Resumo: Ao paciente é necessário fornecer esclarecimentos sobre as possibilidades terapêuticas, apresentando os riscos, benefícios, prognóstico e custos de cada alternativa possível e indicada. Esta é uma determinação ética e jurídica. Não obstante, o profissional da saúde detém o conhecimento clínico/técnico/científico, e determina quais informações serão (ou não) fornecidas. O paciente decide submeter-se a um tratamento, fornecendo o seu Consentimento Livre e Esclarecido com base nos dados a ele apresentados. Infelizmente, pode ocorrer de alguns profissionais não fornecerem todas as informações necessárias a uma tomada de decisão esclarecida ou, depois de obtido o consentimento do paciente, apresentarem-lhe informação que cause sua desistência do tratamento inicialmente aceito. Esta última informação, se pertinente, e não se tratando de fato superveniente, deveria ter sido fornecida inicialmente. Porém, a informação pode não ser de todo verdadeira, e levar o paciente a decidir baseado, por exemplo, em riscos apresentados e mensurados de forma equivocada. A reabilitação crânio-facial da Articulação Têmporo-Mandibular (ATM), por meio de prótese de ATM, é indicada em muitas situações. Amiúde, pacientes que necessitam de tais próteses apresentam problemas funcionais e estéticos; a expectativa gerada com a reabilitação é grande. Este trabalho apresenta um caso e discute questões éticas e legais, incluindo a responsabilidade civil, do fornecimento parcial e inadequado de esclarecimentos a um paciente.
Palavras-chave: Consentimento Esclarecido; Responsabilidade Civil; Má Conduta Profissional; Ética Profissional; Bioética; Biodireito; Direito à Saúde; Direito Médico.
INTRODUÇÃO
Até a década de 1960, o atendimento na área da saúde teve como característica o paternalismo hipocrático, a beneficência. Os profissionais da saúde tratavam seus pacientes da forma que entendiam ser a melhor, com a intenção de cuidar e restabelecer a saúde dos mesmos. Porém, os pacientes normalmente não tinham participação alguma no processo de decisão sobre suas possíveis alternativas de tratamento, e sequer eram informados sobre as características de seu atendimento. O entendimento predominante até aquela época – amiúde tácito – era cuidar de seus pacientes da melhor forma possível, e a obrigação destes era seguir as orientações que lhes eram fornecidas.
Porém, em determinado momento, na década de 1960, os pacientes passaram a pleitear os seus direitos – direito à informação sobre sua saúde, sobre as possíveis alternativas de tratamento, e direito à decisão sobre seus corpos, sua saúde e suas vidas. Isto provocou uma significativa mudança de paradigmas.
Com o surgimento da Bioética, no início da década de 1970, e a proposta dos quatro pilares bioéticos no final da mesma década – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça – o adequado esclarecimento ao paciente sobre sua condição de saúde e alternativas de tratamento, para que ele possa optar pela alternativa que julgar melhor, de acordo com seus valores pessoais, passou a ser conseqüência do atendimento ao princípio bioética da autonomia.
Ao mesmo tempo, normas éticas (deontológicas) e legais surgiram, determinando o respeito à autonomia do paciente – lembrando que esta também possui limites. Assim, no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor 3, o Código de Ética Médica 5, e o Código de Ética Odontológica 6, são exemplos de normas que obrigam o profissional ao esclarecimento de seu paciente.
O Código do Consumidor, aplicável às relações entre profissional da saúde/paciente, estatui:
“Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.”
O Código de Ética Médica 5 em vigor, determina:
“Capítulo IV – DIREITOS HUMANOS
É vedado ao médico:
Art. 22 – Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu responsável legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Capítulo V – RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES
É vedado ao médico:
Art. 34 – Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.”
O Código de Ética Odontológica 6, em seu, determina:
“CAPÍTULO V – DO RELACIONAMENTO
SEÇÃO I – COM O PACIENTE
Art. 7o – Constitui infração ética:
IV . deixar de esclarecer adequadamente os propósitos, riscos, custos e alternativas do tratamento;
XII – iniciar qualquer procedimento ou tratamento odontológico sem o consentimento prévio do paciente, ou do seu responsável legal, exceto em casos de urgência ou emergência.”
Em nível internacional, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos 16, aprovada em Assembléia Geral pelos 192 países-membros da UNESCO em 19 de outubro de 2005, explicita, nos seus artigos 5o e 6o, a necessidade do Consentimento Livre e Esclarecido:
“Art. 5o – Autonomia e responsabilidade individual
A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses.
Art. 6o – Consentimento
1. Qualquer intervenção médica de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo.”
Vale lembrar que o esclarecimento deve ser fornecido tanto em casos de assistência à saúde como em pesquisas envolvendo seres humanos. Desta maneira, depois de devidamente esclarecido, o paciente/sujeito da pesquisa consente (ou não) em se submeter a determinado tratamento ou experimento, por meio de seu Consentimento Livre e Esclarecido (CLE). A formalização do CLE dá-se por meio de um documento denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) 4, 7, 13.
Como anteriormente mencionado, o profissional da saúde tem o dever bioético, ético e jurídico de esclarecer adequadamente o seu paciente, antes do início do tratamento. As alternativas, riscos, prós, contras, custos, por exemplo, precisam ser apresentados, e em linguagem simples, acessível ao nível de compreensão do paciente. Se não o fizer, poderá responder ética e legalmente pela omissão de informações. A necessidade de obtenção do consentimento após o devido esclarecimento é voz uníssona entre os autores da área 1, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15.
ESCLARECIMENTO INADEQUADO PARA A OBTENÇÃO DO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
O profissional da saúde é o detentor do conhecimento clínico/técnico/científico que deverá ser transmitido ao paciente. Na prática, ele decide o que informar – e é responsável pelos esclarecimentos fornecidos.
Há profissionais que se empenham no correto esclarecimento de seus pacientes. Todavia, infelizmente, pode haver profissionais que, deliberada e conscientemente, não fornecem todas as informações necessárias ao devido esclarecimento de seus pacientes, profissionais que manipulam as informações a seu bel-prazer, com o objetivo de induzir o paciente a tomar (ou não) uma decisão de acordo com o que os profissionais desejam, de acordo com seus próprios interesses. Nesta situação, o paciente é o grande prejudicado – confia em um profissional que lhe fornece informações inadequadas, ou mesmo não verdadeiras, e com base nestas, toma a sua decisão. Algumas vezes, a informação equivocada ou incompleta é fornecida no início do atendimento. Outras vezes, é fornecida após a obtenção do Consentimento Livre e Esclarecido (CLE), determinando a desistência de um tratamento/procedimento anteriormente aceito. Óbvio que podem ocorrer fatos supervenientes, e que devem ser informados tão logo ocorram. Não obstante, não sendo este o caso, esta última informação, se pertinente, deve ser fornecida no início do atendimento.
A reabilitação crânio-facial da Articulação Têmporo-Mandibular (ATM), por meio de prótese de ATM, é indicada em muitas situações. Amiúde, pacientes que necessitam de tais próteses apresentam problemas funcionais e estéticos; a expectativa gerada com a reabilitação é grande. Todos os esclarecimentos, tanto relacionados à prótese de ATM, como procedimento cirúrgico e seus riscos, devem ser fornecidos antes do paciente consentir em receber tal prótese. Uma informação de última hora, apresentando um risco de infecção, por exemplo, pode causar a desistência do tratamento, e com isso a frustração do paciente, quebra de suas expectativas, além de subtrair-lhe a oportunidade de um adequado, indicado e necessário tratamento reabilitador. Se este risco – causador da desistência do paciente – não houver sido bem dimensionado, causará um dano ao paciente, pois será determinante de sua desistência. O paciente somente tem condições de exercer a sua autonomia se for adequadamente esclarecido. Se o esclarecimento que recebeu for inadequado, o mesmo, na prática, estará fazendo uma escolha com base em informações que não são pertinentes, o que acarreta em perda de sua autonomia.
Os profissionais que agem desta forma – prestando informações inadequadas a seus pacientes – devem ser responsabilizados tanto ética como juridicamente. Com informações inadequadas ou não verdadeiras, induzem seus pacientes a um julgamento equivocado, prejudicando-os.
A responsabilidade jurídica cinde-se em responsabilidade civil e penal. A primeira envolve, antes de tudo, o dano, o prejuízo, o desfalque, o desequilíbrio ou descompensação no patrimônio de alguém 15.
O Código Civil 2 estatui o dever de indenizar, afirmando:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
O Código de Defesa do Consumidor 3 determina o direito do consumidor (paciente) à informação e assegura, explicitamente, a indenização por danos morais:
“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;”
O profissional que não esclarece adequadamente o seu paciente, fere dispositivos deontológicos de sua categoria profissional. Exemplificando com profissionais médicos e cirurgiões-dentistas, os mesmos, descumprindo respectivamente os Códigos de Ética Médica e Odontológica, ficam sujeitos às sanções de seus Conselhos profissionais.
Tirar do paciente o direito a um tratamento indicado e necessário, não lhe fornecendo informações adequadas e pertinentes, ou mesmo fornecendo-lhe informações não pertinentes, equivocadas, prejudicando o seu julgamento, é atitude que pode obrigar o profissional que assim age a indenizar o paciente, pois, com sua atitude, causa-lhe um dano moral, passível de reparação pecuniária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O dever de somente iniciar tratamento ou realizar procedimento com o consentimento do paciente é embasado em normas deontológicas e jurídicas. Porém, este dever deve ser obtido somente após o paciente ter sido adequadamente esclarecido, pois só então estará apto a escolher. Se o profissional presta informações inadequadas, infundadas, ou mesmo não verdadeiras, equivocadas, subtrai do paciente a possibilidade de exercitar sua autonomia, e de até mesmo escolher a opção que será melhor para o seu tratamento e para a sua saúde. Agindo assim, o profissional causa sérios prejuízos ao paciente, e deve responder tanto eticamente, perante o seu Conselho profissional, como juridicamente, indenizando o paciente pelo mal que lhe causou.
Informações Sobre os Autores
Mônica da Costa Serra
Cirurgiã-dentista pela FOAr/UNESP, Advogada pela UNIARA, Licenciada em Letras pela FCLAr/UNESP, Especialista em Odontologia Legal pelo CFO, Mestre e Doutora em Odontologia pela FOAr/UNESP, Pós-Doutora em Bioética pela Universidad Complutense de Madrid, Pós-Doutoranda em Direito Internacional da Saúde pela USP, Livre-Docente em Odontologia Legal pela FOAr/UNESP, Líder do Núcleo de Ciências Forenses, Bioética, Biodireito e Ética em Ciência e Tecnologia de Araraquara, Departamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia de Araraquara, UNESP
Clemente Maia S. Fernandes
Cirurgião-dentista pela FO-UFPE, Graduando em Direito pela UNIARA, Especialista em Odontologia Legal pela UFPE e em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial pela FOP-UPE e pela FO-UFPE, Mestre em Prótese Bucomaxilofacial pela FOUSP, Doutor em Ciências Odontológicas pela FOUSP, Pós-Doutorando em Direito Internacional da Saúde pela USP, Coordenador do Curso de especialização em Odontologia Legal da APCD-Araraquara, “Fellowship” pela Université Pierre et Marie Curie (Paris VI), Hôpital Pitié-Salpêtrière, Líder do Núcleo de Ciências Forenses, Bioética, Biodireito e Ética em Ciência e Tecnologia de Araraquara, Departamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia de Araraquara, UNESP.