se fosse a última carta na manga para alcançar o bem da vida pretendido.

Ao revés, a teoria é composta de sólida base jurídica, motivo pelo qual, uma vez não demonstradas suas premissas fundantes, adiante aprofundadas, resta inviabilizada a procedência do pleito.

Quanto ao conceito teórico, é, a toda evidência, bastante simples: trata-se da reparação pela oportunidade perdida pela vítima.

No entanto, em que pese o instituto aparentar ser de simples compreensão, até mesmo para aqueles não acostumados à ciência jurídica, são inegáveis as complexas controvérsias originadas, que permanecem acaloradas até aos mais estudiosos sobre o tema.

Em primeiro lugar – e é fundamental destacar desde logo, sob o risco de imediatas distorções –, a teoria não se presta a reparar danos fantasiosos, de forma a atrair aqueles que saem a busca de ganho fácil. Sem sombra de dúvidas, não se intenciona acolher simples expectativas, que pertencem tão somente ao campo do íntimo desejo, e cuja indenização é vedada pelo art. 403 do ordenamento civil.[5]

Ao contrário, abalizado posicionamento doutrinário traz como consectário da sua aplicação a existência de oportunidade séria e real. Alguns chegam, inclusive, a introduzir a avaliação de porcentagens, como termômetro para aferição se determinada situação deverá ser entendida como relevante, do ponto de vista jurídico.

É o caso, por exemplo, de Sérgio Savi: “conforme demonstrado ao longo deste livro, meras possibilidades não são passíveis de indenização. A chance perdida há de ser séria e real, sempre com no mínimo 50% de probabilidade de se verificar”.[6]

Por outro lado, Anderson Schreiber defende que, mesmo uma oportunidade remota, justificaria, em tese, indenização correspondente. Ao discorrer sobre um eventual apostador da Mega Sena que perdeu a chance ao prêmio por ato antijurídico alheio, explica que " não se trata, a rigor, de negar existência à perda da chance, mas simplesmente de rejeitar o exercício concreto da pretensão indenizatória, em atenção a outras regras e princípios do ordenamento jurídico (princípio da insignificância etc)".[7]  

Também parece ser este o entendimento de Fernando Noronha: “a probabilidade pode ser alta ou reduzida: poderá até ser tão desprezível que nem possa ser tida como correspondendo a um interesse digno de tutela jurídica, se se considerar a função social das obrigações”.[8]

Em síntese, pode-se dizer que a perseguição por limites numéricos tem mais por objetivo classificar matematicamente o que, abstratamente, seria um mero devaneio, do que a própria chance perdida, de modo a impedir que hipóteses de baixa probabilidade sejam indevidamente garantidas a terceiros.  

Essa preocupação não tem passado despercebida pela jurisprudência, perfeitamente resumida na seguinte advertência realizada pela atual Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi, ao julgar o recurso especial de nº 965.758/RS, de sua relatoria:

“No mundo das probabilidades, há um oceano de diferenças entre uma única aposta em concurso nacional de prognósticos, em que há milhões de possibilidades, e um simples jogo de dados, onde só há seis alternativas possíveis. Assim, a adoção da teoria da perda da chance exige que o Poder Judiciário bem saiba diferenciar o improvável do quase certo, bem como a probabilidade de perda da chance de lucro, para atribuir a tais fatos as consequências adequadas”.[9]

Outro aspecto que, não raro, tem gerado imensa dificuldade para os aplicadores da teoria é a compreensão acerca da sua natureza jurídica.

Seguramente, aqueles que procuram uma resposta definitiva, irão se decepcionar. Há, aqui, opiniões em inúmeros sentidos. 

José de Aguiar Dias tende a tratar como espécie de lucro cessante[10]. Todavia, o entendimento encontra obstáculos, sobretudo pela incerteza acerca da concretização da situação de vantagem pretendida, que demanda raciocínio probabilístico, e, por consequência, seria incompatível com um lucro que se dá por certo.

Para outros, como Antonio Jeová Santos, a responsabilidade pela perda da chance estaria no campo dos danos extrapatrimoniais, como um "agregador do dano moral".[11]

Apesar disso, parece ser mais correta a corrente de que a teoria não se resume, de modo rígido, a um ou outro gênero, e a aponta como capaz de gerar tanto danos patrimoniais[12], como extrapatrimoniais, a depender do caso concreto.

A conclusão talvez não resulte tão óbvia com o clássico exemplo do advogado que perde o prazo para recorrer, pondo fim às tentativas de reverter decisão desfavorável em ação indenizatória. No entanto, se a ação não fosse de caráter civil, mas sim penal, e a perda significasse uma definitiva condenação à reclusão em regime fechado, parece ser mais fácil visualizar que os prejuízos originados não teriam simples cunho patrimonial.

Para correto entendimento do instituto, também é necessário fazer breve menção às classificações usualmente aceitas.

Mais uma vez, muito são os juristas, nacionais e estrangeiros que procuraram sistematizar a teoria. Entre os grandes trabalhos desenvolvidos nessa seara, diversos têm como ponto de partida os casos concretos.

Entretanto, mostra-se mais apropriado um raciocínio fundado nas hipóteses em abstrato, como o que sugere Fernando Noronha, bastante prestigiado, por sua técnica e abrangência.[13]

Basicamente, sem atrelar a classificação a específicas situações de ordem prática, o autor divide em duas categorias: perda da oportunidade de obter uma determinada vantagem e a perda da oportunidade de evitar um prejuízo efetivamente ocorrido.

A primeira hipótese representaria a teoria clássica da perda de uma chance, conforme costumeira denominação na França, amplamente difundida no Brasil.

A outra categoria, também acolhida na doutrina e jurisprudência, segundo o autor, comportaria, ainda, uma subdivisão: a chance perdida de evitar um prejuízo em razão de fato de outrem e a chance perdida de evitar um prejuízo por falta de informação devida.

Esclarecidas as características básicas do instituto, passa-se ao estudo da sua ocorrência, mediante a presença dos elementos de responsabilidade civil.

3. A reparação por chances frente aos elementos de responsabilidade civil

Sem desmerecer elogiosas teses defendidas por alguns dos mais consagrados doutrinadores, a teoria da reparação por chances, diferente do que se possa pensar, não implica em revisão dos conhecidos elementos de responsabilidade civil: conduta antijurídica, nexo de causalidade e dano.

Ainda assim, faz-se necessário entender como cada um deles se relaciona a uma correta aplicação do instituto.

Como se viu, a chance consiste em um recorte fático do estado das coisas no momento em que a oportunidade foi inviabilizada. A conduta antijurídica é, dessa forma, o ato de terceiro que interrompe o natural encadeamento dos fatos, seja de forma a impedir a obtenção da vantagem buscada ou para frustrar a tentativa de se evitar a ocorrência de um determinado prejuízo.

Ilustrativamente, é o ato do serventuário que cria ilegítimos obstáculos à nomeação de candidato aprovado em concurso público ou, para tratar de situações mais comuns, consiste na ausência de interposição de recurso por advogado devidamente constituído pela parte e da prática adotada pelo médico que reduz a oportunidade de cura do paciente.

A seguir, sem adentrar aos ricos debates acerca de um dos assuntos mais polêmicos de responsabilidade civil, o nexo causal, por fugir ao objeto do presente estudo, é importante registrar que, no que diz respeito à responsabilidade pela chance perdida, este elemento pode ser analisado por meio da teoria da causalidade majoritariamente aceita, com base no art. 403 do CC/02, a do dano direto e imediato ou da interrupção do nexo causal.[14]

Com razão, estará estabelecido o nexo causal sempre que se verificar um liame jurídico entre a conduta responsável por interromper a sequência natural dos fatos e a chance perdida, restando configurado que o primeiro evento é causa necessária do segundo.

Nesse sentido, transcreve-se a pertinente passagem do Recurso Especial nº 1.335.622/DF, da relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas, que deu correto encerramento à matéria:

“Dessume-se, portanto, que é indiscutível que, no caso em apreço, o hospital pode não ter causado diretamente o resultado morte, mas tinha a obrigação legal e não o impediu, privando a paciente de uma chance de receber um tratamento digno que, talvez, pudesse lhe garantir uma sobrevida.

Em suma, a omissão está em relação de causalidade não com o evento morte, mas com a interrupção do tratamento, ao qual tinha a obrigação jurídica de realizar, ainda que nunca se venha a saber se geraria resultado positivo ou negativo para a vítima.”[15]

Nada obstante, pela sua importância, cumpre registrar a divisão de posicionamento que a matéria envolve, havendo aqueles que defendem uma causalidade parcial quando não se cuidar da teoria clássica, e sim da modalidade de perda da chance de evitar um prejuízo efetivamente ocorrido.  

Como defende, por exemplo, Rafael Peteffi da Silva, nessa circunstância, a questão em análise seria avaliar qual o nexo entre a conduta indevidamente adotada e o dano gerado[16], de modo a avaliar se o ato concorreu para o prejuízo (e em que medida) e se existia chance séria e real de evitar a sua ocorrência. 

Por fim, quanto ao dano, vê-se que este é o elemento que mais traz dificuldades e gera relevantes confusões no caso concreto.

Isso porque uma interpretação equivocada da teoria da reparação pela chance pode levar o jurista a imaginar que o dano seria a situação de vantagem pretendida e indevidamente obstada, quando, em realidade, é a própria oportunidade perdida.

Com efeito, a situação de vantagem não concretizada pertence ao mundo daquilo que é incerto, não havendo possibilidade, independente do esforço empreendido, de atestar se o curso natural acarretaria o desfecho inicialmente imaginado.

Diversamente, a oportunidade perdida, per si, pode ser considerada certa no exato momento da sua ocorrência. De fato, é impossível dizer se um paciente sobreviveria não fosse o ato médico praticado, mas, eventualmente, tendo em vista as circunstâncias fáticas da hipótese, poderá restar induvidosa uma séria oportunidade de cura perdida.

Conforme se antecipou, uma chance real já se situa na órbita jurídica da vítima no momento da lesão e, com isso, pode – e deve – ser regularmente aferida e reparada.

 Alerta-se, todavia, para a impossibilidade de reparar as chances que, embora perdidas, não causaram qualquer dano à vítima.

Assim, e. g., a ausência de impugnação que deveria ter sido realizada pelo advogado, mas que não impactou em resultado desfavorável, em virtude do reconhecimento, ex officio, de matéria de ordem pública pelo juiz, não poderá justificar qualquer espécie de indenização, sob pena de enriquecimento sem causa (art. 884 do CC/02). 

4. A "contribuição" do Sílvio Santos. Por que o "caso do Show do Milhão" é o leading case na matéria?

Provavelmente, todos aqueles que tiverem contato com a teoria, escutaram, ao menos de forma breve, sobre o famoso "caso do Show do Milhão".[17]

Como se sabe, o bem-sucedido programa televisivo de perguntas e respostas, importado do modelo norte-americano, fez impressionante sucesso no Brasil ao fim da década de noventa e no início dos anos 2000.

Apenas para relembrar, o processo foi movido por uma participante que, ao finalmente chegar à "pergunta do milhão", deparou-se com um questionamento mal formulado[18], sem alternativa correta, optando por não responder e retirar-se do programa com os R$ 500.000,00 já conquistados. Possivelmente, de pessoas mais humildes às mais abastadas, de médicos a juízes, muitos teriam sua opinião formada. Será que, em razão do ocorrido, era justo que a candidata recebesse os quinhentos mil restantes?  

A crescente dificuldade das perguntas, conforme o candidato avançava rumo ao prêmio milionário, aliada ao carisma do apresentador do programa, que chamava a atenção de crianças e adultos, arrebatando a audiência de todas as faixas etárias, figura como um primeiro motivo pelo qual uma simples demanda, dentre inúmeras espalhadas pelo país, se tornou referência: a situação fática de fundo, com inegável apelo popular, desperta curiosidade até mesmo de leigos em direito.

O segundo motivo pelo qual o julgamento no Superior Tribunal de Justiça se tornou um paradigma foi o inequívoco fato de se estar diante de chance séria e real.

Depois de a candidata haver ultrapassado, com êxito, nada menos que quinze etapas, e uma única pergunta separá-la do tão desejado prêmio milionário, seria absurdo alegar não se tratar de uma verdadeira oportunidade de alcançar os outros quinhentos mil reais em disputa. 

Um terceiro motivo que justifica a importância do julgado está relacionado à questão mais intrincada da responsabilidade civil por perda de uma chance: a quantificação.[19] Geralmente, mesmo utilizando fontes confiáveis de estudos científicos, é tarefa árdua estabelecer um juízo de probabilidade. No entanto, o mesmo não acontece neste caso, já que a delimitada quantidade de alternativas anuncia a probabilidade de acerto, igual a 25%.

Em síntese, a contenda trazida à análise da Corte Especial apresentava todas as facilidades para perfeita aplicação da teoria. Não seria exagerado dizer que, mesmo se fosse uma situação hipotética, configuraria excelente exemplo para explicar a teoria nas salas de aula, sobretudo em um primeiro contato do estudante com o tema.

Com este conveniente cenário para consolidar um posicionamento favorável à responsabilização civil pela perda da chance no direito brasileiro, o Superior Tribunal de Justiça, atendendo às suas funções institucionais, não se furtou à análise da situação e manifestou-se adequadamente sobre a sua aplicação.

Sob o correto entendimento de que a chance nunca poderia equivaler à própria vantagem pretendida, o Ministro Relator teceu alguns comentários que merecem ser aqui reproduzidos:

“Na espécie dos autos, não há, dentro de um juízo de probabilidade, como se afirmar categoricamente – ainda que a recorrida tenha, até o momento em que surpreendida com uma pergunta no dizer do acórdão sem resposta, obtido desempenho brilhante no decorrer do concurso – que, caso fosse o questionamento final do programa formulado dentro de parâmetros regulares, considerando o curso normal dos eventos, seria razoável esperar que ela lograsse responder corretamente à 'pergunta do milhão'. Isto porque há uma série de outros fatores em jogo, dentre os quais merecem destaque a dificuldade progressiva do programa (refletida no fato notório que houve diversos participantes os quais erraram a derradeira pergunta ou deixaram de respondê-la) e a enorme carga emocional que inevitavelmente pesa ante as circunstâncias da indagação final (há de se lembrar que, caso o participante optasse por respondê-la, receberia, na hipótese, de erro, apenas R$ 300,00 (trezentos reais).

Destarte, não há como concluir, mesmo na esfera da probabilidade, que o normal andamento dos fatos conduziria ao acerto da questão. Falta, assim, pressuposto essencial à condenação da recorrente no pagamento da integralidade do valor que ganharia a recorrida caso obtivesse êxito na pergunta final, qual seja, a certeza – ou a probabilidade objetiva – do acréscimo patrimonial apto a qualificar o lucro cessante.

Não obstante, é de se ter em conta que a recorrida, ao se deparar com questão mal formulada, que não comportava resposta efetivamente correta, justamente no momento em que poderia sagrar-se milionária, foi alvo de conduta ensejadora de evidente dano.”

Embora a conclusão do acórdão, referente à quantificação do valor devido, possa deixar alguma margem a dúvida, pois há quem defenda, diante das peculiaridades do caso concreto, que a probabilidade envolvida seja superior a 25%, por se referir a participante com "desempenho brilhante no decorrer do concurso", de modo que a proporção não deve ser registrada isoladamente, é indiscutível que a sistemática adotada observa as corretas balizas a respeito da teoria. Por sua importância, destaca-se o trecho correspondente:

“Quanto ao valor do ressarcimento, a exemplo do que sucede nas indenizações por dano moral, tenho que ao Tribunal é permitido analisar com desenvoltura e liberdade o tema, adequando-o aos parâmetros jurídicos utilizados, para não permitir o enriquecimento sem causa de uma parte ou o dano exagerado de outra.

A quantia sugerida pela recorrente (R$ 125.000,00 cento e vinte e cinco mil reais) – equivalente a um quarto do valor em comento, por ser uma 'probabilidade matemática' de acerto de uma questão de múltipla escolha com quatro itens reflete as reais possibilidades de êxito da recorrida”.

Dessa forma, apesar de este julgado não ter sido o primeiro a se deparar com a responsabilidade civil pela perda de uma chance valendo lembrar o Agravo Regimental nº 4.364/SP[20], o Recurso Especial nº 57.529/DF[21], o Recurso Especial nº 32.575/SP[22] e o Agravo de Instrumento nº 272.635/SP[23] , pela acertada condução da matéria, enfrentada de forma irrepreensível pelo Superior Tribunal, o "caso do Show do Milhão" é reconhecido como o leading case no assunto.

5. Conclusão

Como se viu, a teoria da perda de uma chance, embora de longa data na Europa, em especial na França, onde foi criada, com largo registro de casos na sua Corte de Cassação, parece, de certo modo, recém chegada ao Brasil, que ainda caminha para sua consolidação dentro do ordenamento jurídico.

Sem prejuízo, é notável a evolução nos últimos anos e o esforço empreendido por inúmeros juristas nacionais para bem delimitar os contornos da matéria, que vem ganhando amplo espaço nos tribunais pulverizados pelo país, com destaque para os cada vez mais usuais julgamentos sobre o tema no Superior Tribunal de Justiça, a demonstrar o posicionamento uniformizado em relação ao seu indiscutível acolhimento no direito civil.

A teoria, que vem a reboque da revolução industrial, a partir de uma responsabilidade civil mais objetiva e focalizada na vítima (e não no ofensor), finalmente não encontra mais qualquer óbice à sua aplicação no direito nacional, sobretudo considerando o disposto nos artigos 186, 187, 402, 927 e 944 do Código Civil de 2002, além, é claro, do teor do art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988, que alçou a dignidade da pessoa humana ao assento de fundamento da República.

A despeito desse positivo panorama, sua aplicação ainda vem sendo vacilante, fruto de uma má compreensão acerca de premissas básicas a respeito do assunto.

Novamente, fundamental relembrar que não se persegue a posição de vantagem almejada por determinado sujeito, relegada ao terreno das incógnitas, em razão da equivocada interrupção do curso natural dos fatos.

A posição de vantagem imaginada, não é demais frisar, mais se assemelha a um rotundo ponto de interrogação.

Bem longe disso, a chance equivale à oportunidade existente em momento precedente à conduta antijurídica e que, naturalmente, integrava a esfera de direitos do ofendido.

Também vale dizer que o desfecho não pretendido pode resultar em prejuízos de ordem patrimonial e/ou extrapatrimonial, o que precisará ser examinado de acordo com o contexto fático envolvido na espécie.

É sob esse aspecto que deve haver a consequente indenização, sempre que presentes os conhecidos elementos de responsabilidade civil (conduta antijurídica, nexo de causalidade e dano), em atenção ao princípio da reparação integral.

Ainda assim, imprescindível que a chance seja entendida como séria e real, dentro de um juízo probabilístico razoável e fundamentado, não havendo margem para meras conjecturas e subjetivismos, que não servem ao correto encerramento do assunto.

Tendo todas essas considerações em vista, se não são suficientes para eliminar as controvérsias acerca da matéria, o que, de fato, seria impossível, sobretudo no que diz respeito à quantificação, seu aspecto reconhecidamente mais tormentoso, ao menos se vislumbra uma diluição das dificuldades visualizadas na sua interpretação, rumo a uma maior clareza e absorção da teoria que, atualmente, é indissociável da mais moderna leitura de responsabilidade civil.

 

Referências
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Notas:
[1] PLUTARCO. Alexandre e César vidas comparadas. São Paulo: Escada, s.d.

[2] v. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007.

[3] A respeito: "O termo chance utilizado pelos franceses significa, em sentido jurídico, a probabilidade de obter lucro ou de evitar uma perda. No vernáculo, a melhor tradução para o termo chance seria, em nosso sentir, oportunidade. Contudo, por estar consagrada tanto na doutrina, como na jurisprudência, utilizaremos a expressão perda de uma chance, não obstante entendemos mais técnico e condizente com o nosso idioma a expressão perda de uma oportunidade." (SAVI, Sérgio. Responsabilidade Civil por Perda de uma Chance. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 3).

[4] “Talvez tenha sido o Direito francês o primeiro a admitir a indenização das chances culposamente perdidas, e a criação jurisprudencial foi possível em razão de o Código Civil Francês não conter uma enumeração dos bens protegidos, como sucede no Código Civil brasileiro (arts. 1.537-1.554) e em diversos outros Códigos Civis, esta enumeração limita o poder dos juízes.” COUTO E SILVA, Clóvis do. O conceito de dano no direito brasileiro e comparado. In: FRADERA, Vera Maria Jacob de (Org.). O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 222.

[5] Nesse sentindo, vale observar as lições de Judith Martins-Costa: "Embora a realização da chance nunca seja certa, a perda da chance pode ser certa. Por estes motivos não vemos óbice à aplicação criteriosa da Teoria. O que o art. 403 afasta é o dano meramente hipotético, mas se a vítima provar a adequação do nexo causal entre a ação culposa e ilícita do lesante e o dano sofrido (a perda da probabilidade séria e real), configurados estarão os pressupostos do dever de indenizar". MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. v. V, Tomo II: Do inadimplemento das obrigações, Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

[6] SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 101.

[7] SCHREIBER, Anderson. A perda da chance na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: O Superior Tribunal de Justiça e a reconstrução do direito privado. Coord. Ana Frazão, Gustavo Tepedino. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011,

[8] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 713.

[9] STJ, REsp 965.758/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/08/2008, DJe 03/09/2008

[10] É o que deixa claro a seguinte passagem: “o critério acertado está em condicionar o lucro cessante a uma probabilidade objetiva resultante do desenvolvimento normal dos acontecimentos conjugados às circunstâncias peculiares do caso concreto […] Assim, a probabilidade de: ganhar uma causa; vencer a corrida de cavalo; vencer um concurso; ganhar na Bolsa; obter o prêmio em uma exposição de pintura, probabilidade perdida, respectivamente, em conseqüência do fato do advogado; do transportador que não conduziu o animal a tempo ou do espectador que provocou o acidente de que resultou originariamente a sua má colocação; do mandatário que não promoveu a habilitação do candidato, a ele confiada; do banqueiro que não proporcionou em tempo o numerário ao cliente; do indivíduo que destruiu o quadro etc”. AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil, 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. 2, p. 721, nota 33.

[11] SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável, 2. ed. , São Paulo: Lejus, 1999, p. 110.

[12] Cumpre ressalvar que, seguindo o posicionamento de Sérgio Savi, quando os danos tiverem cunho patrimonial, deverão ser compreendidos dentro da categoria de danos emergentes, eis que a chance perdida, no momento do dano, já integrava a esfera jurídica do ofendido. SAVI, Sérgio. Responsabilidade …op. cit.

[13] NORONHA, Fernando. Direito… op cit, p. 720-721.

[14] Nas palavras de Gisela Sampaio Cruz: “A Teoria do Dano Direto e Imediato distingue, então, entre o conjunto de antecedentes causais, a causa das demais condições. Se várias condições concorrem para o evento danoso, nem todas vão ensejar o dever de indenizar, mas apenas aquela elevada à categoria de causa necessária do dano”. Na sequência, a autora informa que a corrente é a acolhida pelo ordenamento jurídico brasileiro: “A teoria do Dano Direto e Imediato mostra-se, como se vê, mais apta a enfrentar o problema da causalidade múltipla do que a maioria das teorias expostas anteriormente que quase sempre conduzem o julgador a soluções injustas. É a teoria adotada no Brasil segundo grande parte da doutrina, não obstante a jurisprudência ainda vacile […]”. CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 102 e 107.

[15] STJ, REsp 1335622/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/12/2012, DJe 27/02/2013.

[16] "[…] a correta sistematização atual da teoria da perda de uma chance encerra duas categorias. A primeira embasada em um conceito específico de dano. A segunda, por outro lado, estaria respaldada no conceito de causalidade parcial em relação ao dano final". SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil por perda de uma chance: uma análise do direito comparado e brasileiro. São Paulo: Atlas, 2007, p. 103.

[17] STJ, REsp 788.459/BA, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 08/11/2005, DJ 13/03/2006, p. 334.

[18] A pergunta tal qual formulada: A Constituição reconhece diretos aos índios de quanto do território brasileiro? Resposta: 1 – 22%; 2 – 02%; 3 – 04%; e 4 – 10% (resposta coreta). Sobre o ponto, colha-se o seguinte trecho da apelação: "a pergunta foi mal formulada, deixando a entender que a resposta correta estaria na Constituição Federal, quando em verdade fora retirada da Enciclopédia Barsa. E isso não se trata de uma 'pegadinha', mas de uma atitude de má-fé, quiçá, para como diz a própria acionada, manter a 'emoção do programa onde ninguém até hoje ganhou prêmio máximo' […]."

[19] Nas palavras de Anderson Schreiber, "tampouco tem se esquivado do problema que, na opinião de dez entre dez especialistas, consiste no ponto mais dramática da perda da chance: a quantificação do dano sofrido." SCHREIBER, Anderson. A perda…op. cit.

[20] STJ, AgRg no Ag 4.364/SP, Rel. Ministro ILMAR GALVAO, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/10/1990, DJ 29/10/1990, p. 12130.

[21] STJ, REsp 57.529/DF, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Rel. p/ Acórdão Ministro FONTES DE ALENCAR, QUARTA TURMA, julgado em 07/11/1995, DJ 23/06/1997, p. 29135.

[22] STJ, REsp 32.575/SP, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/09/1997, DJ 22/09/1997, p. 46396.

[23] STJ, Ag 272.635/SP, Rel. Min. EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/02/2000, DJ 11/02/2000.


Informações Sobre o Autor

Leonardo Fajngold

Pós-graduando em Direito Civil-Constitucional (UERJ). Bacharel em Direito (UFRJ). Sócio do Escritório Terra, Tavares, Ferrari Advogados


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