Diz a Lei de Alimentos (LA), no art. 15, com todas as letras: “A decisão judicial sobre alimentos não transita em julgado…” Essa assertiva legal foi amplamente contestada pela doutrina, consolidando-se o entendimento de que as sentenças proferidas em ações de alimentos, como quaisquer outras sentenças, possam ter sua eficácia limitada no tempo, quando fatos supervenientes alterem os dados da equação nela traduzida.[1] De nenhuma particularidade especial se reveste a sentença alimentária quanto à coisa julgada.[2] Essa orientação acabou sendo aceita pela jurisprudência, ficando, com isso, pacificado o entendimento de que a sentença que fixa os alimentos faz coisa julgada.
Como a obrigação alimentar, de modo geral, dilata-se por longos períodos de tempo, é comum ocorrer o aumento ou a redução quer das possibilidades do alimentante, quer das necessidades do alimentando. Portanto, são freqüentes as ações revisionais, o que, no entanto, não afronta a imutabilidade do decidido. A possibilidade revisional leva à falsa idéia de que a decisão sobre alimentos não é imutável. Transitada em julgado a sentença que estabelece a obrigação alimentar, atinge a condição de coisa julgada material, não podendo novamente esta questão ser reexaminada.[3] Em se tratando de relação jurídica continuativa, a sentença tem implícita a cláusula rebus sic stantibus, e a ação revisional é outra ação, tem objeto próprio e diferente causa de pedir. Diante de nova situação fática, não pode prevalecer decisão exarada frente a distintas condições das partes. Aliás, tal ressalva está expressa na lei, no mesmo artigo 15: “… pode a qualquer tempo ser revista em face da modificação da situação financeira dos interessados”.
O estatuto processual, ao tratar da coisa julgada, estabelece que nenhum juiz decidirá questões já decididas (CPC, art. 471, I) salvo se, tratando-se de relações jurídicas continuativas, sobrevier modificação no estado de fato ou de direito. Assim, a sentença que decide sobre os alimentos passa em julgado em relação à situação de fato existente no momento em que é pronunciada, cessando seu efeito preclusivo quando, por eventos supervenientes, possa considerar-se alterado o estado de fato ou de direito precedentemente acertado.[4] A sentença revisional não deixa de considerar a decisão judicial anterior: apenas adapta o valor dos alimentos aos novos fatos. Portanto, a sentença que decide alimentos faz, sim, coisa julgada.
A ação revisional de alimentos deve ser lastreada em fatos ocorridos após a origem da obrigação alimentar, ou seja, com base em fatos supervenientes. É o que diz de forma unânime a doutrina.[5] Se não ocorre alteração quer das possibilidades do alimentante, quer das necessidades do alimentando, o valor dos alimentos não pode ser alterado, exatamente por esbarrar na coisa julgada. Somente mediante a prova da ocorrência de mudança na situação de qualquer das partes, é possível alterar o valor dos alimentos. Proposta ação revisional, e não comprovada mudança na situação das partes, as demandas não são aceitas: são julgadas improcedentes ou são extintas, sem julgamento do mérito, pelo reconhecimento da ocorrência de coisa julgada (CPC, art. 265, V).[6]
Tudo isso decorre do princípio da proporcionalidade: a fixação dos alimentos deve atentar às necessidades de quem os reclama e às possibilidades do obrigado de prestá-los (CC, art. 1.694, § 1º). Havendo alteração nesse parâmetro, possível é, a qualquer tempo, revisar-se o valor da pensão alimentícia (CC, art. 1.699). Tais modificações, como provocam afronta ao que se passou a chamar de trinômio proporcionalidade/necessidade/possibilidade,[7] autorizam a busca de nova equalização do valor dos alimentos. A exigência de obedecer a este verdadeiro dogma é que permite buscar a revisão (para mais ou para menos) ou a exoneração da obrigação alimentar. Portanto, o que autoriza a modificação do quantum é o surgimento de um fato novo que enseje desequilíbrio do encargo alimentar.
Essas possibilidades revisionais decorrem exclusivamente da exigência de respeito ao principio da proporcionalidade. Aliás, esse é o fundamento que permite a alteração, a qualquer tempo, do valor dos alimentos, quer para majorá-los, quer para reduzi-los, quer, inclusive para pôr fim ao encargo quando não há mais necessidade do credor ou possibilidade do devedor. Mas a obediência a esse critério norteador da obrigação alimentar impõe-se não só após a fixação dos alimentos para efeitos revisionais. Tal é possível sempre que houver flagrada afronta a este preceito. Deve ser respeitado o princípio da proporcionalidade também por ocasião da fixação dos alimentos. Desrespeitado tal princípio, é necessário admitir a modificação dos alimentos, para ser estabelecido o equilíbrio exigido pela lei. Ora, se os alimentos foram fixados sem atentar às reais possibilidades do alimentante ou às verdadeiras necessidades do alimentado, houve desatendimento ao parâmetro legal, e o uso da via revisional se impõe. Esta adequação pode ser levada a efeito a qualquer tempo, mesmo que inexista alteração nas condições econômicas ou na situação de vida de qualquer das partes.
Nessa hipótese igualmente não cabe alegar coisa julgada, pois esta não se cristaliza se, quando da fixação dos alimentos, foi desrespeitado o princípio da proporcionalidade. Outra não pode ser a solução. Esta é a única forma de impedir a perpetuação de flagrantes injustiças. Cabe o exemplo mais corriqueiro: quando os alimentos são fixados sem que tenha idéia o credor dos reais ganhos do devedor, até porque, em geral, não convivem alimentante e alimentado sob o mesmo teto e, muitas vezes, sequer residem na mesma cidade. Isso tudo sem considerar a intenção do devedor de não cumprir com a obrigação de sustento, sendo unilaterais os elementos trazidos como prova da sua condição de vida.[8] Ora, ao tomar conhecimento o credor de que o valor estabelecido desatende ao princípio da proporcionalidade, cabe buscar a adequação, sem que possa o devedor sustentar que a pretensão esbarra na coisa julgada.
Cabe lembrar que a obrigação alimentar tem características próprias: visa a assegurar o direito à vida, emanação do direito da personalidade,[9] que tem assento constitucional (CF, art. 5º), sendo regulado por normas cogentes de ordem pública, tanto que os alimentos são irrenunciáveis (CC, art. 1.707). Mais: é ao juiz que cabe fixar o valor dos alimentos, tanto que tem ele a possibilidade de estipular valor superior ao pleiteado pelo autor, sem que se possa falar em decisão ultra petita ou afronta ao art. 460 do CPC, nem tampouco ao art. 485, V, do mesmo estatuto legal.[10] Desincumbe-se o juiz do dever de fixar o valor dos alimentos mediante a análise das provas vindas ao processo, atentando ao fato de que, nas ações de alimento, há a inversão dos ônus probatórios. Ao autor cabe tão-só provar a obrigação alimentar do réu (LA, art. 2º). É do alimentante o dever de comprovar seus ganhos, até porque é difícil ao credor ter acesso a tais dados, protegidos que se encontram pela inviolabilidade do direito à privacidade e ao sigilo. Assim, vindo informações falsas ou incompletas, não dispõe o magistrado dos elementos para quantificar os alimentos segundo a baliza legal. E, fixados os alimentos com dados falsos ou incompletos, e evidenciada a afronta ao princípio da proporcionalidade, impõe-se a correção do valor do encargo a qualquer tempo.
Nem na ação de oferta de alimentos está o juiz adstrito ao valor oferecido pelo autor. Sem transpor os limites da demanda, pode estabelecer valor acima do que foi oferecido, ainda que não tenha o credor feito uso da via reconvencional. Assim, há a possibilidade de fixação do quantum em valor superior ao ofertado, sem tornar a decisão infra ou ultra petita.[11]
Inclusive quando os alimentos foram acordados pelas partes, pode o juiz negar a homologação, se a estipulação desatende flagrantemente ao interesse de uma das partes. Outro não é o motivo que impõe, nas ações de alimentos, a participação do Ministério Público, pois este dispõe da condição não só de fiscal da lei, mas de substituto processual,[12] podendo agir em nome da parte e fazer uso da via recursal até contra a vontade da parte, quando esta é menor ou incapaz, e seu representante não está atentando aos seus interesses.
Mesmo que os alimentos tenham sido fixados por acordo judicial ou extrajudicialmente, comprovado o desatendimento ao trinômio proporcionalidade/possibilidade/necessidade, possível a revisão do encargo a qualquer tempo. A motivação é a mesma. Alguém foi induzido em erro ao transacionar alimentos em valor menor do que a lei assegura. Em se tratando de encargo a favor de criança ou adolescente, sequer dispõe o guardião da possibilidade de aceitar quantia inferior e, com isso, exonerar o detentor do poder familiar do dever de sustento que a lei lhe impõe.
Portanto, desimporta que tenham os alimentos sido fixados por acordo ou judicialmente. Flagrado o desatendimento ao critério da proporcionalidade, cabe a correção pela via revisional. Inaceitar tal possibilidade é permitir que o devedor se beneficie da própria torpeza, visto que, em decorrência de sua omissão ao não fornecer dados precisos de seus rendimentos, os alimentos não foram estabelecidos em obediência ao parâmetro legal.
Diante de todo esse leque de hipóteses, fica claro o descabimento da limitação da via revisional somente quando existir alteração de um dos pólos do binômio possibilidade/necessidade. A revisão dos alimentos é possível sempre que houver afronta ao princípio da proporcionalidade, quer porque houve alteração nas condições de qualquer das partes, quer porque este princípio foi desatendido por ocasião da fixação dos alimentos.
Aliás, esta foi a situação que deu origem a recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.[13] Por acordo, os alimentos foram estipulados em dois salários mínimos e mais despesas de educação, quando o genitor recebia, somente de salário, doze mil reais, além de possuir rendimentos outros. Daí o pedido revisional. Ora, impedir o reequacionamento em obediência à coisa julgada é perpetuar a injustiça que o acordo consolidou. Dispõe o filho do direito de usufruir as mesmas condições de vida do genitor. O acordo desatendeu ao interesse do filho, com o que, inclusive, sequer poderia a mãe ter concordado. Por tais fundamentos é que a maioria, invocando a primazia do princípio da proporcionalidade sobre a coisa julgada, procedeu à necessária equalização do valor dos alimentos, fixando-os de forma proporcional aos ganhos do genitor.
Sobre a imutabilidade da coisa julgada, pairam princípios outros que justificam a perene possibilidade de os alimentos serem revisados.[14] Ainda que haja coisa julgada em sede de alimentos, prevalece a necessidade de impor o atendimento a diretrizes mais relevantes. Não pode a Justiça favorecer quem age de má-fé e descumpre o dever de lealdade processual. Sobretudo, não pode ser conivente com quem desatende ao encargo maior do poder familiar: garantir a vida do filho.
Assim, estipulado o encargo alimentar – quer por acordo, quer por decisão judicial –, possível é a revisão do valor quando houver o desatendimento do princípio da proporcionalidade. Mesmo que não tenha ocorrido alteração quer das possibilidades do alimentante, quer das necessidades do alimentado, impositiva a adequação, a qualquer tempo, do valor dos alimentos.
Comprovada a desproporção, mais do que possível, é aconselhável, é até recomendável a revisão do encargo alimentar a qualquer tempo.
Assegurando a Constituição Federal prioridade absoluta aos direitos das crianças e adolescentes – entre eles o direito à vida e à dignidade –, não se podem priorizar princípios outros que venham em benefício de quem desatenda à obrigação de assistência para com os filhos e o dever de lealdade para com a Justiça.
Não se pode admitir afronta à ética em nome da segurança das relações jurídicas.
Informações Sobre o Autor
Maria Berenice Dias
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM