As Forças Armadas são alicerçadas sobre dois pilares constitucionalmente erigidos (art. 142, caput): a hierarquia e a disciplina.
A observância aos dois princípios balizadores das Forças Armadas é de fundamental importância para o cumprimento de suas missões constitucionais, quais sejam: a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem e, principalmente, a defesa da Pátria.
Em razão da hierarquia e da disciplina militar e tendo em vista, sempre, a destinação constitucional das Forças Armadas, há uma série de limitações e até mesmo de restrições aos militares, as quais não encontram similitude para os civis.
Entre as limitações constitucionais aos militares, podemos encontrar: a proibição de sindicalização e de greve (art. 142, § 3º, inciso IV); a proibição de filiação a partidos políticos (art. 142, § 3º, inciso V); e a inalistabilidade e inelegibilidade – direitos políticos ativos e passivos – dos conscritos durante o período de serviço militar obrigatório (art. 14, § 2º).
Entretanto, talvez nenhuma limitação seja mais drástica do que aquela insculpida no art. 142, § 2º, da CF, consistente na proibição do manejo do habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.
A expressão maior da importância da hierarquia e da disciplina na vida militar é a exclusão da aplicação do princípio segundo o qual ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (art. 5º, inciso LXI, in fine, da CF).
De tal arte, a própria Constituição Cidadã – garantidora de direitos fundamentais – permite a privação de liberdade ao militar que cometa mera transgressão disciplinar, permitindo, inclusive, que essa privação de liberdade seja realizada sem ordem escrita nem fundamentada de membro do Poder Judiciário.
Se a restrição acima, por si só, pode dar margem à ocorrência de abusos, o que se dirá se somarmos a isso o fato de que o § 2º do art. 142 da CF impede o uso do remédio heróico contra as sanções privativas de liberdade aplicadas em decorrência de transgressões disciplinares.
Em última análise, a decisão dos superiores do militar punido disciplinarmente com a restrição da própria liberdade ficaria imune ao controle do Poder Judiciário.
É preciso, porém, conciliar o desiderato do constituinte originário que buscou a observância da hierarquia e da disciplina militar – por meio da prisão por infração disciplinar e da proibição do uso do habeas corpus para rever tal prisão –, com a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional e com os direitos fundamentais inerentes à dignidade humana. Esses são os pontos centrais do presente trabalho.
Há que se adequar, todavia, a proibição contida no § 2º do art. 142 da CF com os tratados internacionais de direitos humanos, especialmente o Pacto de São José da Costa Rica, haja vista que de acordo com a nova ordem constitucional (neoconstitucionalismo) não há que se falar em prevalência de uma norma interna – inclusive a Constituição de um Estado Soberano – sobre uma norma internacional de proteção, na linha do que foi disciplinado pelo § 3º do artigo 5º da Constituição da República, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004.
Como bem leciona Valerio de Oliveira Mazzuoli:
“A proteção internacional dos direitos humanos é fruto de um processo gradual de amadurecimento da sociedade internacional. Esse amadurecimento teve seu maior desenvolvimento a partir do final da Segunda Guerra Mundial, quando a sociedade internacional percebe a necessidade de se arquitetar um novo modelo de Direito Internacional Público, voltado à criação de mecanismos de proteção dos direitos da pessoa humana contra as arbitrariedades dos Estados e dos indivíduos que agem em seu nome.”[1]
A EC 45/2004 alterou a tradicional jurisprudência do STF que sempre empregou aos tratados internacionais de direitos humanos o status de norma infraconstitucional, haja vista que acrescentou o § 3º ao artigo 5º da Constituição da República.
Destarte, pela nova ordem constitucional, as regras de direito internacional sobre direitos humanos, desde que aprovadas, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Surge a seguinte indagação: qual o status constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos introduzidos no ordenamento jurídico pátrio anteriormente à EC 45/2004?
O julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do HC 87.585-8 revolucionou o estudo da questão.
Com efeito, em 12 de março de 2008, o Min. Celso de Mello, em voto vista no referido HC 87.585-8, o qual questiona a possibilidade da prisão civil de depositário fiel (permitida constitucionalmente pelo art. 5º, LXVII) em face da Convenção Americana dos Direitos Humanos (ratificada pelo Brasil no ano de 1992), aceitou a tese de que os tratados de direitos humanos ratificados antes da EC 45/2004, têm índole e nível constitucional, independentemente do seu quorum de aprovação, é o que se colhe pelo trecho do brilhante voto-vista abaixo colacionado:
“Posta a questão nesses termos, a controvérsia jurídica remeter-se-á ao exame do conflito entre as fontes internas e internacionais (ou, mais adequadamente, ao diálogo entre essas mesmas fontes), de modo a se permitir que, tratando-se de convenções internacionais de direitos humanos, estas guardem primazia hierárquica em face da legislação comum do Estado brasileiro, sempre que se registre situação de antinomia entre o direito interno nacional e as cláusulas decorrentes de referidos tratados internacionais.
(…).
Após muita reflexão sobre esse tema, e não obstante anteriores julgamentos desta Corte de que participei como Relator (RTJ 174/463-465 – RTJ 179/493-496), inclino-me a acolher essa orientação, que atribui natureza constitucional às convenções internacionais de direitos humanos, reconhecendo, para efeito de outorga dessa especial qualificação jurídica, tal como observa CELSO LAFER, a existência de três distintas situações concernentes a referidos tratados internacionais:
(1) tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil (ou aos quais o nosso País aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da Constituição de 1988 (tais convenções internacionais revestem-se de índole constitucional, porque formalmente recebidas, nessa condição, pelo § 2º do art. 5º da Constituição);
(2) tratados internacionais de direitos humanos que venham a ser celebrados pelo Brasil (ou aos quais o nosso País venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC nº 45/2004 (essas convenções internacionais, para se impregnarem de natureza constitucional, deverão observar o “iter” procedimental estabelecido pelo § 3º do art. 5º da Constituição); e
(3) tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil (ou aos quais o nosso País aderiu) entre a promulgação da Constituição de 1988 e a superveniência da EC nº 45/2004 (referidos tratados assumem caráter materialmente constitucional, porque essa qualificada hierarquia jurídica lhes é transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade, que é “a somatória daquilo que se adiciona à Constituição escrita, em função dos valores e princípios nela consagrados”). (grifou-se).
Sendo assim, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, instituída pelo Pacto de San José da Costa Rica, a que o Brasil aderiu em 25 de setembro de 1992, incorporada ao nosso sistema de direito positivo interno pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, é norma materialmente constitucional, possuindo, assim, o efeito paralisador de qualquer norma, constitucional ou infraconstitucional, que seja com ela materialmente incompatível.
Postas essas premissas, resta-nos analisar a compatibilidade material na norma insculpida no § 2º do artigo 142 da Constituição da República com as regras de direitos humanos internacionais ratificadas pelo Brasil no Pacto de San José da Costa Rica.
Referido diploma, assim abarca o direito à liberdade pessoal:
“Artigo 7º – Direito à liberdade pessoal.
1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.
2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.
3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.
4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela.
5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa. (grifou-se).
7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.
Acerca da segunda parte do item 6 do artigo 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos é o esclarecedor magistério de Luiz Flávio Gomes, verbis:
“O habeas corpus, no nosso ordenamento jurídico, sem sombra de dúvidas, é o instrumento (remédio) constitucional destinado à tutela da liberdade individual de locomoção da pessoa humana (ou seja: do direito de ir, vir e permanecer). A ausência de ações de garantia, como a do habeas corpus, para além de violar direitos fundamentais consagrados nos direitos internos assim como na Convenção Americana, constitui fonte de numerosas prisões arbitrárias, sobretudo quando a pessoa é suspeita de ser “terrorista” (informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1993, p. 544, Peru). Consoante a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o habeas corpus representa meio idôneo para garantir a liberdade da pessoa humana (assim como para evitar tratamento desumano, cruel e degradante) (Caso Bámaca Velásquez parágrafo 192).(…).
Quando não cabe habeas corpus?
(a) em caso de punição disciplinar militar (hoje esse posicionamento deve ser inteiramente revisto: para se discutir competência, legalidade ou razoabilidade da prisão cabe habeas corpus); (grifou-se)[2].
À guisa de conclusão, afigura-se-nos que o disposto no § 2º do art. 142 da Constituição da República deve ser reinterpretado à luz das normas internacionais de direitos humanos, especialmente da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que, com a reforma constitucional promovida pela EC 45/2004, somada à mudança interpretativa do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, ganhou status equivalente às normas constitucionais.
Sendo assim, tendo em vista que toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, não se pode mais conceber uma interpretação isolada e gramatical da vedação constante no § 2º do art. 142 da CF ao uso do habeas corpus para analise do ato que infligir a restrição da liberdade em virtude do cometimento de uma transgressão disciplinar militar.
Informações Sobre o Autor
Jair Soares Júnior
Defensor Público Federal, chefe da Defensoria Pública da União no Mato Grosso do Sul, pós-graduado em Direito das Relações Sociais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público/MS e pós-graduado em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco/RJ