A Lei brasileira (como outras), estabelece a “preservação” da “identidade, imagem e dados pessoais” da pessoa protegida. Isto significa que a identificação da vítima ou testemunha será reservada, ou seja resguardada, ocultada. Essa preservação refere-se, ao que se compreende, ao âmbito processual, referente àquela pessoa enquanto testemunhe naquele caso. Para as demais situações da sua vida a Lei estabelece a “mudança de identidade”, a que nos reportamos no próximo item.
Artigo 7° : “Os programas compreendem, dentre outras, as seguintes medidas aplicáveis isolada ou cumulativamente em benefício da pessoa protegida, segundo a gravidade e as circunstâncias de cada caso”:
…IV: “preservação da identidade, imagem e dados pessoais”;
Trata-se de dispositivo de difícil interpretação em um de seus aspectos. Referida preservação enseja maior análise em decorrência da situação em que se encontre a pessoa protegida: Em relação a terceiras pessoas, em relação ao Promotor, em relação à autoridade policial e em relação ao defensor do acusado.
1- Ocultação dos dados em relação a terceiras pessoas. Este aspecto não apresenta maiores problemas, pois parece bem lógico que os dados referentes à testemunha protegida deva ser mantido em absoluto sigilo em relação a pessoas que não integram o processo, incluída aí evidentemente a mídia.
2- Em relação ao Promotor: Tampouco parece revelar qualquer dificuldade de interpretação. Normalmente será o próprio Promotor o primeiro ou um dos primeiros conhecedores da identidade da testemunha a ser protegida, porquanto a terá arrolado como testemunha da acusação. Não resta dúvida de que terá o maior interesse na manutenção da preservação dos seus dados.
3- Em relação à Autoridade Policial: Também parece evidente que o Delegado de Polícia deverá conhecer e manter sob sigilo a identidade da testemunha durante o trâmite do Inquérito Policial, sendo-lhe lícito, também, evidentemente, por questões de operacionalização das diligências, designar alguns de seus policiais de confiança para as funções policiais de proteção e investigação que requeiram o conhecimento da verdadeira identidade da testemunha.
4- Em relação ao defensor: Aí reside a dificuldade. Trata-se de saber se o advogado, constituído ou dativo poderá ter acesso aos dados referentes à testemunha cuja identidade deva ser protegida, para a sua segurança. Esta análise, segundo entendemos merece apreciação pouco mais detalhada. Há que se distinguir se a proteção deve alcançar os atos investigatórios, portanto pré-processuais, se deve alcançar os atos processuais ou ambos.
a) Quanto aos atos investigatórios, sem adentrar ao mérito da questão do sigilo das investigações em sentido geral, parece-nos lógico que, devendo ou podendo os atos preparatórios de investigação levados a cabo pela Polícia e pelo Ministério Público ser predominantemente secretos, sob pena de serem frustados, o mesmo se aplica, com maior razão, aos dados da testemunha, até porque aquela investigação pode nem sequer transformar-se em processo criminal e então não haverá qualquer razão para o conhecimento dos atos e dos dados das testemunhas;
b) Nessa situação manter-se-ia o sigilo dos dados da testemunha durante o processo. Aí estaria a maior dificuldade de análise, que deveria ser observada ainda sob duplo prisma:
– Os dados deveriam ser revelados ao advogado. Neste caso haveria um grande risco de que o próprio defensor, de qualquer forma, os repassasse a membro da quadrilha ou organização criminosa (Evidentemente que não se pode generalizar. A grande maioria dos Advogados não cometeria esse deslise, e, mais que isto, tomaria todas as cautelas para que mesmo inadvertidamente pudesse acontecer, – por exemplo, através de algum funcionário do seu escritório. Mas nestes casos não há como selecionar. Ou se proíbe a todos ou a todos se permite. Então, por cautela e absoluta necessidade de proteção da testemunha sob pena de se lhe arriscar a vida e até para o sucesso do instituto legal, optamos pela manutenção do sigilo); e, consequentemente instalar-se-ia potencialmente o risco de vida e/ou integridade física da testemunha, pois os criminosos dessa estirpe não costumam ter escrúpulos e poderiam ameaçar, não só a testemunha em si, mas familiares e amigos, e seriam capazes de buscar conhecer todo o rol de amizades e parentes de forma que proteção alguma no mundo daria conta de proteção;
– Os dados não poderiam ser revelados ao defensor. Neste caso poderia ocorrer a alegação de violação dos princípios processuais da “ampla defesa” e “contraditório”, na medida em que a defesa teria – em tese – a sua defesa dificultada, e menos contraditada do que o Promotor – este sim conhecedor daqueles fatos.
A solução, segundo entendemos, é pela segunda hipótese. É evidente a dificuldade de equacionamento da questão, mas é circunstância excepcional, e assim deve ser tratada. Prosseguimos então pelo seguinte raciocínio: Na verdade a testemunha presta depoimento a respeito de fatos. Ela tem que responder de forma objetiva. Isto significa que, em termos práticos, ser de relativa valia o conhecimento da sua identidade. Importante é saber se aquela testemunha diz a verdade e se não se contradiz com outros fatos e provas trazidos aos autos, ou mesmo com outras testemunhas. Mas por outro lado poderia incumbir ao Juiz indeferir algumas perguntas que só poderiam ser formuladas pelo Ministério Público, exatamente em razão do conhecimento que porventura tiver sobre os dados da testemunha. Mais que isso, o Juiz deve levar em conta como valor probatório o testemunho firme e coerente. A se considerar a primeira das soluções, – de conhecimento dos dados da testemunha por parte do advogado, -seriam colocados em risco, não só os institutos previstos nesta Lei e, mais que isso, estariam em risco as vidas das testemunhas, pessoas inocentes que nada tinham a ver com os fatos. Ficamos portanto com a segunda opção. Podemos então equacionar a solução desta questão da seguinte forma:
Solução sugerida:
Identidade da pessoa (test. ou perito – sua idoneidade) + coerência e firmeza do seu depoimento = Grau de valoração e convencimento do Juiz.
Então:
1- Manter Oculta a identidade;
2- O Juiz pode indeferir as perguntas do MP – as quais só ele, pelo prévio conhecimento da identidade da testemunha ou perito, possa formular;
3- O Juiz deve considerar apenas o item “coerência e firmeza do depoimento ou aclaração para valorá-lo como prova e formar o seu convencimento, – desprezando a conotação que lhe possa induzir os aspectos relativos à identidade/idoneidade da testemunha ou perito.
4- Ademais, testemunha sempre se refere a fatos observados – o depoimento sempre deve ser objetivo e sem valoração ou juízo subjetivo. Não tem que dizer o que acha, mas o que viu, ouviu etc. Assim, deve-se considerar que uma pessoa, na função de testemunha está dizendo – objetivamente os fatos que presenciou.
Por fim, há que se considerar que os princípios processuais de “ampla defesa” e “contraditório”, embora relativamente inibidos, não são impedidos. A situação encontra respaldo exatamente na excepcionalidade da medida, para a excepcionalidade da situação de inafastável necessidade de se proteger as testemunhas nestas situações raras. Pergunte-se a um advogado, cujo membro da família seja testemunha nestas condições, esposa ou filhos por exemplo, se gostaria que os dados do seu familiar fossem revelados no processo, portanto de acesso ao advogado das pessoas processadas….?
Cite-se, apenas para ilustrar, a situação em que se encontraria o “agente infiltrado”, cuja atividade encontra-se expressamente prevista na recente edição da Lei n° 10.217/2001, quando, após ter ingressado no âmbito da organização criminosa vem contra os seus membros testemunhar em juízo. Não existe a possibilidade de se discordar que, revelada a sua verdadeira identidade ele viria a correr seríssimos riscos de vida, integridade física e, ainda pior, também os seus inocentes familiares se encontrariam na mesma situação. A não se permitir a permanente ocultação de suas identidades a medida de “infiltração de agentes” tornar-se-ia inaplicável na prática por absoluta falta de segurança e em decorrência falta de agentes policiais disponíveis às tarefas.
A luta contra as organizações criminosas deve ser encarada com a mesma seriedade das medidas estabelecidas em Lei e, neste passo, não se pode “jogar” com a vida destes policiais – que é o bem mais valioso, sob eventual fundamento de necessidade de aplicação ilimitada dos princípios processuais da ampla defesa e contraditório em prol do suspeito de atuação na delinqüência organizada.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Batlouni Mendroni
Promotor de Justiça/SP – GEDEC, Doutor em Processo Penal pela Universidad de Madrid, Pós-Doutorado na Università di Bologna/Italia