Reflexões sobre a consecução da alteridade e da felicidade no Estado Democrático de Direito

Resumo: Neste texto, procuraremos contrastar as mais diversas previsões constitucionais aptas a tornarem possíveis as consecuções da alteridade e da felicidade no Estado Democrático de Direito, com diversos dados e casos envolvendo questões políticas, religiosas e futebolísticas, as quais demonstram uma ética humana voltada ao ódio. O intuito final se concentra em sugerir a existência de um grandioso paradoxo e esboçar algumas das suas causas.   

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Alteridade. Felicidade. Ódio. Paradoxo.

Abstract: In this text, we will seek to contrast the most diverse constitutional predictions capable of making possible the attainment of alterity and happiness in the Democratic State of Law, with diverse data and cases involving political, religious and soccer issues, which demonstrate a human ethics focused on the hate. The final aim is to suggest the existence of a great paradox and outline some of its causes.

Keywords: Democratic State of Law. Otherness. Happiness. Hate. Paradox.

Sumário: 1. Introdução. 2. O direito à alteridade na Constituição Federal de 1988. 3. Alguns dados e casos concretos. 4. Considerações finais. Referências

1. Introdução

Apesar de diversas previsões constitucionais reconhecerem e buscarem fomentar a pluralidade e a heterogeneidade existentes em nosso país, assiste-se, dia a dia, a inúmeros casos de desrespeito, intolerância, violência e ódio para com a diversidade, evidência vislumbrada, principalmente, quando se pensa em questões políticas, religiosas e esportistas, com ênfase naquelas futebolísticas.

Assim, se mostra preciso discutir quais seriam os fundamentos dessa constatação, bem como em que medida o Estado e a sociedade como um todo, podem contribuir para que se avance no sentido de que as normas constitucionais relativas ao tema sejam efetivadas.

Para isso, serão apresentadas referidas normas constitucionais e desenvolvimentos às mesmas afetos, dados e casos concretos a fim de ilustrar as radicalizações que aqui nos trouxeram.

Ao final, pretende-se sinalizar que é preciso refletir-se em que medida a ética neoliberal tem deturpado e impedido a consecução real do Estado Democrático de Direito no cenário brasileiro, bem como a efetivação da alteridade e da felicidade?

2. O direito à alteridade na Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988 rompeu com um longo período ditatorial consagrando o Estado Democrático de Direito como o Regime a ser seguido nos horizontes do nosso território.

Sem sombra de dúvidas, o Estado Democrático de Direito, enquanto Regime Político-Jurídico-Social de convivência (coexistência?) previsto no caput do art. 1º da Constituição Federal,  pode ser definido como aquele que congrega os anseios dos Estados Liberal e Social, sem, contudo, deixar de contemplar, se legítimas, as reivindicações sociais, políticas, econômicas e culturais oferecidas por este tempo, cujas características de extrema pluralidade e heterogeneidade ganham mais relevo.

Visando o seu fortalecimento, a Carta Magna instituiu diversos dispositivos, os quais preveem fundamentos e objetivos do nosso Estado, além de direitos fundamentais.

No que tange aos fundamentos, pode-se citar a dignidade da pessoa humana, alicerce do Estado brasileiro insculpido no inciso III e, o pluralismo político, previsto no inciso V, ambos do art. 1º da Constituição brasileira.

A dignidade da pessoa humana, enquanto supraprincípio, “ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas” (MARTINS, 2010, p. 51).

Logo, trata-se a mesma da salvaguarda dos direitos da personalidade, por se tratarem de conteúdo mínimo e imprescindível de cada pessoa. Suas emanações encontram-se na esfera mais íntima da dignidade humana, cujo teor de qualidade intrínseca ao ser é desenvolvido por Sarlet com muita propriedade.

“A dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. […]qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente” (SARLET, 2002, p. 143).

O pluralismo político pode ser encarado como uma das molas propulsoras do Estado Democrático de Direito, apresentando-se como resultado de uma evolução social e política, pois conforme Jürgen Habermas:

“[…] tomamos consciência de que a história e a cultura são as fontes de uma imensa variedade de formas simbólicas, da especificidade das identidades individuais e coletivas, bem como da grandeza do desafio representado pelo pluralismo epistêmico. […] o mundo se revela e é interpretado de modo diferente segundo as perspectivas dos diversos indivíduos e grupos. Uma espécie de pluralismo interpretativo afeta a visão do mundo e a autocompreensão, além da percepção dos valores e dos interesses de pessoas cuja história individual tem suas raízes em determinadas tradições e formas de vida e é por elas moldada” (HABERMAS, 2007, p. 9).

Tal alicerce estatal abraça o respeito à diferença, à tolerância, à consideração da pessoa humana como única e distinta. Ou seja, “[…] do ponto de vista normativo, o pluralismo impõe a opção por uma sociedade na qual a diversidade e as liberdades devem ser amplamente respeitadas” (NOVELINO, 2015, p. 297).

Nessa perspectiva, o conceito pluralista ambiciona a realização de um sistema de convivência social aberto, no qual o povo tem o direito de se externar. Assim, “o indivíduo tem a máxima possibilidade de participar na formação das deliberações que lhe dizem respeito” (BOBBIO, 1999, p. 16-22).

O pluralismo possui diversas vertentes como a partidária, a econômica, quanto às instituições de ensino, a cultural, a de informação, a intelectual, a artística, a científica, a de comunicação, a de orientação sexual, a filosófica, a religiosa, entre outras.

Isso se deve ao fato de o pluralismo encontrar-se conectado não só à diversidade, mas também à alteridade de acordo com Marcelo Novelino:

“O pluralismo está indissociavelmente ligado à diversidade e à alteridade. Não há pluralismo sem respeito às diferenças, ao caráter do que é outro, ao antônimo da identidade. Ao abordar o "princípio da alteridade", Wellington Nery assevera a importância do pluralismo nas sociedades, as quais devem ser múltiplas como a vida o é. E lembra: "o diferente é necessário, imprescindível, essencial. Respeitar o outro é querer respeito consigo. Somos todos uns em função do outro. Não nos cabe o preconceito, a intolerância, a estupidez, a barbárie” (NOVELINO, 2015, p. 298).    

Relativamente aos objetivos, no corpo do art. 3º da Carta da República, em conformidade com os incisos I, II, III e IV, respectivamente, encontram-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional e; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Sobre os objetivos do Brasil na Constituição Federal de 1988, façamos uso, mais uma vez, das palavras de Novelino:

“A construção de uma sociedade justa e solidária (princípio da solidariedade) e a busca pela redução das desigualdades sociais e regionais estão associadas à concretização do princípio da igualdade, em seu aspecto substancial (igualdade material). Nesse sentido, legitimam a adoção de políticas afirmativas (ações afirmativas ou discriminações positivas) por parte do Estado. […] A promoção do bem de todos, sem quaisquer formas de preconceito e discriminação, está diretamente relacionada à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana e ao respeito às diferenças, como exigência do pluralismo” (NOVELINO, 2015, p. 300).

No que toca aos direitos fundamentais, logo no caput do art. 5º da Constituição Federal, estão dispostos os direitos à liberdade, à igualdade, entre outros, os quais têm caráter individual, abarcando, porém, qualquer pessoa, independentemente da sua natureza, sexo, etnia, credo, raça etc.

Fazendo menção a uma passagem de Cecília Meireles (1977) na obra Romanceiro da Inconfidência, a liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.

É bem verdade, a liberdade, segundo Alexy (2008), fazendo uso dos dizeres de Aldous Huxley, é um nome maravilhoso e é por isso que ficamos tão ansiosos para fazermos uso dele.

Apesar de merecer outros apontamentos, o que será feito em textos futuros, o direito à liberdade, no que tange a Constituição brasileira contemporânea, é muito bem desenvolvida por George Marmelstein do seguinte modo:

“A ideia que inspira a proteção da autonomia privada é a de que o Estado deve tratar as pessoas sob o seu domínio como agentes responsáveis e capazes de tomar por si próprios as decisões que lhe dizem respeito. Assim, por exemplo, cabe a cada indivíduo decidir por si mesmo que lugares deseja frequentar, em qual religião deve acreditar, com quais pessoas queria se unir ou se associar, qual a profissão que deseja seguir, quais os livros que pretende ler e assim por diante. Daí os diversos direitos de liberdade: de locomoção, de religião, de associação e reunião, de profissão, de expressão etc. Logo, o valor da autonomia de escolha é inestimável, já que inúmeros direitos fundamentais decorrem diretamente deste princípio. […] A constituição brasileira, ao longo do art. 5º, positivou inúmeros direitos de liberdade. Confira-se” (MARMELSTEIN, 2009, p. 97).

Ademais, por direito à igualdade (isonomia), entende-se que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Esse direito é conceituado como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam.

Reivindica a definição, portanto, o estabelecimento da distinção existente entre igualdade formal e a igualdade material, também nomeada como substancial.

Igualdade formal é a igualdade na lei, ou seja, a igualdade reconhecida normativa, abstrata e genericamente na norma jurídica, logo, num estatuto de direito positivo.

Quando se fala em igualdade material deve-se pensar em igualdade no mundo dos fatos.

Assim, além da igualdade formal (na lei), deve-se buscar uma igualdade no “mundo real”, concreto, em que os fatos da vida ocorrem, donde se reivindica, por vezes, desigualar alguém, para que este alguém se torne igual.

“Em busca por uma igualdade substancial, muitas vezes idealista, reconheça-se, eterniza-se na sempre lembrada com emoção, Oração aos Moços, de Rui Barbosa, inspirada na lição secular de Aristóteles, devendo-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Costuma-se fazer uma distinção entre “igualdade na lei” e “igualdade perante a lei”. A primeira (igualdade na lei) é dirigida pelo legislador, que ao editar normas abstratas, deve tratar todos com isonomia. Já a “igualdade perante a lei” incide no momento da concretização, de modo que os operadores do direito, na aplicação da lei, não adotem comportamentos preconceituosos” (LENZA, 2013, p. 973).  

O texto constitucional abarca, também, ainda que implicitamente, e como decorrência do princípio da legalidade, instituído no inciso II do seu art. 5º, o direito à autonomia da vontade (e também do direito/princípio liberdade).

Por meio desse direito, toda e qualquer pessoa tem a possibilidade/capacidade de se autodeterminar, ser quem bem queria ser, explanando e exercendo suas características peculiares, desde que em atenção ao sistema normativo jurídico.

Assim, como correlação da previsão constitucional, pode-se dizer, o princípio da autonomia da vontade encontra-se consagrado, emanando mandamento no sentido de que tudo o que a lei não restringe possa ser realizado, desde que legítimo, como Marmelstein sustentou:

“Há, ainda, dentro do art. 5º, uma proteção implícita à autonomia da vontade, aqui entendida como a faculdade que o indivíduo possui para tomar decisões na sua esfera particular de acordo com seus próprios interesses e preferências. […] Isso significa basicamente o reconhecimento do direito individual de fazer tudo aquilo que se tem vontade, desde que não prejudique os interesses de outras pessoas. Cada um deve ser senhor de si, agindo como um ser responsável por suas próprias escolhas pessoais, especialmente por aquelas que não interferem na liberdade alheia. […] A proteção da autonomia da vontade tem como objetivo conferir ao indivíduo o direito de autodeterminação, ou seja, de determinar autonomamente o seu próprio destino, fazendo escolhas que digam respeito a sua vida e ao seu desenvolvimento humano, como a decisão de casar-se ou não, de ter filhos ou não, de definir sua orientação sexual etc” (MARMELSTEIN, 2009, p. 94-95).

Além do descrito, pode-se mencionar, é livre a manifestação de pensamento, nos moldes do inciso IV do art. 5º da Lex fundamentalis. Acerca dessa faceta do direito à liberdade, Masson escreveu:

“Em nosso texto constitucional o art. 5º, IV explicita essa faculdade, assegurando-a canto no aspecto positivo – proteção da exteriorização da opinião -, quanto no aspecto negativo -de vedação à censura prévia. […] Insta destacar que ao titular dessa liberdade permite-se expressar sentimentos, ideias e impressões de variadas formas, seja por mensagens faladas ou escritas, como também por gestos, expressões corporais, imagens, etc. Até mesmo manter o silêncio é prerrogativa aqui assegurada, já que ninguém pode ser forçado por particulares ou pelo Estado a se manifestar sem vontade. Em suma, todas as maneiras que o indivíduo possui para se exprimir encontram guarida constitucional” (MASSON, 2016, p. 239).

Após percorrermos alguns caminhos para a consecução da alteridade na Constituição brasileira de 1988, conheçamos alguns dados e casos concretos os quais retratam evidências ultrajantes à mesma.

3. Alguns dados e casos concretos

Conforme afirmamos em momento introdutório e enfrentamos no ponto anterior, apesar das previsões constitucionais supracitadas, as quais reconhecem e buscam fomentar a pluralidade e a heterogeneidade existentes em nosso país, assiste-se, periodicamente, a inúmeros casos de desrespeito, intolerância, violência e ódio para com a diversidade, evidência vislumbrada, principalmente, quando se tem mente questões políticas, religiosas e futebolísticas.

Quanto à intolerância política, salta aos olhos, empiricamente, a crise atravessada pelo Brasil. Como sinônimo disso, inúmeros escândalos são propagados a todo momento, fazendo-nos assinalar que essa seara tão importante para a convivência ideal se encontra imersa em politicagem, no sentido mais pejorativo do termo, tanto que se avista a busca do poder pelo poder.

No que pertine a intolerância religiosa, em dezoito de agosto do ano de dois mil e quinze (18/08/2015), o site g1.globo.com publicou matéria indicando que o Estado do Rio de Janeiro registrou 1000 (mil) casos dessa órbita em 2 (dois) anos e meio.

De acordo com o que fora anunciado (G1.GLOBO.COM, 2015), o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos (Ceplir), ligado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, recebeu em dois anos e meio quase 1000 (mil) denúncias de casos de intolerância religiosa. Os números constam de um relatório apresentado em audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de janeiro (Alerj). Entre julho do ano de dois mil e doze (2012) e dezembro de dois mil e quatorze (2014), foram registradas 948 (novecentas e quarenta e oito) queixas, 71% (setenta e um porcento) delas sobre intolerância contra religiões.

A título de exemplo narrou-se um caso (G1.GLOBO.COM, 2015) em que a mãe de santo Káthia Marinho, avó da menina Kayllane Campos, de 11 anos, apedrejada em junho daquele ano, ao sair de um culto de candomblé, afirmou que os agressores ainda não foram identificados e que enquanto não forem punidos, a violência não vai parar.

A nível nacional, de acordo com Leon:

“em 2015, os casos registrados de intolerância religiosa aumentaram quase 70 % em comparação com o ano anterior. Em quatro anos, 756 denúncias de discriminação por causa da religião chegaram ao Disque 100, central da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Em 2015, foram 252 denúncias. Sessenta e nove por cento a mais que no ano anterior” (LEON, 2015, p. 1).

Prosseguindo, poder-se-ia citar diversos casos de comoção nacional ligados à intolerância no futebol, contudo, nos ateremos àqueles mais extremistas, do nosso ponto de vista, ocorridos recentemente.

No ano de 2016 (dois mil e dezesseis), mais precisamente aos 5 (cinco) dias do mês de junho, o site paranaportal.uol.com.br (2016), informou que torcedor o do Flamengo Evandro Gatto, de 47 (quarenta e sete) anos, que foi agredido por um grupo de aproximadamente 30 (trinta) palmeirenses, vindo a falecer em virtude das lesões sofridas.

Noticiou-se, também, (PARANAPORTAL.UOL.COM.BR, 2016) que segundo informações da Polícia Militar, a torcida da Mancha Verde invadiu o local reservado à torcida rubro-negra, o que gerou o confronto. A polícia usou bombas de efeito moral e foi recebida, no estádio, sob ataques, pelos torcedores, com lixeiras e cadeiras das arquibancadas.

Em conformidade com dada matéria publicada no site esporte.uol.com.br (2017) em treze de fevereiro de 2017 (13/02/2017), no dia anterior, quando do clássico entre os clubes Botafogo e Flamengo, o torcedor do primeiro, Diego Silva dos Santos, de 28 anos, foi baleado no peito durante confronto entre torcedores próximo à entrada Norte do estádio Nilton Santos (Engenhão) e não resistiu aos ferimentos.

Segundo suas informações (ESPORTE.UOL.COM.BR, 2017), pela análise da rede social Facebook, constatou-se que a vítima mostrava ligação com a organizada Fúria Jovem do Botafogo e detinha postagens exaltando brigas com socos e pontapés.

De acordo com uma publicação no site esportes.estadao.com.br (2017), no último dia 9 (nove), Carlos Henrique Santos de Deus, de 17 (dezessete) anos, torcedor do Bahia, foi assassinado, em Salvador, Estado da Bahia, na noite do referido dia, horas depois do fim do clássico Bahia e Vitória pelo Campeonato Baiano.

Foi informado (ESPORTE.ESTADAO.COM.BR, 2017) que o garoto levou um tiro no abdome e outro na perna, em um posto de combustível na Avenida Vasco da Gama, quando se direcionava para sua residência após assistir à partida no estádio Fonte Nova.   

Os dados e casos aqui citados são pistas de uma ética voltada ao fanatismo, muitas vezes extremo, seja pelo poder, aquele religioso ou relativo a preferências de outra ordem.

Parece haver, por todo planeta e no Brasil, uma atmosfera contaminada pelo discurso do ódio, já que minorias são perseguidas e diminuídas no que se refere às suas convicções variadas e crenças.

Conforme Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, o discurso do ódio consiste:

“[…] na manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social ou religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias. Tal discurso pode desqualificar esse grupo como detentor de direitos. Note-se que o discurso do ódio não é voltado apenas para a discriminação racial. Para Winfried Brugger o discurso do ódio refere-se “a palavras que tendam a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 97).

É bem verdade, para se frisar, o discurso do ódio tem feito parte da realidade fática brasileira. Grupos neonazistas, skinhead, oposicionistas ao governo, e, até mesmo, bancadas governamentais e grupos neopentecostais, desde os anos 2000, veem praticando tais atos, que podem ser resultado de uma ética de radicalização dos ideais conservadores. Nesse horizonte, fomentou Aline Roes Dalmolin:

Atualmente, no Brasil, os discursos de ódio contemplam um grande espectro de grupamentos que capitaneiam seu proferimento como o movimento skinhead e neonazista, grupos oposicionistas ao governo brasileiro, integrantes de igrejas neopentecostais e mesmo fãs (e anti-fãs) de cantoras teens. Desde os anos 2000, sua prática vem sendo impulsionada pelo crescimento de movimentos que sustentam uma radicalização dos ideais conservadores, como os grupos neonazistas, os partidos conservadores cristãos e o integralismo, que ressurge após décadas de ostracismo. Nesse contexto, a violência, seja simbólica ou até mesmo física, vem sendo utilizada como estratégia de afirmação política, racial ou religiosa por parte desses grupos” (DALMOLIN, 2015, p. 5).

4. Considerações finais

Temos defendido que a pessoa humana passou ocupar espaço central (normativamente dizendo, ao menos) no ordenamento jurídico posto, após a Segunda Grande Guerra Mundial, de eventos provindos dos movimentos nazista e fascista e do advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a qual influenciou a composição do conteúdo das mais diversas Constituições e a criação de Tratados sobre direitos humanos por todo o mundo.

Bem como que o advento do Estado Democrático de Direito, definido como aquele que congrega os anseios dos Estados Liberal e Social, sem, contudo, deixar de contemplar, se legítimas, as reivindicações sociais, políticas, econômicas e culturais oferecidas por este tempo, cujas características de extrema pluralidade e heterogeneidade ganham mais relevo, tem possibilitado a consecução de diversos direitos e possibilidades inimagináveis noutros momentos históricos.

A abertura propiciada por esse Regime para a consecução da felicidade humana se apresenta sem precedentes, possibilitando que cada indivíduo desenvolva suas características peculiares, desde que não ofenda às normas jurídicas postas.

Por outro lado, temos assistido à uma falência estatal no sentido de organizar a vida em sociedade, o que pode ser corroborado pelos grandes escândalos de corrupção, a altíssima carga tributária, bem como a falta de confiança dos indivíduos nas instituições estatais e neles próprios, por apresentarem-se, dia a dia, cada vez mais individualistas, egoístas, e, assim, propensos à manutenção de uma realidade voltada ao autoritarismo e à arbitrariedade camuflados. 

Passamos por uma grande crise moral e ética, o que nos leva a investigar se os mais diversos desejos, emoções e paixões que movem os indivíduos na busca da felicidade podem ser objeto de negociação para que convivamos com mais fraternidade e possamos efetivar nossos direitos, inclusive, à alteridade.

É preciso delimitar, para isso, o real significado coletivo da instância Jurídico-Política-Social Estado Democrático de Direito, bem como investigar a posição do indivíduo imerso nesse ambiente coletivo, no que tange a busca pela satisfação de desejos e paixões, com vistas à consecução de uma vida feliz.

O Estado Democrático de Direito, do nosso ponto de vista, até mesmo porque não há, na literatura jurídica especializada, uma definição que abrace todas as possibilidades pelo mesmo oferecidas, possibilita maior liberdade ao indivíduo no sentido de se autodeterminar, de buscar a realização, frise-se, novamente, desde que legítimas, daquilo que lhe traz felicidade.

Em outras palavras, como cerne homogêneo, não dá para negar que todo e qualquer indivíduo deva ter assegurados direitos como vida, segurança, saúde, educação, moradia, lazer, trabalho, remuneração justa, previdência social, cultura, meio ambiente equilibrado, o mínimo economicamente falando, entre outros.

Por outro lado, quais seriam os conceitos de direitos como vida digna, liberdade e igualdade no conviver social contemporâneo de um ser que é, por sua essência, distinto, logo, dotado de caráter heterogêneo?   

A posição do indivíduo, no Estado Democrático de Direito, no que diz respeito ao ambiente coletivo, concentra-se no tratamento igualitário no sentido de deter os mesmos direitos e obrigações relativamente às questões homogêneas. Ou seja, não se pode negar que todos temos os mesmos interesses em certas medidas, as quais foram sugeridas acima, o que envolve além do gozo de direitos, a efetivação de deveres.

Noutra vertente, neste mesmo Regime de Estado deve-se tratar o indivíduo como sujeito de direitos distintos no que toca seu caráter heterogêneo. Com efeito, estamos diante de um Estado que possibilita o alcance da democracia efetiva, a qual pode ser nomeada como aquela em que se deva respeitar os direitos de uma maioria, mas que também reconhece e proporciona a consecução dos direitos das minorias. Ou seja, que reconhece e proclama a alteridade.

Neste texto, trabalhamos situações flagrantemente contrárias ao Regime descrito. Se nos encontramos nesse patamar normativo, quais seriam as explicações para tamanha incoerência?

Ao mesmo tempo em que temos, normativamente dizendo, postas previsões constitucionais de normas abstratas como dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, pluralismo político, entre outras, a contemplação de tudo o que necessitamos para nos desenvolver indo além das conquistas dos Estados Liberal e Social em busca das felicidades coletiva e individual, assistimos à construção, no Brasil, ao que tudo indica, guardadas as devidas exceções, de uma sociedade de canalhas, manipuladores, cínicos, egocêntricos e perversos, cuja vaidade se confunde com o ideal de felicidade levando os indivíduos a se odiarem!

Enfim, é preciso refletir em que medida a ética neoliberal tem deturpado e impedido a consecução real do Estado Democrático de Direito no cenário brasileiro, bem como a efetivação da alteridade e da felicidade? Precisamos aprofundar nesse sentido!

 

Referências
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BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. 4. ed. Trad. de João Ferreira. Brasília: UnB, 1999.
DALMOLIN, Aline Roes. A legislação do ódio e os limites à liberdade de expressão: enfoques contemporâneos na mídia e no direito. Disponível em: http://coral.ufsm.br/congressodireito/anais/2015/3-1.pdf. Acesso em 17 de novembro de 2016.
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G1.GLOBO.COM. RJ registra mil casos de intolerância religiosa em 2 anos e meio. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/rj-registra-mil-casos-de-intolerancia-religiosa-em-2-anos-e-meio.html. Acesso em 13 de abril de 2017.
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

Informações Sobre o Autor

Hugo Garcez Duarte

Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE


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