Resumo: A finalidade do presente estudo é analisar os riscos, as complexidades e as incertezas deles decorrentes em meio ao Estado Moderno. Tais fatores são considerados como desestabilizadores da Democracia e um desafio para o próprio direito que, sob a ótica autopoiética, deve proporcionar mutações sociais, e, ao mesmo tempo, a sua própria alteração. Eis o objetivo do presente artigo.
Palavras-chave: Riscos; Complexidades; Incertezas; autopoiese.
Abstract: The purpose of this study is to analyze the risks, the complexities and uncertainties arising in the middle of the Modern State. These factors are regarded as destabilize democracy and a challenge to the law itself which, in the autopoietic perspective, should provide social, and at the same time, its own amendment. This is the purpose of this article.
Keywords: Risk, complexity, uncertainties, autopoiesis.
1. INTRODUÇÃO
A teoria trazida por Niklas Luhmann busca uma reestruturação sócio – jurídica sob a ótica da autopoiese, quebrando com uma ciência categórica e cartesiana, através da observação das funções exercidas por cada sistema social
“Ao empregar os sistemas autopoéticos ao direito, Luhmann consegue reduzir a complexidade social. De tal modo, os estudos de Luhmann apregoam que o direito, em seu viés autopoético, se (re)cria com base nos seus próprios elementos. Sua auto – referência permite que o direito mude a sociedade e se altere ao mesmo tempo, movendo-se com base em seu código binário (direito/não – direito). Tal característica permite a construção de um sistema jurídico dinâmico mais adequado à hipercomplexidade da sociedade atual.”[1]
Atualmente, verifica-se que diversos fatores desestabilizaram a estrutura democrática, destruindo a sua imagem romântica, perfeita, constatando-se que tal situação não ocorre apenas nos chamados países subdesenvolvidos, mas sim nos chamados países de primeiro mundo.
Os principais fatores de desestabilização democrática são os fenômenos da “globalização”, “complexidade”, o“risco” e do “refluxo” na qual, utilizando-se a teoria luhmanniana serão a seguir analisados.
2. OS FATORES DE DESESTABILIZAÇÃO DEMOCRÁTICA
2.1. Globalização
A globalização ainda é um fenômeno e implica um novo regime, é um sistema social, econômico, político, é um fenômeno de certa universalização[2], pois desloca muitas decisões para fora do país.
Com isso, há a geração de problemas para o Estado, e um exemplo disso é que hoje se fala em “soberania relativa” dos Estados, tendo em vista a enorme influência de outros agentes do plano internacional na soberania interna.
É a “crise do Estado”, consoante o entendimento de Rodolfo Viana Pereira, segundo o qual:
“(…) a expressão designa, em termos gerais, a perda da capacidade estatal de regulação dos assuntos internos, cada vez mais dependentes de conjunturas e imperativos impostos a partir de fora e se desdobra, segundo a linguagem de RICHARD FALK, nos denominados “cosmodramas vestfalianos”. De acordo com FAK, tais cosmodramas refletem a inadaptabilidade do Estado às circunstâncias debilitadoras do seu poder soberano, o que corresponde, em última instância, a um déficit de legitimidade e competência. A perda de controle sobre as forças do mercado, a degradação ambiental e a necessidade de governação global são alguns dos argumentos que ressaltam o principal drama ocasionado pela globalização: o questionamento da primazia do Estado territorial.”[3]
Nesse sentido, há uma interpenetração entre os níveis local e global, pois as tendências da sociedade mundial convivem com as identidades locais. Isso ocorre porque a política interna passa a ser influenciada por fatores externos, restringindo a autonomia e a liberdade da vontade popular.
“A política e o governo internos passam a sofrer o que se poderia chamar de perplexidade espaço-temporal: se por um lado, são vocacionados à solução atual de problemas localizados no ambiente delimitado pelo território estatal, por outro lado, são sujeitos a determinismos criados em momentos anteriores à sua própria formação e em espaços decisórios exteriores às suas fronteiras”.[4]
Desta forma, essa situação ocasionou uma crise na funcionalidade do princípio democrático, pois a disciplina normativa constitucional que a embasa teve que se adequar a fatores externos, o que gerou o impacto, e, portanto, a crise na operacionalidade e na funcionalidade do regime democrático.
2.2. Complexidade
A complexidade é a dificuldade de adaptação da democracia em uma sociedade complexa.
Para Niklas Luhmann,[5] a “complexidade” é uma derivação conceitual relacionada essencialmente com o que se poderia chamar de “especialização funcional autorreferenciada” dos sistemas sociais. Para ele a sociedade é um conjunto de sociedades que se relacionam em um sistema autopoiético[6], auto – referenciado, na qual o conhecimento ocorre pela perturbação sistêmica. O homem estaria fora dessa sociedade possuindo também caráter autopoiético, pois ao observar o meio ambiente exerce a reflexão e esboça uma reação, participando desta integração sistêmica.
A complexidade é conseqüência da evolução da tecnologia, da produção veloz e em larga escala, bem como da grande quantidade de informações, fazendo com que o indivíduo tenha dificuldade em refletir conceitos como: bem comum, vontade popular, representação, controle, concorrência partidária e outros.
Verifica-se, pois, a dificuldade em se regulamentar uma sociedade complexa no sistema constitucional e o caráter operacional da democracia fica abalado, tendo em vista, que o indivíduo, sendo obrigado a se especializar, não tem disponibilidade para a vida pública, acabando por enfraquecer esses laços sociais de forma brusca.
André Trindade[7] afirma que “a total inexistência de estruturas de seleção social levaria o ser, de forma impositiva e assustadora, a realizar escolhas sem a mínima coordenação social. E, deste modo, a coletividade humana regressaria ao tão temido estado de natureza.” Ele ainda conceitua o caos como “a total falta de coordenação de expectativas de escolhas do ser com relação ao meio e aos demais seres humanos. “
O caos seria a ausência de expectativas, a falta de previsibilidade, o que geraria a incerteza, e em conseqüência, o denominado risco.
2.3. Risco
Segundo Ulrich Beck[8], sociedade de risco “designa um tipo de sociedade que se tornou consciente do paradoxo do conhecimento científico, ou seja, de que a produção de novos conhecimentos gera também novas incertezas”.
Consoante De Giorgi[9] “o risco está ligado à incerteza que caracteriza o futuro dos indivíduos, quer se trate daqueles que observam a si mesmos, ou de um observador externo, como um sistema social.”
Conforme observado por Orst[10] o risco possui três etapas históricas: a primeira tinha o risco como enquanto previdência. A segunda apresenta um conceito de risco vinculado à prevenção. Já a terceira – que inclui o período histórico atual – apresenta o risco em seu maior desenvolvimento, relegando o indivíduo à total frustração das pretensas certezas do meio. A consciência da finitude do ser aliada à consciência do fim das certezas gera ainda mais complexidade.
Logo, atualmente, a ciência não tem a competência de avaliar a conseqüência da meteórica evolução tecnológica, não tendo como calcular, prever e gerir os riscos do seu próprio desenvolvimento, tornando pública a sua incerteza.
“Uma das conseqüências mais importantes desse novo ambiente reflete-se na problematização da relação entre ciência e política, já que traz para a arena pública o debate sobre a oportunidade ou não da inovação técnica, gerando, assim, uma espécie de “politização” do progresso científico. Passa a existir um conflito de métodos e lógicas de ação distintos, na medida em que a pureza do critério instrumental desenvolvimentista da ciência é “contaminada” com a instituição de um momento político, uma instância decisória cujo propósito, modo de ser e de agir lhe são estranhos”.[11]
Há o confronto entre a democracia e a tecnocracia, havendo dúvidas quanto à competência, à capacidade do povo em suas decisões. Portanto, a democracia é desafiada a resolver temas que fogem da cognição da própria ciência.
Com o acirramento das possibilidades de escolha, juntamente com a autoconsciência desse aumento de complexidade, o risco aflora em um ambiente caracterizado pelas incertezas. A atuação do risco, assim sendo, pode ser caracterizada como elemento que irrita os sistemas sociais e, por decorrência, o próprio sistema jurídico.
Segundo Germano Schwartz[12] “o risco deve ser tratado como um fenômeno da contingência advinda da complexidade da sociedade contemporânea”.
O risco apresenta características assustadoras como a incerteza e a insegurança, podendo ser considerado “uma dinâmica mobilizadora de uma sociedade propensa à mudança, que deseja determinar seu próprio futuro em vez de confiá-lo à religião, à tradição ou aos caprichos da natureza”[13].
“Certas premissas da experimentação e do comportamento, que possibilitam um bom resultado seletivo, são enfeixadas constituindo sistemas, estabilizando-se relativamente frente a desapontamentos. Elas garantem uma certa independência da experimentação com respeito a impressões momentâneas, impulsos instintivos, excitações e satisfações, facilitando assim uma seleção continuada também ao longo do tempo, tendo em vista um horizonte de possibilidades ampliado e mais rico em alternativas…Na experimentação a complexidade e a contigência de outras possibilidades aparecem estruturalmente imobilizadas como “o mundo”, e as formas comprovadas de seleção relativamente imune a desapontamentos aparecem como o sentido, cuja identidade pode ser apreendida – por exemplo como coisas, homens, eventos, símbolos, palavras, conceitos, normas. Nelas se ancoram as expectativas. Neste mundo complexo, contingente, mas mesmo assim estruturalmente conjecturável existem, além dos demais sentidos possíveis, outros homens que se inserem no campo de minha visão como um “alter ego”, como fontes eu – idênticas da experimentação e da ação originais. A partir daí introduz-se no mundo um elemento de perturbação, e é tão somente assim que se constitui plenamente a complexidade e a contingência. As possibilidades atualizadas por outros homens também se apresentam a mim, também são minhas possibilidades. A propriedade, por exemplo, só tem sentido como defesa nesse contexto. As possibilidades me são apresentadas na medida em que os outros as experimentam, sem podê-las atualizar totalmente como experimentações propriamente sua. Com isso adquiro a chance de absorver as perspectivas dos outros, ou de utilizá-las no lugar das minhas, de ver através dos olhos dos outros, de deixar que me relatem algo, e dessa forma ampliar meu próprio horizonte de expectativas sem um maior gasto de tempo. Com isso alcanço um imenso aumento da seletividade imediata da percepção.”[14]
Desta forma, busca-se a redução da complexidade, através do estabelecimento de padrões comportamentais, de maneira a permitir que os integrantes da coletividade idealizem expectativas e as concretizem, pois, diante da inexistência de expectativas sem previsão de condutas, será estabelecido o caos, a desordem da sociedade.
Nesse passo, no caso da inexistência de estruturas de seleção social previstas, o indivíduo é levado a efetuar escolhas de maneira descoordenada, de maneira que a sociedades correria o risco de retornar ao estado da natureza.
Para Luhmann, a incerteza é uma forma de possibilitar a criação de sistemas sociais na tentativa de diminuir o risco, pois:
“Sendo assim, as normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos. Seu sentido implica na incondicionabilidade de sua vigência na medida em que a vigência é experimentada, e portanto também institucionalizada, independentemente da satisfação fática ou não da norma. O símbolo do “dever ser” expressa principalmente a expectativa dessa vigência contrafática, sem colocar em discussão essa própria qualidade – aí estão o sentido e a função do “dever ser”.”
Ainda vale ressaltar que há uma colisão entre a ciência e a política sobre a necessidade ou não de implantação de novos produtos tecnológicos, sobre a sua viabilidade, de forma a haver certa politização da ciência, pois a solução tradicional da mera substituição do agente político pode acarretar decisões inadequadas.
A tecnocracia pode acarretar o esvaziamento da política que é o cerne da democracia, e conseqüentemente as decisões sobre a implantação de tecnologias devam ser retiradas do público, reforçando a idéia da competência do povo para a definição da melhor estratégia de decisão e de governabilidade.
Entretanto, tal situação também gera conflitos, pois a credibilidade do discurso tecnocrático é abalada diante do fato do homem comum não possuir capacidade técnica suficiente para fornecer respostas seguras aos problemas decorrentes das falhas da ciência.
“Desse modo, segundo Luhmann, uma norma jurídica vista de modo tradicional: (1) dever obedecer à lei e é o óbvio e uma posição em contrário não é o interesse social; (2) não interesse tem trazer o divergente de volta ao caminho (direito penal); (3) individualização da implementação de normas; (4) não tem perspectivas de futuro e (5) nem o desvio e nem a norma são tipificados. Por isso, tem-se que essa concreção do processamento da experimentação não dá origem à construção de alternativas. A partir daí, a estratégia é uma fixação antecipada da forma de reação. Dito de outro modo: antecipar o futuro e ao mesmo tempo minimizar os riscos. Isso é feito mediante a sustentação de uma contradição: a possibilidade do desapontamento pode ocorrer e quando ocorrer, pode ser tanto benéfica quanto maléfica, dependendo do ponto de vista do observador. Somente assim, poderá haver uma menor complexidade interna do sistema, encobrindo-se a possibilidade do comportamento oposto.”[15]
Para André Jean Arnaud e Dalmir Lopes Jr[16], “as normas jurídicas são a expressão concisa a confiança depositada em expectativas, e por isso, são as expectativas normativas por excelência, e uma vez frustradas, se pode recorrer a coação da norma para refazer a expectativa”.
Busca-se, portanto, uma ordem para o caos gerado diante das incertezas sociais e é nesse sentido que a democracia encontra-se abalada e, ao mesmo tempo, desafiada no que tange a sua capacidade para solucionar tais problemas que fogem ao controle da própria ciência. Como exemplo desta situação, destaca-se a crise econômica atual, ocasionada pela tecnocracia, que, sem forças suficientes para trazer soluções, busca a política que, mesmo abalada, possui o encargo de solucioná-la.
2.4. Refluxo
O fenômeno do refluxo às instituições democráticas é uma decorrência da complexidade social, dos riscos e incertezas existentes na própria sociedade
Segundo Rodolfo Viana Pereira[17] “o último fator de crise é representado pelo que Noberto Bobbio chamou de ‘refluxo à democracia’. A expressão designa uma categoria de eventos que inclui três fenômenos particulares: o afastamento da política, a renúncia à política e a recusa da política”.
O fenômeno do refluxo se deve principalmente em razão das promessas não cumpridas pela democracia: a má distribuição do poder, a representação de interesses neocorporativos, a inviabilidade de uma sociedade igualitária diante do poder das elites corporativas, de forma a ocasionar o descaso pela política de grande parte da sociedade.
“O abstencionismo exsurge, então, como a face mais concreta desse refluxo. De acordo com o estudo comparado realizado por FRANÇOISE SUBILEAU, as taxas de abstenção não param de crescer desde os anos 80 e de se generalizarem, afetando especialmente as chamadas velhas democracias.”[18]
Desta feita, a ausência de resposta do ordenamento jurídico às mutações sociais e tecnológicas, a existência de riscos e incertezas, desestimula a participação popular e o envolvimento da população na política, ocasionando o fenômeno do refluxo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta forma, consoante a perspectiva luhmanniana é possível um processo de generalização de expectativas, pois, com a crescente complexidade social, crescem os riscos e estes, portanto, devem estar previstos.
Segundo Rodolfo Viana Pereira[19], “o conceito de crise deve ser associado a uma funcionalidade dinamizadora, a um momento que funda a necessidade de reflexão, abrindo-se a possibilidade de readaptação, de reforma, de rompimento”.
O Direito é considerado como um sistema decorrente da especialização do sistema social, que, por intermédio do código binário “direito/não direito”[20], filtra os elementos que fazem parte desse mecanismo de auto – reprodução, de auto – referencialidade dos elementos que compõem o sistema jurídico, de forma a permitir que o Direito crie o direito.
“O sistema jurídico, sob a ótica da autopoiese, e seguindo os ditames dessa, pode ser considerado como um sistema ao mesmo tempo aberto e fechado. Aberto às influências do meio externo que passam pelo processo de seleção realizado pelo código direito/não direito, juridicizando os elementos do meio que passam a integrar sua estrutura e servem de aparato para a manutenção da sua auto – referencialidade. Fechado no sentido de auto – referencialidade operativa, isso é, o direito se auto – regula através da sua identidade (código binário)”.[21]
Nesse passo, a teoria luhmaniana apresenta uma nova visão sobre a possibilidade de controle da sociedade por intermédio do direito, pois para ele, um futuro imprevisível seria insuportável e gerador de graves incertezas.
Isto é, a crise é uma importante mola propulsora para a adoção de um novo modelo, de uma reformulação no sistema jurídico, de forma a absorver a contingência do comportamento social, reduzindo a complexidade do ambiente social, retirando os seus elementos deficitários.
Portanto, esse novo direito deve estar orientado para o futuro, e essa autopoiese permite que o direito mude a sociedade e, ao mesmo tempo, também sofra as conseqüências dessa mudança social e se transforme, baseado em seu código binário “direito/não direito”, de maneira e permitir a construção de um sistema jurídico compatível e adequado à dinamicidade social.
Informações Sobre o Autor
Gabriela Soares Balestero
Advogada militante graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2.006. Mestranda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, Especialista em Direito Constitucional e Pós Graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, pertencente ao Núcleo de Pesquisa da Faculdade de Direito do Sul de Minas e ao grupo de estudos PROCON.