Resumo: Inicia-se a abordagem com o conceito de patrimônio público como conjunto de bens, direitos e valores que encerra, bem como sua titularidade e alcance, concluindo-se pela noção principiológica que guarda tal preceito. Em sentido estrito, patrimônio público se refere ao conjunto de bens e valores economicamente mensuráveis, pertencentes ao erário. A recuperação do patrimônio público busca alcançar a noção ampla do patrimõnio público. Em contraponto, o ressarcimento tem o fim de buscar-se a recomposição do acervo financeiramente mensurável.
Sumário: 1. Considerações gerais sobre patrimônio público. 2. Patrimônio Público em sentido estrito. 3. Recuperação do patrimônio público
1. Considerações gerais sobre patrimônio público
Patrimônio encerra a noção de conjunto de bens e direitos, de natureza móvel ou imóvel, de natureza corpórea ou incorpórea, que podem ser dispostos na forma da lei, englobando ainda atributos morais e sociais. [1]
Já a Lei nº 4717/65, conhecida como a Lei de Ação Popular, em seu art. 1º, elucida que “consideram-se patrimônio público, para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico e turístico”, pertencentes à União, Estados, Distrito Federal, Municípios e órgãos da administração indireta.
Em complemento, a Lei nº 8.429/92 revela que os atos de improbidade administrativa praticados em face de entidade que “receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de 50% do patrimônio ou da receita anual” também se submetem a sua aplicação. Assim, ampliou a noção de patrimônio público, incluindo as entidades não pertencentes a estrutura estatal originária, mas que dela recebam auxílio.
Dessa forma, conclui Fernando Rodrigues Martins que patrimônio público configura como o conjunto de bens, dinheiro, valores, direitos e créditos pertencentes aos entes públicos, por meio da administração direta, indireta ou fundacional, “cuja conservação seja de interesse público e difuso, estando não só os administradores, como também os administrados, vinculados a sua proteção e defesa.” [2]
E ainda assevera o mesmo autor que a noção de patrimônio público encerra todo tipo de situação em que a Administração estiver envolvida, inclusive sua própria moral como objeto a ser resguardado pela sociedade e pelos agentes públicos, submetendo-se aos valores da probidade e honestidade, afastando práticas corruptas e imorais. Tal interpretação emana da própria Lei de Improbidade Administrativa, que busca a proteção da Administração em seu sentido mais amplo, protegendo-a da concussão, prevaricação, malversação e toda sorte de ilícitos.
Atualmente, patrimônio público e moralidade ganharam status de direitos humanos, pois uma vez tutelados por documentos de cunho internacional, projetam proposições dirigidas ao ser humano e desvincula-se de uma ordem constitucional específica.
Nesta linha de raciocínio, Fernando Rodrigues cita a aprovação pelo Congresso Nacional Brasileiro, através do Decreto Legislativo 152, de 25.06.2002, posteriormente promulgada pelo Decreto Presidencial 4.410, de 07.10.2002 da Declaração de Caracas (Convenção Interamericana Contra a Corrupção). Nele, reconhece-se que “a corrupção solapa a legitimidade das instituições públicas e atenta contra a sociedade, a ordem moral e a justiça, bem como contra o desenvolvimento integral dos povos” e que o combate a corrupção “reforça as instituições democráticas e evita distorções na economia, vícios na gestão pública e deterioração da moral social.”[3]
Uma vez incorporado o documento de ordem internacional ao ordenamento jurídico pátrio, ganham suas disposições equivalência a emenda constitucional, a exemplo da Convenção Interamericana contra a Corrupção e da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, ambas tendo o Brasil como signatário. Ainda no entendimento do Doutor Fernando Martins, conclui-se que tais documentos internacionais de combate a corrupção, formulados com vistas à proteção direta do patrimônio público e da moralidade administrativa, transbordam da órbita meramente contratualista entre os Estados pactuantes. Nesse momento, positivados direitos humanos na Carta Magna “em normas gerais e abstratas, transforma-os em direitos fundamentais e permite que a política, mediante a sua forma moderna de Estado, com todo seu aparato burocrático-funcional, venha emprestar-lhes coercibilidade efetiva em nossa vida cotidiana.”[4]
O Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 144, através do voto do Min. Celso de Mello, DJE de 26/02/2010, relata como direito do cidadão a administração ética do Estado. Colaciono:
“(…) Não se questiona a alta importância da vida pregressa dos candidatos, pois a probidade pessoal e a moralidade administrativa representam valores que consagram a própria dimensão ética em que necessariamente se deve projetar a atividade pública. Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis, que desempenhem as suas funções com total respeito aos postulados ético-jurídicos que condicionam o exercício legítimo da atividade pública. O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania. Tenho reconhecido, por isso mesmo, que a probidade e a moralidade traduzem pautas interpretativas que devem reger o processo de formação e composição dos órgãos do Estado (…)”
Assim, a noção de patrimônio público abrange não somente sua vertente econômica, mas se atrela a tutela de valores principiológicos resguardados constitucionalmente a serem verificados tanto pelos agentes públicos, administradores e administrados, na concretização dos postulados estabelecidos pelas normas constitucionais e legais.
2. Patrimônio Público em sentido estrito
Conforme alertado anteriormente, a noção de patrimônio público, além de alcançar os elementos de valor econômico, encontra informação advinda também de princípios ausentes de tangibilidade financeira, mas de valia ética ou moral. Dessa forma, o acervo público abrange essa gama de bens e valores, mensuráveis ou não economicamente, de que sejam titulares as pessoas jurídicas de direito público, de administração direta ou indireta.
São partes desse acervo, segundo o entendimento de Fernando Rodrigues Martins[5], os bens públicos, o erário público, os direitos e o patrimônio moral. De acordo com o professor Célio Rodrigues da Cruz, a noção de patrimônio público pode ser verificada em dois sentidos. De forma ampla, ao abranger em seu conceito os elementos expostos na Lei de Ação Popular; ou restritamente, noção adstrita ao “conjunto de bens e direitos de valor econômico pertencente ou vinculado aos entes da Administração Pública direta e indireta.” [6] Neste último sentido, encontra-se verificada a expressão erário.
Sendo assim, erário público seria uma parcela do patrimônio público, exprimível através do aspecto financeiro, concretizado através dos dinheiros e valores do Estado. Dessa forma, a expressão erário carrega consigo a própria noção de tesouro público. No plano econômico, a função do erário carrega consigo a função de meio de troca, unidade de conta (expressão numérica dos ativos e passivos) e reserva de valor, como meio para acumulação de valores para aquisições futuras.
Já os bens públicos, segundo o Código Civil Brasileiro, são os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno, sendo todos os outros particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
Nos dizeres de Fernando Rodrigues Martins, bem público será todo bem móvel, imóvel ou semovente “de que sejam titulares as pessoas jurídicas de direito público – tanto da Administração direita quanto indireta- caracterizados por uma relação jurídica administrativa e com destinação pública específica (afetação)”.[7]
Marçal Justen Filho[8] alerta que tais bens se submetem ao regime jurídico de direito público, o que ocasiona restrição às faculdades de uso, fruição e disponibilidade de tais bens, sendo um instrumento para o desempenho das funções públicas e conferindo identidade ao Estado. Sua titularidade estatal proporciona a promoção da satisfação dos direitos fundamentais do povo, bem como possibilita a fruição democrática e adequada.
De acordo com o nosso Código Civil, os bens públicos podem ser classificados em bens de uso comum, de uso especial e dominicais. Os primeiros serão utilizados concorrentemente por toda a comunidade. Os de uso especial destinam-se a utilização para cumprimento das funções públicas e os dominicais são empregados para fins econômicos. Colaciono o art. 98 e 99 do Código Civil, que trata de tal classificação:
“Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
Art. 99. São bens públicos:
I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.”
Alerta Marçal que tal ordenação demonstra insuficiência na medida em que o legislador desconsiderou, em sua classificação, a relevância dos bens móveis e dos direitos. Além disso, a partir da Constituição Brasileira de 1988, outra categoria de bens surgiu, de titularidade do povo, mas não de seu uso comum, consistente no meio ambiente e recursos naturais, bens que merecem especial proteção e que, apesar de serem de propriedade da sociedade, poderá ter seu uso ou fruição interditado.
Sendo assim, a noção de patrimônio público, em sentido estrito, pode ser expressa através de seu aspecto economicamente mensurável, consistente no conjunto de bens e valores de titularidade estatal. Tal conjunto será objeto de proteção especial, tendo em vista sua titularidade pública, e seu desvio, perda, malbaratamento configurará hipótese de improbidade administrativa que causa lesão ao erário.
3. Recuperação do patrimônio público
A Lei Geral de Improbidade Administrativa – LGIA – tem seu campo de incidência principal na preservação do patrimônio público e na persecução dos responsáveis por danos causados a seu acervo material ou moral.
Carina Bellini Cancela[9], embasando-se no objeto tutelado pela Lei de Improbidade e levando em conta a natureza de tal objeto, revela que recuperação do patrimônio público é expressão abrangente, na medida em que alberga sua persecução numa acepção mais ampla, indo além dos valores econômicos e alcançando os bens e direitos de valor artístico, cultural, histórico e estético, de cunho imaterial e moral inclusive.
Já o ressarcimento ao erário encerra a noção de busca dos valores econômico-financeiros lesionados por ato de improbidade administrativa, sendo assim uma espécie de recomposição patrimonial.
A LGIA prevê, em seu Art. 12, II, que o ressarcimento se dará de forma integral, com a perda dos bens e valores incrementados de forma ilícita ao patrimônio do agente. Ainda, neste caso, advém em conjunto a aplicação das penas de perda da função pública, suspensão de direitos políticos, pagamento de multa, proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios fiscais ou creditícios.
A recomposição do patrimônio público será buscada através da interposição de ação civil por improbidade administrativa, a ser proposta pelo Ministério Público ou pelo órgão responsável pela representação judicial da pessoa jurídica interessada. Com a finalidade de se possibilitar o ressarcimento integral do dano ocasionado, o art. 7º da LGIA permite que seja interposto pedido cautelar de indisponibilidade dos bens do indiciado aptos a assegurarem o completo ressarcimento do dano.
Além da persecução civil, o ato ímprobo praticado ensejará necessidade de averiguação na seara penal, estando as condutas definidas nos artigos 312 a 326 e 359-A a 359-H do Código Penal, respectivamente, no Capítulo I: dos crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral, e no Capítulo IV: dos crimes contra as finanças públicas.
Para fins penais, o sujeito ativo dos referidos crimes está previsto no artigo 327 e § 1° é o funcionário público, assim definido:
“Artigo 327 Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1º – Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.”
O membro do Ministério Público, por ser titular da ação penal desta natureza, ao tomar conhecimento da prática de tais delitos, tem o dever funcional de formular denúncia, iniciando assim a ação penal contra o funcionário responsável pela prática do crime. O Supremo Tribunal Federal emitiu precioso julgamento ao tratar da matéria na AP 409, voto do Rel. Min. Ayres Britto,
julgamento em 13/05/2010, DJE de 1º/07/2010, ao estabeler um paralelo entre o alcance da ação penal e seus objetivos, em contraponto com os limites da ação civil de improbidade administrativa. Vejamos:
“(…) a probidade administrativa é o mais importante conteúdo do princípio da moralidade pública. Donde o modo particularmente severo como a Constituição reage à violação dela, probidade administrativa, (…). É certo que esse regramento constitucional não tem a força de transformar em ilícitos penais práticas que eventualmente ofendam o cumprimento de deveres simplesmente administrativos. Daí por que a incidência da norma penal referida pelo Ministério Público está a depender da presença de um claro elemento subjetivo – a vontade livre e consciente (dolo) – de lesar o interesse público. Pois é assim que se garante a distinção, a meu sentir necessária, entre atos próprios do cotidiano político-administrativo (controlados, portanto, administrativa e judicialmente nas instâncias competentes) e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais. E de outra forma não pode ser, sob pena de se transferir para a esfera penal a resolução de questões que envolvam a ineficiência, a incompetência gerencial e a responsabilidade político-administrativa. Questões que se resolvem no âmbito das ações de improbidade administrativa, portanto.”
Na seara administrativa, o responsável pelo controle interno, no momento em que se deparar ou tomar conhecimento do cometimento do ato irregular ou ilegal na gestão de recursos públicos, deverá cientificar o Tribunal de Contas, sendo tal Tribunal competente para a busca do ressarcimento, além do julgamento e aprovação de contas, aplicando as penalidades correlatas aos responsáveis. A Lei nº 8443/1992 ( Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União) disciplina que:
“Art. 8° Diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela União, na forma prevista no inciso VII do art. 5° desta Lei, da oco rrência de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao Erário, a autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente adotar providências com vistas à instauração da tomada de contas especial para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano.
[…]
Art. 51. Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência de imediato ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.
§ 1° Na comunicação ao Tribunal, o dirigent e do órgão competente indicará as providências adotadas para evitar ocorrências semelhantes.
§ 2º Verificada em inspeção ou auditoria, ou no julgamento de contas, irregularidade ou ilegalidade que não tenha sido comunicada tempestivamente ao Tribunal, e provada a omissão, o dirigente do órgão de controle interno, na qualidade de responsável solidário, ficará sujeito às sanções previstas para a espécie nesta Lei.”
A interposição da ação de improbidade administrativa deverá guardar observância aos prazos prescricionais disciplinados no art. 23 da LGIA, consistentes em 05 anos, caso ajuizada em face de agente político, detentor de mandato, cargo em comissão ou função de confiança; e, quanto aos detentores de cargo efetivo, devem ser observados os lapsos prazais estabelecidos na legislação correlata.
Informações Sobre o Autor
Gabriela Pereira Franco
Procuradora Federal, Coordenadora Estadual da PFE/IBAMA-DF, Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília. Brasília/DF