Princípio da Individualização da Pena x Princípio da Legalidade: Antígona ou Creonte?

Resumo: O presente artigo pretende abordar o conflito existente entre a aplicação do princípio da legalidade e do princípio da individualização da pena. A Legalidade e a individualização da pena não são incompatíveis; os dois estão conectados, um implica o outro, e é em decorrência da aplicação e da importância de tais princípios que o Direito Penal pode ser definido como a sociologia do crime adaptada ao senso de justiça. Na verdade eles se complementam e até mesmo se compõem numa conjunção ponderada e mediada pelo Princípio da Proporcionalidade. A Criminologia deve, portanto, considerar a natureza social do homem, bem como seu caráter individual; e não pode negligenciar um fator tão importante da psicologia humana como o senso de justiça. De início, o princípio da legalidade delimita precisamente as relações penais, e submete os legisladores e operadores do Direito a um controle, relacionando-se com o paradigma da segurança jurídica. Já o princípio da individualização da pena pressupõe  certa margem na previsão, aplicação e execução da pena encontrando-se mais próximo de um paradigma de liberdade. É certo que o descuido na aplicação do princípio da individualização da pena leva à arbitrariedade e compromete as garantias individuais. Há três tipos distintos de individualização: a primeira individualização, a legal, é determinada pela lei de antemão como as variadas sanções; a segunda, judicial, é determinada pelo juiz, e a terceira, executiva ou administrativa, é determinada no curso de punição. É, portanto, o objetivo deste trabalho buscar a resposta quanto à possibilidade de um justo equilíbrio entre os Princípios da Individualização da Pena e da Legalidade, superando uma aparente antinomia entre estes.  Para tanto será feita uma abordagem interdisciplinar, envolvendo os aspectos constitucionais e penais da matéria, bem como fazendo uma breve incursão inicial pelas primeiras representações conflituais entre a rigidez legal abstrata e sua adequação concreta envolvendo critérios de equilíbrio, proporcionalidade e justiça.


Palavras-chave: Princípio da legalidade – Princípio da individualização da pena – Proporcionalidade – Direito Penal – Direito Constitucional.


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

Abstract: This paper intends to approach the conflict between the application of the principle of legality and the principle of individualization of punishment.  Legality and individualization of punishment aren’t incompatible, the two are connected, one implying the other, that’s why criminal law is admirably defined as the sociology of crime adapted to the sense of justice.  In fact they complement each other and even form a combination mediated by the Principle of Proportionality.  Criminology must consider the social nature of human as well as his individual character; and it cannot neglect so important a factor of human psychology as the sense of justice. First, the principle of legality delimits precisely the criminal relations, and submits to legislators and law professionals to a control, it is connected to the paradigm of legal certainty. Moreover, the principle of individualization of punishment presupposes some margin in forethought, implementation and execution of the sentence, related to a paradigm of freedom. The carelessness in applying the principle of individualization of punishment leads to arbitrariness and damages individual guarantees. There are three distinct types of individualization: the first, or legal Individualization, is determined by the law in advance as a penalty; the second, or judicial individualization, which for many authors is the best, is determined by the judge; and the third, or administrative individualization, is determined in the course of punishment. Therefore, the purpose of this study is to search for the answer about the possibility of a fair balance between the principle of individualization of punishment and Legality, overcoming an apparent contradiction between them. For that, it will be made an interdisciplinary approach, involving aspects of constitutional and criminal matters as well as a brief incursion by the first initial conflicts between legal abstract rigidity and its concrete adequacy involving balance, proportionality and fairness criteria.


Keywords: Principle of legality – Principle of individualization of punishment – Proportionality.


Sumário: Introdução. 1. “Mithos” e “logos”: duas formas de explicar o mundo. 2. Legalidade X Individualização da pena: uma antinomia aparente. Conclusão. Referências.


Introdução


Não constitui nenhuma grande novidade o conflito que se trava entre liberdade e segurança. Na seara jurídica, com especial destaque para o campo penal, mas sem de modo algum excluir qualquer área, tal conflito se faz presente com grandes repercussões seja na elaboração da legislação, seja na sua aplicação aos casos concretos submetidos à jurisdição.


É no contexto acima mencionado que se encontra uma aparente antinomia entre os Princípios da Individualização da Pena e da Legalidade, pois que enquanto o primeiro pressupõe certo elastério na previsão, aplicação e execução da pena encontrando-se mais próximo de um paradigma de liberdade, o segundo tem em destaque uma delimitação precisa das reações penais que submete legisladores e operadores do Direito a um controle, de maneira a apresentar maior intimidade com o paradigma da segurança.


Não é necessário ressaltar a importância do problema geral do conflito entre liberdade e segurança que extrapola a seara penal e até mesmo estritamente jurídica para adentrar terrenos como os da sociologia, filosofia, ética, economia e política. No entanto, neste trabalho o enfoque será específico quanto à seara penal e em especial no que tange aos Princípios Constitucionais da Individualização da Pena e da Legalidade. O debate se justifica não somente no aspecto ora abordado especificamente, mas em todos os demais mencionados, tendo em conta a necessidade da busca de certa mediania virtuosa ensinada desde antanho por Aristóteles e retratada no brocardo “in meso virtus”[1]. Não há dúvida de que o equilíbrio, representado pela virtude aristotélica da mediania, é um elemento indispensável para que se possam elaborar boas leis justas e, principalmente, para que tais leis sejam bem aplicadas por homens virtuosos. Não é à toa que a figura mitológica de Thêmis, que chega a ser vista como a deusa da Justiça, não traz às mãos somente uma espada como demonstração da força, mas também uma balança a simbolizar o equilíbrio. É de se destacar que na Grécia Clássica a deusa não era representada com os olhos vendados como costumeiramente se observa contemporaneamente. Segundo consta a venda foi incluída no século XVI por artistas alemães, tendo em vista uma simbologia da imparcialidade. Não obstante, tais artistas olvidaram o fato de que a venda lhe retira a capacidade de enxergar e sopesar corretamente os casos submetidos ao seu poder decisório. [2] A Justiça jamais deve ser cega, mas sim consciente e equilibrada.


É, portanto, objetivo deste trabalho buscar a resposta quanto à possibilidade de um justo equilíbrio entre os Princípios da Individualização da Pena e da Legalidade, superando uma aparente antinomia entre estes.  Para tanto será feita uma abordagem interdisciplinar, envolvendo os aspectos constitucionais e penais da matéria, bem como fazendo uma breve incursão inicial pelas primeiras representações conflituais entre a rigidez legal abstrata e sua adequação concreta envolvendo critérios de equilíbrio, proporcionalidade e justiça.


Ao final serão retomadas as principais idéias desenvolvidas ao longo do texto e apresentadas as respectivas conclusões.


1. “Mithos” e “logos”: duas formas de explicar o mundo


A racionalidade humana no intento de explicar o mundo em seus aspectos naturais e culturais não se apresenta de forma unívoca e nisso mesmo é que reside sua riqueza e beleza. O cientificismo que hoje impera tem provocado um grande prejuízo em todas as áreas e inclusive para a própria ciência ao encastelar-se de forma isolada e reducionista como única via válida para a busca do conhecimento.


O mito não nos afasta da razão, mas bem ao contrário é produto dela e para sua devida compreensão exige um exercício racional que envolve conjugação de idéias, representações e símbolos, bem como uma riqueza estética e um acesso inigualável aos sentimentos humanos em sua transcendência espiritualizada (“psiqué”). Assim sendo “mithos” e “logos” podem e devem complementar-se, cada qual atuando em sua forma peculiar e sendo utilizados e valorados dentro de seus limites naturais.


Por esta razão inicia-se a abordagem do tema proposto por uma breve incursão pela Tragédia Grega de Sófocles, “Antígona”. A força do mito como via explicativa que atinge não somente a razão, mas também a alma humana constitui-se em uma das primeiras e mais belas manifestações da racionalidade. Nada mais adequado, portanto, do que iniciar nosso caminho por essa via originária para em seguida adentrar propriamente nos temas da ciência jurídica e da legislação. Deixe-se, porém, consignado desde logo que a apresentação do mito como ponto de partida não tem aqui nenhuma conotação hierárquica ou de pressuposta evolução ou progresso do pensamento humano nos moldes preconizados por Comte em sua “Lei dos três estados do pensamento” (teológico, metafísico e positivo), a qual pressupõe uma relação de subordinação e evolução dos dois primeiros ao último que com seu surgimento os invalida. [3] Muito ao reverso, como já se deixou claro, entende-se a via do “mithos” como um caminho peculiar do pensamento humano com seus caracteres próprios capazes não somente de completar o “logos”, mas de conceder-lhe um viés estético e espiritual não encontrável na secura e frieza de seus métodos.


A Antígona de Sófocles, que data de 441 a.C., retrata a tensão entre as posições tomadas por Creonte e Antígona (tio e sobrinha). O irmão de Antígona, Polinices ataca Tebas governada por seu tio Creonte. Em sangrento combate com Etéocles, fiel a Creonte, Polinices é morto, mas também faz tombar Etéocles. Em vista disso, seu tio determina que o fiel Etéocles seja sepultado na cidade com todas as honras de um herói, enquanto Polinices deve permanecer fora dos portões com seu corpo insepulto, o que impediria sua alma de obter o descanso eterno. A decisão de Creonte não é bem vista pela comunidade Grega que a considera uma afronta à lei divina e à piedade para com os mortos. Mas o mandatário mantém sua posição e decreta que qualquer um que desobedeça às suas ordens será condenado à morte.


Desobedecendo flagrantemente a determinação de Creonte, Antígona dá sepultura a seu irmão e é chamada à responsabilidade, não negando sua conduta, mas a justificando porque não estaria obrigada a acatar uma ordem humana que contraria a lei divina. Ela sabe que seu ato pode levá-la à morte, mas não hesita em nenhum momento, ciente de que a grandiosidade de sua conduta poderia conduzi-la a um fim trágico. Nesse momento da peça um coro entoa um hino que em uma das passagens afirma: “Na vida dos mortais não entra a grandeza sem trazer a desgraça”. [4]


Entretanto, nem Creonte nem Antígona sedem um milímetro sequer em suas afirmações de que detém cada qual a razão única naquelas circunstâncias, firmando-se um impasse ou conflito insuperável. Creonte demonstra um espírito superficial e uma alma vazia e fria. Antígona é movida pelo sentimento de fraternidade e honra. Ela não deixa de ser em alguma medida insensata, mas de uma insensatez que cativa as pessoas. [5]


O rei condena Antígona a ser emparedada numa gruta com alimentos suficientes para a sobrevivência por algum tempo. Ele não suja suas mãos em sangue diretamente, mas confere à vítima uma morte lenta e cruel.


Creonte representa a razão de Estado, a aplicação da lei formal como uma abstração sem maiores preocupações com suas consequências humanas, como se fosse possível sempre uma simples subsunção dos fatos à regra. Por seu turno, Antígona representa a luta pela Justiça sopesada e ponderada no caso concreto. Encarna a moderação, o bom senso e a consideração de valores supralegais que devem informar o Direito.


Valendo-se do pensamento de Hegel, O’Hear apresenta as posições de Creonte e Antígona como “forças iguais e contraditórias” assimiláveis no sistema de “tese e antítese” característico do filósofo em destaque, de modo que uma “síntese” somente será possível por uma harmonização ou conjugação das razões antitéticas em embate. A tragédia presente na peça Antígona reside exatamente “da circunstância de terem ambos razão, e do fato de as duas leis, e as duas ordens de lealdade, chocarem uma com a outra neste exemplo extremo”. [6]


Este é mesmo um aspecto trágico da vida humana, pois em nossa condição é inescapável conviver com sistemas de valores que entram frequentemente em colisão uns com os outros. Entretanto essa colisão natural deve resolver-se por uma síntese equilibrada. Uma sociedade civilizada deve permitir “uma leitura humanizada das respectivas leis e decisões”.[7]


A obstinação de Creonte em manter seu ponto de vista de forma arbitrária a qualquer custo o leva a danos irreparáveis. Ocorre que Antígona é noiva de seu filho Hémon, o qual se suicida juntamente com a amada após o cumprimento da reprimenda estabelecida pelo pai.   


Hémon anteriormente ainda tenta convencer Creonte a rever sua posição arbitrária, mas este não cede aos apelos do filho. Nessa ocasião Hémon afirma que o genitor governaria muito bem “sozinho numa terra que fosse deserta”.[8]


Toda essa dor poderia ter sido poupada pela virtude da ponderação, mas como bem lembra Ésquilo em outra tragédia (A Oresteia):


“Foi Zeus que guiou os homens para os caminhos da prudência, estabelecendo como lei válida a aprendizagem pelo sofrimento. Quando, em vez do sono, goteja diante do coração uma dor feita de remorso, mesmo a quem não quer chega a sabedoria”. [9]


Nesse ponto volta-se à questão aristotélica da mediania virtuosa que deve ser buscada a fim exatamente de evitar resultados trágicos para a humanidade. Por isso a necessidade de equilibrar, ponderar, harmonizar princípios que podem inicialmente parecer antagônicos e inconciliáveis. A Tragédia Grega nos mostra como o caminho da rigidez e da oposição de princípios pode conduzir ao abismo. Ela consegue apresentar de forma poética as consequências que devemos temer dos posicionamentos irredutíveis. Em nossas escolhas e práticas devemos levar em conta não somente aquilo que desejamos, mas também aquilo que não queremos, aquilo que, enfim, tememos. Para evitar nossos maiores temores devemos agir com ponderação, orientados, portanto, por uma chamada “heurística do temor” ou “heurística do medo”, mencionada por Hans Jonas. [10] Não se trata de um medo que acovarda e paralisa, mas de um “Princípio de Responsabilidade” que não permite atitudes extremadas e precipitadas.


Mister se faz lembrar da “Humanidade do Direito”, pois que este, na lição do jurista romano Hermogeniano, desenvolveu-se e consolidou-se “hominum causa”, ou seja, “nasceu com o homem e para o homem, incindivelmente coligado  às vicissitudes humanas no espaço e no tempo”. E a realidade humana é uma realidade plural, o Direito não existe para um homem isolado, de modo que as palavras supra mencionadas de Hémon demonstram sua plena indignação com a atitude do pai e a inutilidade e perigo de um governante que não leva em consideração a “socialidade” e a “dimensão intersubjetiva” do Direito. [11]


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

A Antígona de Sófocles representa o problema político-penal suscitado no presente artigo. Antígona personifica o choque das normas com a consciência individual, conflito esse que é inerente ao Direito. É preciso observar que a validade do Direito não pode ser condicionada aos alvitres da consciência individual, pois isso resultaria na destruição da ordem obrigatória que o Direito implica. [12]


A criminologia deve, considerar o caráter individual, mas também a essencialidade da natureza social do homem; e não pode negligenciar um fator tão importante da psicologia humana como o senso de justiça. “Assim o direito penal pode ser definido, com suficiente precisão e definição, como a sociologia do crime adaptada ao sentido da justiça”. [13]


 Eis a chave para o enfrentamento do dilema entre liberdade e segurança e, consequentemente, entre o Princípio da Individualização da Pena e o Princípio da Legalidade, ambos tão caros ao Estado Democrático de Direito, que não nos permitem admitir outra via senão aquela de sua harmonização sistemática, já que a suposta admissão de sua antinomia e prevalência de um deles somente em detrimento do outro pode conduzir a um caos de rigidez injusta e cadavérica do mundo do Direito, ou a um excessivo grau de discricionariedade que ora pode descambar para um laxismo, ora para um rigorismo extremados.


2. Legalidade X Individualização da pena: uma antinomia aparente


Tanto o Princípio da Legalidade como o da Individualização da pena possuem assento constitucional (vide artigo 5º, II e XXXIX – legalidade; e artigo 5º, XLVI e XLVIII – individualização da pena, todos da CF), sendo parte integrante dos direitos e garantias individuais, erigidos à condição de cláusulas pétreas na forma do artigo 60, § 4º, IV, CF.


Não resta dúvida, portanto, de seu idêntico “status” na ordem jurídica brasileira a indicar que o legislador constituinte, seguindo o caminho da ponderação, pretendeu inseri-los de forma harmônica e não antinômica no arcabouço legal.


O Princípio da Legalidade significa “que a elaboração das normas incriminadoras e das respectivas sanções constitui matéria reservada ou função exclusiva da lei”. [14]  E ele não surge na ciência jurídico – penal sem que tenha algumas finalidades básicas, conforme delineado por Greco, segundo o qual há  “quatro funções fundamentais” a serem consideradas:


a) “proibir a retroatividade da lei penal (‘nullum crimen nulla poena sine lege praevia’)”;


b) “proibir a criação de crimes e penas pelos costumes (‘nullum crimen  nulla poena sine lege scripta’)”;


c) “proibir o emprego de analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas (‘nullum crimen nulla poena sine lege stricta’);


d) “proibir incriminações vagas e indeterminadas (‘nullum crimen nulla poena sine lege certa’). [15]


Contudo, é preciso lembrar que o moderno Direito Penal não se contenta com uma mera legalidade formal, impondo-se respeito também e imprescindivelmente ao seu aspecto material. Senão vejamos: não basta ser respeitado o processo legislativo constitucional para elaboração de uma norma penal, é necessário atentar para o conteúdo da norma, “respeitando-se suas proibições e imposições para a garantia de nossos direitos fundamentais por ela previstos”. [16]


Essa necessidade de uma conformação material para a legalidade nada mais é do que a constatação de que a principiologia constitucional garantista não se faz isoladamente e sim por meio de uma bem urdida teia de princípios que se interligam, interpenetram e complementam continuamente. Outro não é o viés dado ao tema por Ferrajoli em sua monumental obra sobre a “Teoria do Garantismo Penal”. [17]


Igualmente o Princípio da Individualização da Pena surge como garantia do indivíduo e da sociedade, sendo sua racionalidade e eficácia prática antevistas já no século XVIII por Beccaria que pregava a proporcionalidade entre as faltas e as sanções respectivas. [18]


Aqui também se vislumbra a correlação necessária entre princípios do Direito. No caso é nítido que a individualização da pena deriva do chamado “Princípio da Proporcionalidade”, pois que determina que o grau de reação penal deva ser proporcional ao ilícito cometido e à conduta do delinquente. A individualização da pena nada mais é do que uma emanação da proporcionalidade no âmbito jurídico – penal, resultando naquilo que já nos idos de 1915 Prins chamava de “especialização da penalidade” ou “movimento de diferenciação da pena”. O autor, com propriedade peculiar, apresenta uma interessante metáfora:


“Assim como um médico não poderá distribuir um mesmo remédio a todos os seus doentes e para todas as doenças, assim também o legislador não pode impor o mesmo regime penal indistintamente a todos os delinquentes”. [19]


Prosseguindo na senda da necessária interligação dos princípios constitucionais e penais pode-se afirmar com tranquilidade que também a individualização da pena não pode e não deve ser encarada de forma estanque, o que já se constata de plano em sua própria origem no Princípio da Proporcionalidade.


Na realidade a relação entre legalidade e individualização da pena jamais será de exclusão, mas de integração, inclusive pela própria forma como o legislador constitucional descreveu a individualização. Prevista a legalidade, em seguida trata a Constituição da individualização da pena, estabelecendo com clareza solar que esta será regulada pela lei nos termos do artigo 5º, XLVI, CF (grifo nosso). Então legalidade e individualização, longe de serem institutos antagônicos inconciliáveis, constituem lados complementares de uma mesma moeda.


A própria divisão clássica do processo de individualização dogmaticamente construída dá mostras dessa interação com a legalidade, pois que uma das fases de individualização é a legal, passando somente depois pela judicial e por fim pela executória. [20] Note-se ainda que nem mesmo nas demais fases (judicial e executória) a individualização prescinde da legalidade, já que o juiz do processo criminal ou do processo de execução está sempre atrelado aos regramentos do Código Penal, Código de Processo Penal, eventuais legislações esparsas (v.g. Lei de Tortura, Lei dos Crimes Hediondos etc.) e Lei de Execução Penal. Assim sendo, a legalidade não se contrapõe à individualização, mas a compõe como uma de seus elementos ou fases essenciais.


De outra banda também a legalidade isolada da individualização penal torna-se por demais rígida e incapaz da elasticidade e adaptabilidade necessárias para a realização da Justiça nos casos concretos e sempre diferenciados a serem apreciados pela jurisdição. A dinâmica da individualização dá vida ao Direito Penal, não permitindo que este se torne injusto e desproporcional para mais ou para menos.


Grossi chama a atenção para a estagnação do Direito produzida pela escola da pura exegese que reduz juízes e demais operadores do Direito a meros coadjuvantes ou servos cegos do legislador. Na verdade o autor afirma que a exegese não revela um papel para a jurisdição, mas um “não – papel”. [21] Nessa situação o grande “inimigo cultural” a ser duramente combatido pelo jurista é “a redução de uma ‘constituição’ ou de uma ‘lei’ num texto de papel, reduzindo a juridicidade ao obséquio àquele texto”. [22]


Se por um lado deve-se respeitar a lei e evitar o arbítrio dos operadores do Direito de modo a garantir um mínimo de segurança jurídica aos cidadãos, por outro é preciso evitar aquilo que Grossi chama de “legicentrismo” ou até mesmo “legolatria”. [23]


Esse desejado estado de equilíbrio ideal entre legalidade e individualização deve seguir o caminho da ponderação informada pelo bom senso, lançando mão daquele que tem sido chamado de “Princípio dos Princípios”, “Superprincípio” ou “Metaprincípio”, qual seja, o já tantas vezes referido neste texto, “Princípio da Proporcionalidade”, que permite sopesar e valorar princípios em aparente antinomia. [24] Afinal, “o relacionamento entre os princípios consiste num imbricamento, a ser decidido mediante uma ponderação que atribui uma dimensão de peso a cada um deles”. [25]


Em suma a legalidade confere segurança jurídica, impedindo que a individualização descambe em laxismo penal ou em arbítrio ou abuso. Por seu turno, a individualização dá vida à legalidade fria e estagnada, tornando-a dinâmica e adaptável aos diversos desafios que se impõem ao intérprete e aplicador das normas.


No tocante à individualização da pena, é necessário fazer ainda outra consideração. Uma escolha deve ser feita: se for levado em conta que se estabeleceu que a punição deva ser ajustada individualmente, também se deve concordar que o crime e a criminalidade são  eminentemente assuntos do indivíduo, e este, apesar da gama de influências sofridas e de sua imersão  nas circunstâncias externas é por elas condicionado, mas não determinado. Por isso é mais verdadeiro que o indivíduo utiliza esses fatores do que  é moldado por eles. Se é mantida a persistência  em acreditar que não haveria individualidade e defender que as verdadeiras causas do crime são os fatores impessoais constantemente presentes na natureza, na história e na sociedade, então todo o  esforço deve ser concentrado sobre a reforma e melhoria desses fatores, e não sobre a reforma e melhoria  individual, que seria, na verdade,  o agente passivo dessa equação. Conseqüentemente, a tendência geral, para ajustar a pena ao indivíduo mostra claramente que o crime é mais e mais considerado como o resultado de causas individuais e que o indivíduo é responsável por sua ocorrência, e uma prova disso é o emprego e a importância do Princípio da Individualização da Pena. É exatamente porque o fenômeno criminal é composto de fatores exógenos e endógenos, com  primazia para os segundos, tendo em vista a característica da racionalidade e da liberdade humanas que o Princípio da Individualização se legitima inclusive como manifestação de um dos caracteres que emprestam humanidade ao Direito Penal. Somente a conduta humana pode efetivamente ser “individualizada”, o animal, por exemplo, segue um padrão praticamente imutável, mas o homem transcende o determinismo, podendo ser até condicionado, mas jamais determinado.


Pontes de Miranda lembra que somente o homem aponta para um fim em suas condutas; somente o homem é um ser dirigido para o futuro, o qual projeta seus atos de forma consciente e autônoma. Nos termos do autor:


“O que nós chamamos de ordinário, ´fim´ do ato do animal não é mais do que ‘objetivo’, objeto que se deseja, que se pretende colher ou afastar. O fim mesmo, esse, é abstrato. O animal não o tem. Porque não representa como o homem e porque não abstrai como o homem, não pode viver nem prever até qualquer futuro abstrato, invisível, inaudível, inolfatável, insaboriável,  como o futuro – amanhã, o futuro próximo – ano, o futuro daqui a cinco ou vinte anos, a trinta. (…). Concebido como feito de pontos – finitos, e não como linha, o presente dos animais (excluído o homem) não se liga ao futuro, se bem que tenha, atrás de si, o passado, tal como se manifesta quando o animal reconhece alguém ou alguma coisa. O presente humano confina com o passado e com o futuro, tecendo-se uma trama fina, compacta, com esse. (…). E esse enjaulamento no presente (natural para os animais), esse ‘ir até ali e só até ali’ na ligação dos fatos sucessivos e dos fatos de hoje a fatos futuros, é tão invencível, que a conduta adquirida pelo animal ensinado nunca se prolonga para além da presença do domesticador ou dos seus substitutos. [26] E prossegue:


O homem é o animal que prevê. Prevê no sentido de antecipar o que vai fazer e no sentido de ver, desde agora, o que vai acontecer. Prevê, e previne. Dizer só isso, sem mais esclarecimentos, estabeleceria linha indiscernível entre ele e os outros animais. Esses também caminham para objetivos, provocam atos seus ou de outros. O prever, o prevenir, o provocar ‘com fim’, que se atribui ao homem tem um plus: pode não estar vendo, nem ouvindo, nem apalpando, nem cheirando, nem sentindo o sabor daquilo que prevê, ou previne ou provoca. Isso nenhum outro animal consegue” [27] Esse poder de abstração e transcendência do natural para o cultural, da espécie para o indivíduo é que dá ao homem a sua singularidade e torna possível responsabilizá-lo individualizadamente pelos seus atos e omissões.


Conta-se com exemplos enriquecedores da discussão objeto do presente artigo,  nas abordagens doutrinárias e decisões jurisprudenciais que tratam, por exemplo, da possibilidade de aplicação da pena abaixo do mínimo legal em casos de circunstâncias judiciais plenamente favoráveis e existência de uma atenuante genérica que ficaria sem função no caso concreto em prejuízo do réu. Também o inverso é mencionável, ou seja, a impossibilidade de aplicação de penas exasperadas sem previsão legal ou acima do máximo legalmente previsto, por mais que se considere a reação penal legalmente prevista insuficiente para o caso concreto e se pretenda fazer uma individualização que ponha de lado o Princípio da Legalidade.


Outro caso interessante na fase executória diz respeito à inexistência de vaga ao detento no regime legalmente previsto de forma individualizada, o que permite sua transferência temporária para um regime mais benéfico (v.g. aberto domiciliar), ainda que não previsto em lei para aquela situação e nem considerado adequado perfeitamente ao caso individualizado daquele detento. Observe-se que em todas essas situações ocorre a ponderação entre os Princípios da Legalidade e da Individualização através do Princípio reitor da Proporcionalidade e ainda com o auxílio de um outro, o chamado “Favor Rei”.


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

Conclusão


Este trabalho teve por objeto o estudo do suposto conflito entre os Princípios Constitucionais da Legalidade e da Individualização da Pena. Por meio de uma abordagem interdisciplinar que procurou trilhar caminhos diversificados da racionalidade humana, passando pela narrativa mitológica e pela racionalidade técnico – jurídica, chegou-se à conclusão de que a antinomia entre os sobreditos princípios é somente aparente. Na verdade eles se complementam e até mesmo se compõem numa conjunção ponderada e mediada pelo Princípio da Proporcionalidade.


Retomando o mito retratado na Tragédia “Antígona” de Sófocles, pode-se afirmar que o modelo ideal de razão não se encontra nem em Creonte, nem em Antígona, mas no equilíbrio da balança de Thêmis e em seus olhos bem abertos e sem vendas, conforme sua representação grega clássica, [28] para que a força de sua espada seja aplicada com precisão e força adequada.


 


Referências bibliográficas:

ARISTÓTELES. A Ética. Trad. Cássio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Nova Cultural, 2005.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer “et al.” São Paulo: RT, 2002.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume I. 13ª ed. Niterói: Impetus, 2011.

GROSSI, Paolo. Primeira Lição sobre Direito. Trad. Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: SRS, 2005.

JONAS, Hans. El Principio de Responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernández Retenaga. Barcelona: Herder, 1995.

JÚNIOR, Bosco, TERCEIRO, José Gil. O Mito de Thêmis. Disponível em www.discipulosdethemis.hpg.com.br , acesso em 03.04.11.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume I. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

MIRANDA, Pontes de. Garra, Mão e Dedo. Campinas: Bookseller, 2002.

O’HEAR, Anthony. Os grandes livros. 2ª ed. Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa: Alêthea, 2010.

PRINS, A. Ciência Penal e Direito Positivo. Trad. Henrique de Carvalho. Lisboa: Livraria Clássica, 1915.

SALEILLES, Raymond. The individualization of punishment. Trad. Rachel Szold Jastrow. Boston: Little, Brown, and Company, 1911.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.


Notas:

[1] A Ética. Trad. Cássio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, p. 71. “Em conclusão, a virtude é certa medianidade, como a que ao meio dirige sua mira”.

[2] JÚNIOR, Bosco, TERCEIRO, José Gil. O Mito de Thêmis. Disponível em <www.discipulosdethemis.hpg.com.br> , acesso em 03.04.11.

[3] Conf. COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 22 – 23.

[4] O’HEAR, Anthony. Os grandes livros. 2ª ed. Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa: Alêthea, 2010, p. 95.

[5] Op. Cit., p. 92.

[6] Op. Cit., p. 97.

[7] Op. Cit., p. 98 – 99.

[8] Op. Cit., p. 95.

[9] Op. Cit., p. 75.

[10] El Principio de Responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernández Retenaga. Barcelona: Herder, 1995, p. 66.

[11] GROSSI, Paolo. Primeira Lição sobre Direito. Trad. Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 7 – 8.

[12] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 245-246.

[13] SALEILLES, Raymond. The individualization of punishment. Trad.  Rachel Szold Jastrow. Boston: Little, Brown, and Company, 1911. p. 51.

[14] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 21.

[15] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume I. 13ª ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 96.

[16] Op. Cit., p. 98.

[17] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer “et al.” São Paulo: RT, 2002, “passim”.

[18] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, p. 86.

[19] PRINS, A. Ciência Penal e Direito Positivo. Trad. Henrique de Carvalho. Lisboa: Livraria Clássica, 1915, p. 430.

[20] Ver neste sentido por todos: MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume I. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 298.

[21] GROSSI, Paolo. Op. Cit., p. 52.

[22] Op. Cit., p. 70.

[23] Op. Cit., p. 83.

[24] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: SRS, 2005, p. 83.

[25] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 51.

[26] Garra, Mão e Dedo. Campinas: Bookseller, 2002, p. 45 – 46.

[27] Op. Cit., p. 97.

[28] Lembremos da temeridade dos artistas alemães do Século XVI que acrescentaram a venda aos olhos de Thêmis, tornando a Justiça cega com vistas à imparcialidade, mas com isso retirando também sua capacidade de avaliação dos casos submetidos a seu parecer.


Informações Sobre os Autores

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.

Fernanda de Carvalho Lage

Estudante de Direito


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!
logo Âmbito Jurídico